01/03/2010

A Relíquia de Eça de Queiroz

A Relíquia de Eça de Queiroz
Marcatti (argumento e desenho)
Conrad Editora (Brasil, 2007)
160 x 226 mm, 224 p., pb, brochado com badanas

Lançada em 2007 no Brasil, "A Relíquia" (Conrad Editora) é um bom exemplo de uma adaptação bem conseguida de um romance para quadradinhos. O que à partida podia ser posto em causa, dado o tom escatológico da maior parte das obras anteriores de Marcatti, aliás Francisco A. Marcatti Jr., autor underground brasileiro, nascido em São Paulo, a 16 de Junho de 1962.
Só que Marcatti fez o que deve ser feito numa adaptação: interiorizou o espírito do romance de Eça e o seu peculiar sentido de humor, na sua crítica exacerbada à Igreja Católica, aos seus fiéis fanáticos e às suas crenças e credulidades, tarnspondo-os depois para a (sua) nova linguagem. A opção de manter "a estrutura da história original" ajudou à consistência do livro, bem como a utilização, nos textos, de "uma mistura de coloquialidade e erudição para facilitar a leitura sem perder o tom clássico da obra", sem que isso o tornasse demasiado denso ou pesado. Com eles, e apesar do seu traço caricatural, conseguiu recriou em "quadrinhos" o clima tenso e opressivo que Eça deu à sua narrativa, e transmitir o estado de prostração e impotência que Raposão, o boémio sobrinho da beata Titi, sente face à rédea curtíssima com que ela o mantém e, posteriormnte, após cair em desgraça.
Paradoxalmente, é o seu traço caricatural, caracterizado por personagens de olhos vivos e grandes narizes e corpos de inusitada mobilidade, o outro trunfo incontornável do livro, pois a sua vivacidade e dinamismo opoõem-seao tom mais pausado dos textos, ao mesmo tempo que o cmplementam e aprofundam o tom da obra.

E é com ele que Marcatti marca o ritmo da narrativa e expressa à saciedade os diversos estados de espírito (veja-se a transformação de Titi em apenas 3 vinhetas na página 172), mostrando sentir-se como peixe na água na representação das cenas mais picantes, divertidas caricaturas que surgem como oásis na vida de Raposão e como aliviadoras da tensão na leitura do livro, muito bem recebida pela crítica brasileira, que Marcatti faz questão de apresentar como "a sua Relíquia".

(Versão revista e aumentada do texto publicado no BDJornal #20, de Agosto/Setembro de 2007)

28/02/2010

As Melhores Leituras de Fevereiro

Hergé, filho de Tintin (Verbo), de Benoit Peeters
Liberty (Casterman), de Warnauts e Raives (argumento e desenho)
Marvels (BDMania), de Kurt Busiek (argumento) e Alex Ross (desenho)
O combate Ilustrado de 1986 a 2007 (Edições Combate), vários autores
Passageiros do Vento - A menina de Bois-Caiman – Livros 1 e 2 (ASA), de François Bourgeon (argumento e desenho)
Portimão como se faz uma cidade (C. M. Portimão), de João Paulo Cotrim (argumento) e Alex Gozblau, Daniel Lima, Filipe Abranches, Jorge Mateus, Pedro Brito, Ricardo Cabral, Susa Monteiro e Zé Manel (desenho)
Zits – paixão (Gradiva), de Jerry Scott (argumento) e Jim Borgman (desenho)
J. Kendall #57 - Aventuras de uma criminóloga (Mythos), de Giancarlo Berardi e Maurizio Mantero (argumento) e Enio (desenhos).
Jour de Grâce (Dupuis), de Jakupi (argumento) e N’Guessan (desenho)

27/02/2010

Natacha, 40 anos e nem uma ruga


















Há 40 anos, as páginas da revista Spirou, habitualmente vocacionadas para os mais novos, recebiam a surpreendente e inesperada visita de uma jovem curvilínea e atraente. Era Natacha, uma nova heroína, hospedeira do ar de profissão, que quebrava uma (quase) tradição que entregava o protagonismo dos quadradinhos a heróis masculinos – de quem Natacha nunca dependeu -, precedendo - sem o saber – diversas outras mulheres de papel mais livres e autónomas.
O seu criador era François Walthéry, belga, então com 24 anos, iniciado na BD no estúdio de Peyo, criador dos Schtroumpfs, que com o seu traço semi-realista fazia realçar o lado bem feminino de Natacha.

A seu lado, no argumento, estava Gos (aliás Roland Goossens) que tirava partido da profissão dela para a transportar para os mais exóticos cenários, em companhia de Walter, um comissário de bordo impulsivo e trapalhão, em aventuras, leves, bem ritmadas e com um toque de humor, que terminavam sempre com a vitória da justiça e do bem, ou seja perfeitamente integradas na tradição e no espírito da revista que a acolhera.
Se Walthéry se mantém ao leme dos destinos da sua pupila, depois de Gos, passaram também pela escrita das suas aventuras autores conceituados como Tillieux, Wasterlain, Peyo ou Cauvin, seguindo o caminho previamente traçado.
Hoje, quatro décadas, 21 álbuns e cerca de um milhar de pranchas depois, Natacha não ganhou uma única ruga e, acompanhando os ventos de um tempo que também é o seu, viu até acentuar-se o seu lado sensual – sem transgredir, nos quadradinhos, as regras próprias do seu público, mas protagonizando, fora deles, portefólios com um toque de erotismo.
Em Portugal ficou conhecida através das histórias “Natacha, hospedeira do ar” e “Natacha e o Marajá”, publicadas na versão lusa do Spirou, primeiro, e depois repetidas no Jornal da BD – vol. 6. Actualmente está em curso na Bélgica a reedição integral das suas aventuras, pela editora Dupuis, estando já disponíveis três tomos, cada um compilando três álbuns para alem de diversos extras.

(Versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias de 26 de Fevereiro de 2010)

25/02/2010

A History of Violence

John Wagner (argumento)
Vince Locke (desenho)
Delcourt (França, Outubro de 2005)
168 x 242 mm, 280 p., pb, brochado

Sabe-se como o cinema se tem servido - quase sempre mal - da BD como fonte de inspiração (e de mediatização), mas muitas vezes esquece-se que os filmes mais interessantes são os menos badalados - porque inspirados em BD fora do 'mainstream' - como "Mundo Fantasma" (baseado na obra de Daniel Clowes), "American Splendor" (Harvey Pekar), "Old Boy" (Tsuchiya Garon e Minegushi Nobuaki) ou "Caminho para Perdição" (Max Allan Collins e Richard Piers Rayner). E, já agora, "Uma história de Violência", tal como o último, originalmente editado na colecção "Paradox Press", da Vertigo, o selo adulto da DC Comics, e disponível também na versão francesa da Delcourt.
"A History of Violence" é, no original de 1997, uma 'graphic novel', servida pelo desenho a preto e branco, pouco atractivo, de Vince Locke, próximo do simples esboço, quase rude até, o que acentua o mal-estar que emana das quase 300 páginas da narrativa. Esta é um 'thriller' extremamente negro e violento, de intensidade crescente, no qual o veterano britânico John Wagner não se inibe de mostrar o que quer que seja, enquanto levanta questões incómodas sobre o poder dos media ou de como a violência - inata ao ser humano… - sempre atrai violência.

Forte na construção das situações, na definição dos protagonistas e na forma como se desenrola a acção, "A History of Violence", já com quase uma dezena de anos em cima, foi, com certeza, o 'script-bord' ideal para David Cronenberg realizar o seu filme. Que no entanto, fica muito aquém da BD, na violência e, principalmente, na forma como a história é contada.

(Versão revista do texto publicado originalmente no BDJornal #12 de Abril de 2006)

24/02/2010

Little Lulu faz 75 anos

Little Lulu - a popular Luluzinha - criada por Marjorie Henderson Buell, a primeira autora de BD a ter sucesso nos Estados Unidos, completou 75 anos. Nasceu como cartoon no The Saturday Evening Post, a 23 de Fevereiro de 1935, num gag que a mostrava a lançar cascas de banana (e não pétalas) à frente de uma noiva que se encaminhava para o altar, e assim se manteve durante mais de uma década.
Sempre com um vestido vermelho (e por vezes com uma boina da mesma cor) e com cachinhos nos cabelos, tinha entre 8 e 10 anos e era decidida, teimosa, mandona, inteligente, por vezes maliciosa e convicta de que valia tanto como o sexo oposto.
O seu carácter forte levou-a a protagonizar também uma revista aos quadradinhos (entre 1948 e 1984), uma tira diária (1950-1969), desenhos animados (a partir de 1943), uma série televisiva com actores reais (1970) e um animé (animação japonesa, 1976/77), tendo chegado a rivalizar em popularidade com os principais heróis Disney. Nos Estados Unidos, nas décadas de 1940 e 1950, foi a cara dos lenços Kleenex e da Pepsi e os brasileiros Roberto e Erasmo Carlos inspiraram-se nesta BD para comporem a música “A Festa do Bolinha”.
Publicada de forma discreta nas páginas de algumas publicações nacionais, foi popularizada em Portugal através de revistas brasileiras, onde muitos puderam ler as suas aventuras que decorriam em torno do quotidiano infantil, entre partidas brincadeiras e zaragatas com os seus amigos, entre os quais se destacavam Tubby (Bolinha), com quem mantém uma relação de amor/ódio, Iggy Inch (Carequinha), Annie (Aninha), o riquinho Wilbur Van Snobbe (Plínio), a bela Glória, Alvin James (Alvinho) ou a professora Miss Feeny (Dona Marocas). Através deles, os diversos autores que passaram pelas bandas desenhadas, entre os quais se destacam John Stanley e Irving Tripp, abordavam também, de forma superficial e descontraída, questões sociais como as diferenças entre os sexos (quase sempre através do popular clube dos rapazes “Menina não entra”), a dualidade pobreza/riqueza, vida escolar ou familiar, sempre com o humor como denominador comum.
Para os saudosistas, a editora norte-americana Dark Horse tem em curso a publicação integral das bandas desenhadas da Luluzinha, uma edição que é seguida no Brasil pela Devir.
No ano passado, a Ediouro, na senda do sucesso da Turma da Mônica Jovem, lançou no Brasil a revista Luluzinha Teen e sua Turma, criada por artistas locais, num estilo inspirado no manga japonês, que explora a adolescência das personagens originais. Com razoável receptividade por parte dos leitores, levantou muitas reticências à crítica que lhe aponta em especial o desfasamento entre as personagens adolescentes e as crianças originais. A preto e branco, como trunfos tem apresentado um ritmo próximo das séries televisivas, uma consultoria de moda para as roupas dos protagonistas e a participação em cada edição de personagens reais provenientes da música ou da tv. Foi também editada uma edição especial, a cores, inspirada na saga Crepúsculo, com a temática dos vampiros como tema de fundo.

(Versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de NotíCias de 23 de FevEreiro de 2010)

23/02/2010

Marvels

Kurt Busiek (argumento)
Alex Ross (desenho)
BDMania (Portugal, Novembro de 2009)
175 x 262 mm, 240 p., cor, cartonado


Entre as muitas obras editadas com o selo da Marvel Comics, algumas há que se destacam pela sua qualidade e/ou originalidade. É o caso deste “Marvels”, cuja edição original norte-americana completou recentemente 15 anos mas que surge pela primeira vez numa (excelente) edição portuguesa (complementada com diversos extras), que reúne ambas as qualidades.
Desde logo, porque não é uma história ‘de’ super-heróis mas sim ‘sobre’ super-heróis, uma vez que estes, nas suas breves aparições de fundo, sempre distantes dos comuns mortais, quais deuses descidos à terra, servem apenas de pretexto para o avanço da narrativa, que explora a influência e as reacções que o surgimento do Capitão América, Quarteto Fantástico ou Homem-Aranha – quais semi-deuses fora do alcance e do entendimento dos mortais - teve nos cidadãos comuns.
Porque a história, baseada no percurso profissional e pessoal de Phil Sheldon, seguida pelo seu olhar – pela lente, uma vez que é um fotógrafo freelancer, acompanha (a cobertura que ele faz d)a génese e do desenvolvimento do Universo Marvel, primeiro com o Capitão América e o Tocha Humana, heróis de guerra contra os nazis; mais tarde, nos anos 60, com o aparecimento dos super-heróis “com problemas humanos”. Por isso, os fãs do género facilmente reconhecerão momentos marcantes ou recorrentes desse universo, como o casamento de Reed e Sue Richards, a morte de Gwen Stacy, as cruzadas de Jonah Jameson contra o Homem-.Aranha ou o ódio contra os mutantes X-Men. Mas, convém referir, o seu desconhecimento não é óbice para o pleno desfrute da obra.
Iniciada no final dos anos 30, a narrativa, subjectiva, feita em off por Sheldon, como tantos outros surpreendido pelo aparecimento dos super-heróis, que ele próprio apoda de maravilhas, vai mostrando como os salvamentos in-extremis e os actos heróicos dos super-heróis – bem como os seus efeitos colaterais… - vão influenciando a maneira de pensar e agir dos norte-americanos. Aliás, embora nunca percam para ele esse encanto – o que o leva a escrever um livro sobre eles - Sheldon não consegue deixar de acompanhar, mais, de experimentar, as mesmas reacções das multidões, consoante os momentos: surpresa, primeiro, depois confiança, mais tarde, dúvida, revolta, acusação... Numa bela demonstração da volatilidade do comportamento humano e da prevalência das emoções sobre a razão. E do medo e da desconfiança que o ser humano sempre mostra em relação a(o) que(m) é diferente.
Graficamente, “Marvels” é deslumbrante, com Alex Ross a multiplicar planos e vistas, alguns dos quais arrojados e de belo efeito, numa planificação multifacetada. O seu traço detalhado, (quase) fotográfico, confere à obra um tom mais realista, dando ao leitor, muitas vezes, a sensação de estar a ler uma reportagem sobre factos reais e não (apenas…) uma ficção, estabelecendo assim o tom adequado ao registo e contribuindo decisivamente para prender o leitor página após página.

(Versão revista e aumentada do texto publicado originalmente a 20 de Fevereiro de 2010, na página de Livros do suplemento In’ da revista NS, distribuída aos sábados com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias)

22/02/2010

Big Ben Bolt nasceu há 60 anos

O nome Big Ben Bolt poderá não dizer muito a alguns dos leitores desta linhas, pois certamente estarão mais familiarizados com o de Luís Euripo, como foi denominado quase sempre em Portugal, em especial nas páginas do Mundo de Aventuras. Por isso, para esses, possivelmente será uma surpresa saberem que o seu verdadeiro nome, ao contrário do que a censura então quis fazer querer, era realmente Ben(jamin) Bolt e que era americano e não português. No entanto, na década de 50 do século passado, foi rebaptizado Luís Euripo para servir como “bom exemplo” e “exaltação dos valores pátrios” para quem lia as suas aventuras aos quadradinhos. Por isso, também, o seu treinador Spider Haines passou a Zé Gomes e as suas aventuras transitaram de Boston para Lisboa!
Estreado a 20 de Fevereiro de 1950 – e apenas cinco meses passados em Portugal, no Mundo de Aventuras - como tira diária, completaria hoje 60 anos, não tivesse Ben Bolt falecido com um tiro no peito, em 1978, quando se preparava para receber o Prémio Nobel da Paz, como agente da Interpax, uma ONG de contornos no mínimo duvidosos. Para trás, tinha já deixado há muito o boxe - em que se sagrara campeão mundial de pesados em 1953 - devido a uma lesão, em 1955, bem como o jornalismo e a investigação privada.
Na sua aventura inicial, publicada pela primeira vez em Portugal no Mundo de Aventuras Especial #18, de Julho de 1977, Ben Bolt era apresentado como filho de americanos, criado na Europa, de regresso ao seu país natal para viver com uns tios aristocráticos mas falidos. Isso precipitou a sua entrada no mundo do boxe, instigado por Spider Haines, antigo lutador e seu futuro mannager, e pela bela e insinuante Charity O’Hara, sem que no entanto abandonasse os seus estudos na Universidade de Harvard, o que lhe conferiu um estatuto distinto.
Os seus criadores foram Elliott Caplin, na escrita (a quem muitos apontam como inspiração Joe Palooka, uma outra BD passada no mundo do boxe, de Ham Fisher), e John Cullen Murphy, no desenho, quer da tira diária, quer da prancha dominical estreada a 25 de Maio de 1952. Murphy deu-lhe um visual forte e facilmente reconhecível e conferiu à tira bastante dinamismo o que lhe permitiu gozar uma assinalável popularidade durante anos, apesar da temática desportiva ter sido rapidamente substituída por intrigas sentimentais que alternavam com narrativas de acção e mistério. Quando abandonou Ben Bolt, em 1970, para retomar o Príncipe Valente de Hal Foster, Murphy foi substituído sucessivamente (mas sem grande empenho…) por Carlos Garzon, Joe Kubert, Gray Morrow e Neal Adams, que mais não conseguiram do que prolongar o estertor da série até ao trágico desfecho, ocorrido a 10 de Abril de 1978, o que levaria ao cancelamento da tira cinco dias volvidos.
Para Abril próximo, a Classic Press Comics anunciou o primeiro volume de “John Cullen Murphy’s Big Ben Bolt Dailies”, com as tiras diárias publicadas entre 29 de Fevereiro de 1950 e 24 de Maio de 1952.

(Versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias de 20 de Fevereiro de 2010)

18/02/2010

Quartier Lontain + Un ciel radieux


















Quartier Lointain - Édition intégrale
Jirô Taniguchi (argumento e desenho)
Casterman (França, Novembro de 2006)
173 x 242 mm, 400 p., cor (6 p.) e pb, cartonado

Colecção écritures
Un ciel radieux
Jirô Taniguchi (argumento e desenho)
Casterman (França, Setembro de 2006)
172 x 240 mm, 300 p., pb, cartonado


Escreve Taniguchi no posfácio de "Un ciel Radieux": "Acredito que, durante toda a nossa existência, alguns acontecimentos, certas experiências, são capazes de nos fazer mudar a nossa forma de viver".
E é isso que ele transmite nestes dois livros, que têm (pelo menos) um ponto em comum: acontecimentos extraordinários, ao nível da memória e da consciência.
Em "Quartier Lontain", o protagonista, Hiroshi, após um desmaio, acorda na sua cidade natal, regressando à sua adolescência, embora com os conhecimentos e a sensibilidade dos seus 40 anos.
Em "Um ciel radieux", na sequência de um acidente de automóvel, um adulto daquela idade, (o espírito de) Kazuhiro Kobota, que guiava uma carrinha, acorda aprisionado no corpo adolescente de Takuya Onodéra, que guiava uma motocicleta.
No primeiro caso, Hiroshi consegue o que muitos, com certeza, ansiamos: voltar ao passado, voltar atrás na vida, seja para viver de novo momentos (mais) alegres, seja para corrigir erros passados. De regresso de uma viagem de negócios, após uma noite bem regada, sem bem saber como, em vez de apanhar o comboio de regresso a casa, em Tóquio, apanha uma composição que o leva à sua cidade natal. Uma vez chegado, para fazer horas, decide visitar a campa da mãe no cemitério. E é lá que, de maneira inexplicável, após um breve desmaio, regressa ao seu passado, reencontrando-se dentro do seu corpo de 14 anos, embora mantenha a capacidade intelectual, a memória e os conhecimentos dos seus quase 50 anos de vida.
Nada de especial, dirão muitos, e é verdade, pois a ideia não é nova. E inicialmente o tratamento dado por Taniguchi também não o parece, pois o seu protagonista, atónito com o que se passa, incapaz de compreender o que lhe aconteceu, surpreso por reencontrar a mãe, falecida há mais de 20 anos, e a irmã mais nova, começa por explorar (mais instintiva que conscientemente) a situação, tornando-se facilmente um bom aluno, brilhando no capítulo desportivo e aproveitando esses dois factores para se aproximar da rapariga mais bonita do liceu. Mas continuando a leitura, vemos que, ao contrário de muitos autores que têm optado por esta via mais simples (e comercial), Taniguchi, com uma narrativa serena e intimista, dá mais uma vez mostras da grande sensibilidade e do sentido poético que já revelara em obras como “L’homme qui marche” ou “Le journal de mon pére” (ambos da Casterman). E, por isso, Hiroshi divide-se entre a felicidade da nova existência e o medo de que as alterações que provoque no seu passado venham a modificar o presente que vivia antes do incidente. Indecisão que desaparece quando se apercebe que se encontra a poucas semanas do dia em que o seu pai abandonou para sempre o lar. E com a sua nova percepção da realidade, capaz de compreender o sentir e as reacções dos adultos, decide tentar evitar que a sua família se desmembre. Mas será possível mudar o curso do tempo que corre?
O relato é lento, para aprofundar os sentimentos das personagens, e nos levar a meditar nas consequências das escolhas que fazemos ao longo da vida. E é também amargo, quando Hiroshi descobre que, afinal, o seu pai abandonou a família porque chegou ao limite, porque quis soltar amarras e perseguir sonhos - o que tão poucas vezes somos capazes de fazer - ou quando compreende que a sua mãe apenas está grata por o inevitável ter demorado tanto a acontecer.
Em "Un ciel radieux", o conflito que era interior no caso de Hiroshi, vive-se a dois quando o espírito de Takuya tenta recuperar o corpo que o espírito de Kubota ocupa. Isto porque após o acidente rodoviário, ambos entraram em coma e, ao fim de algumas semanas, enquanto o corpo de Takuya recomeçava a viver, o de Kubota era dado como morto.
Começa então uma vivência difícil, preso no corpo de outro, no seio de uma família que não conhece - uma família que não o reconhece - enquanto vai progressivamente crescendo o conflito interior pela posse do corpo. Conflito ao nível dessa posse e ao nível de representantes de gerações diferentes - bastante diferentes. Conflito que, a certo ponto se torna cooperação, no encaminhamento para um final feliz - se assim se pode designar a morte - que dá corpo à afirmação de Taniguchi citada no início deste texto.
Antes disso, no entanto, vamos vendo como Kubota, que escondia alguns segredos, se convence que a situação presente é provisória e que a deve aproveitar para mostrar e dizer aquilo que em vida nunca conseguiu: expressar o seu amor pela sua mulher e a sua filha. Ao seu lado estará Kaori, namorada de Takuya, que, aceitando a estranha situação, o ajudará a tirar o máximo partido daquela oportunidade.
Mais uma vez o relato de Taniguchi decorre num ritmo lento, com os pontos de vista a multiplicarem-se durante os muitos diálogos que ele contém, sendo surpreendente como o autor consegue transmitir de forma tão forte as emoções presentes em muitas situações, nomeadamente no abraço de Takuya(/Kobuta) a Kaori ou no (re)encontro (e na despedida) deste último com a sua família.
Ambos os relatos são viagens (fantásticas) pelo mais profundo do ser humano, pelos seus sonhos, medos e ambições, pela forma como nos relacionamos (nos damos) com os outros e pela conflitualidade de sentimentos e desejos que é a vida.

(Versão revista e actualizada do texto originalmente publicado no BDJornal #18 de Abril/Maio de 2007)

17/02/2010

King of the Royal Mountain nasceu há 75 anos

Se ainda fosse vivo, o circunspecto e implacável sargento King da Real Polícia Montada canadiana, que “apanhava sempre o seu homem”, criado por Zane Grey e Allen Dean, completaria hoje 75 primaveras.
No entanto, a sua existência, narrada em pranchas dominicais e tiras diárias, seria relativamente curta, pois os seus dias terminariam vinte anos mais tarde, não às mãos ou sob os tiros de um dos muitos bandidos que enfrentou, mas por uma decisão editorial motivada – como sempre – pela queda da sua popularidade.
Inicialmente uma adaptação de um romance do próprio Zane Grey, “King of the Royal Mountain” começou a ser distribuído pelo King Features Syndicate nos jornais norte-americanos a 17 de Fevereiro de 1935, sob a forma de prancha dominical, desenhada por Allen Dean, que pouco mais de um ano depois, a 2 de Março de 1936, iniciaria também as suas aventuras em tira diárias, entregando a prancha dominical a Charles Flanders. A partir de 1938 Dean seria substituído por Jim Gary, que um ano depois se tornaria também responsável pelas pranchas dominicais, assistido pontualmente de forma anónima por Fred Harman (futuro criador de Red Ryder), tendo conseguido humanizar as personagens e criar histórias que prendiam os leitores.
“King of the Royal Mountain”, que esteve na origem de quatro adaptações cinematográficas entre 1936 e 1942, era um western atípico, com histórias lineares, que tinha por cenário as inóspitas regiões geladas canadianas, marcadas pelo verde dos pinheiros afilados, o azul das torrentes caudalosas e o branco imaculado da neve que tudo cobria, que contrastavam com o vermelho do uniforme dos membros da polícia montada, por isso celebrizados sob o apodo de “casacas-vermelhas”, e que se distinguiam pelo seu código honra particular que defendia o recurso a armas ou à violência apenas em última instância. O protagonista era o circunspecto sargento King - cujo apelido, o único nome que lhe foi conhecido, fez com que a tradução portuguesa do Mundo de Aventuras e de outras publicações da Agência Portuguesa de Revistas o transformasse no Rei da Polícia Montada (título que também viria a servir a Red Canyon) - a quem nunca se viu um sorriso ou ouviu uma piada, nas suas perseguições implacáveis a ladrões e assaltantes de comboios, durante as quais conheceria Betty Blake, sua eterna noiva, e o seu irmão Kid, que muitas vezes o acompanhou.
A banda desenhada regressaria ao território canadiano e à temática dos “casacas-vermelhas” na década de 50, com o tal Red Canyon, criação de André Gosselin, nas aventuras que, recorrentemente, Tex Willer partilha com Jim Brandon, ou, já nos anos 1990, de forma mais consistente, nos álbuns franco-belga coloridos da série “Trent”, escritos por Rudolphe e desenhados por Léo.


(Versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias de 17 de Fevereiro de 2010)

16/02/2010

Os Passageiros do Vento #6 –A Menina de Bois-Caïman

Livros 1 e 2
François Bourgeon (argumento e desenho)
ASA (Portugal, Outubro de 2009 + Janeiro de 2010)
238 x 320 mm, cor, 88 + 72 p., cor

Os Passageiros do Vento foram uma das mais marcantes sagas em banda desenhada dos anos 1980, que ao longo de cinco tomos, traçaram um notável fresco da vida na Europa e nas colónias na segunda metade do século XVIII, mais do que narrar as aventuras (e desventuras) de Isa, uma jovem mulher emancipada e libertária, muito à frente do seu tempo. Saga essa que terminava de forma completamente aberta, deixando Isa nas Caraíbas.
Um quarto de século depois, François Bourgeon, o seu artesão, decidiu voltar às personagens com que nos fez felizes. E se esta sequela surge dividida em dois tomos, por motivos mediáticos e comerciais – não por acaso, ambos as edições indicam o numeral #6 e em algumas edições, como na espanhola, a numeração das páginas do segundo livro começa onde terminou o primeiro – ela constitui um todo indivisível. Mesmo que uma outra Isa, bisneta da primeira, protagonize as primeiras 50 pranchas, desvendando as outras noventa o destino da sua bisavó, no Luisiana, nas margens do Mississipi, território que haveria de ser norte-americano e de sonho, mas que então era um inferno autêntico, assombrado pela Guerra da Secessão e pelas lutas pela emancipação dos negros.
Porque mais uma vez, Bourgeon, cronista de eleição, aproveita o pretexto para nos pintar de forma crua e realista, com a mestria que lhe é reconhecida, o quotidiano desses tempos conturbados.
Porque se Isa é agora quase centenária e se por Bourgeon passaram vinte e cinco anos, ambos continuam iguais a si próprios. Ela, rebelde, decidida, amante da vida e da liberdade. E contraponto de uma sociedade hesitante, presa a leis obsoletas, derrotada pelos ideais que tentou agrilhoar. Ele, um narrador consistente e eficaz e um desenhador rigoroso na reconstituição histórica, hábil na composição das pranchas e inconfundível na representação de belas mulheres, pese embora o facto de o seu traço estar menos espontâneo, mais preso ao registo fotográfico que lhe serve de base.
Voltada a última página, cerrados os livros, resta a pergunta: precisávamos de saber o que tinha acontecido a Isa depois da última vez que a encontráramos, tantos anos atrás? Francamente, não. Mas ainda bem que Bourgeon nos quis contar o seu destino!


A reter
- Já ficaram explanadas atrás as principais qualidades deste diptíco, mas para que não restem dúvidas, este relato é/será sem dúvida um dos grandes lançamentos editoriais aos quadradinhos em 2010.

Menos conseguido
- São aspectos menores e formais, a que a editora portuguesa é alheia, mas a verdade é que o facto da tradução das frases em crioulo vir agrupada ns páginas finais de cada volume rouba ritmo e atrapalha a leitura bem mais do que se viessem em rodapé nas respectivas pranchas…

(Versão revista e aumentada do texto publicado originalmente a 13 de Fevereiro de 2010, na página de Livros do suplemento In’ da revista NS, distribuída aos sábados com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias)

15/02/2010

Liberty

Warnauts & Raives (argumento e desenho)
Casterman (França, Janeiro de 2010)
240 x 320 mm, 64 p., cor, cartonado


Resumo

Zaire, 1974. Nas vésperas do combate de boxe “do século” entre Mouhamed Ali e George Foreman, Acabada de completar 16 anos, Tshiland, ainda uma jovenzinha, já uma bela mulher, deixa-se seduzir pelo manager do grupo de James Brown, de passagem pelo evento, e acaba grávida.
Para evitar que o escândalo se abata sobre o seu pai, chefe de segurança de um dos principais hotéis locais, tem que sair do seu país, o que consegue com o auxílio de Edouard, um diplomata francês, e de Mike, um dos músicos de Brown - ambos sensíveis aos encantos da jovem - que lhe conseguem um cartão de residência para os Estados Unidos, onde acabará por dar à luz uma menina, a quem põe o nome de Liberty.

Desenvolvimento
E é Liberty e a sua mãe – ou Tshiland e a sua filha? – ou, melhor ainda, Tshiland e Liberty, mulheres de corpo inteiro e de personalidade forte, vamos acompanhar, vivendo por seu intermédio alguns dos grandes momentos da luta dos negros pelo reconhecimento dos seus direitos nos EUA, dos Black Panters até à eleição de Barack Obama, passando pela guerra do Vietname ou pelo atentado contra as Torres Gémeas, o que faz deste relato um curioso álbum que, de certa forma, se pode apodar de relato histórico.
Porque é a História – parte substancial dela, vista pelos olhar (diferente…) dos negros – que serve de fundo a um relato, onde o desejo de emancipação e de afirmação e a busca de um rumo, primeiro por parte de Tshiland, depois por Liberty, prendem e cativam o leitor. Até porque o tom escolhido, está longe da lamúria ou do panfletário, optando antes por realçar a força (interior) e a vontade (própria) de cada uma, apesar de alguns (muitos) percalços e até retrocessos. Até que o destino cumpra o seu papel. Porque se é histórico (na acepção indicada), este relato é também – antes disso, sem dúvida – sobre pessoas e sentimentos.
Em paralelo com as histórias das duas mulheres, desvendadas aos poucos, com recurso a alguns flashbacks, descobrimos também um pouco mais sobre Edouard e o seu amor (platónico) por Tshiland, e sobre Mike, ex-combatente do Vietname, de onde trouxe a dependência da droga, que mina a sua relação com a bela negra. São eles, com elas, que em off vão fazendo avançar a narrativa, por vezes de forma algo lenta dada a extensão de alguns dos pensamentos que, no entanto, são fundamentais para a boa definição das personagens perante o leitor.
Do traço da dupla Warnauts e Raives, salientam-se os retratos das protagonistas, mais duas belas e sensuais criações para a sua já longa galeria, e a excelente aplicação das cores no tratamento de cenários e paisagens.

A reter
- A forma como Warnauts e Raives continuam a tratar as mulheres nas suas bandas desenhadas - e já agora nos soberbos esboços disponíveis aqui.
- O trabalho de cor de Raives.
- A forma como esta dupla traça a “história negra” dos EUA, através de uns quantos momentos, ilusoriamente soltos, mas elos de uma mesma cadeia comum.

Menos conseguido
- A lentidão do relato nalguns momentos.

Curiosidades
- Como desde há 20 anos, Warnauts e Raives têm uma forma de trabalhar diferente do habitual: depois de longas discussões, o primeiro escreve o argumento; de seguida, ambos trabalham no desenho, para no final Raives aplicar a cor.

12/02/2010

Peanuts, obra completa – 1959-1960


Charles M. Scuhlz (argu-mento e desenho)
Introdução de Whoopi Goldberg
Afron-tamento (Portugal, Novembro de 2009)
220 x 174 mm, 324 p., pb, cartonado com sobrecapa com badanas

Em 2004, a editora norte-americana Fantagraphics Books lançava o primeiro tomo de um ambicioso projecto: a edição integral dos "Peanuts" de Charles M. Schulz, anunciando-o como "o mais aguardado e ambicioso projecto editorial da história das tiras diárias americanas".
Dos 25 volumes previstos, lançados a uma média de dois por ano, estão já editados 12, devendo a edição ficar concluída em 2016. Cada volume, com mais de 300 páginas, reúne por ordem cronológica, recuperadas e restauradas, todas as tiras diárias e pranchas dominicais publicadas nos jornais ao longo de dois anos, com excepção do primeiro que abarca o período 1950-1952.
O notável arranjo gráfico da colecção é da responsabilidade de Seth, também ele autor de BD, sendo cada volume prefaciado por personalidades de diferentes áreas que de alguma forma foram influenciadas pela obra de Schulz, como Matt Groening, criador dos Simpsons, a cantora Diana Krall, a actriz Whopi Goldberg ou a ex-tenista Billie Jean King.
Em 2006, a Afronta-mento, a exemplo do que têm feito outras editoras um pouco por todo o mundo, lançou os dois primeiros tomos, em versão portuguesa “Peanuts – Obra completa”, tendo até ao momento editado cinco volumes, o último dos quais em Dezembro último, correspondente ao período 1959-1960. Este volume, dedicado a um período em que os alicerces da série já estavam lançados e Schulz já tinha encontrado o seu caminho, inclui, entre muitas outras, as tiras dedicadas ao nascimento de Sally, a irmã de Charlie Brown (aqui bebé mas que em pouco tempo atingirá a idade dos outros Peanuts), a aparição inaugural da Grande Abóbora, a primeira consulta da “psiquiatra” Lucy e, claro, a página que Schulz sempre referiu como a sua favorita, a prancha dominical de 14 de Abril de 1960, aqui reproduzida.
Para este ano, a Afronta-mento prevê lançar em Maio o sexto tomo, referente a 1961-1962, com a caixa arquivadora para os volumes #5 e #6, e em Outubro os volumes 7 e 8 com a respectiva caixa.

(Versão revista e aumentada do texto publicado a 6 de Fevereiro de 2010 na revista NS, distribuídas aos sábados com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias)
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