06/05/2010

Lulu Femme Nue – premier livre

Étienne Davodeau (argumento e desenho)
Futuropolis (França, Novembro de 2008)
216 x 293 mm, 80 p., cor, cartonado

Resumo
Lulu tem 40 anos, não trabalha há 16, desde que nasceu o primeiro dos seus 3 filhos, e o seu marido é bruto e alcoólico. Não é bela nem especial. É apenas uma mulher comum, envelhecida, gasta pela vida, esgotada, submersa pelos afazeres do quotidiano.
Por isso, afirma na primeira pessoa, “a minha vida não me agrada. Não se passa nada nela”. E mais: “Não sei se ainda amo o meu marido, às vezes não o suporto (…) tenho a impressão de ser apenas uma extensão do fogão e do lava-louças…”
É, assim, uma mulher desiludida, que após mais uma recusa de emprego, decide tirar algum tempo, longe de tudo e de todos, para repensar a sua vida. Para se encontrar. Ou perder.

Desenvolvimento
Esta é a história de Lulu, que nos vai sendo narrada pelos seus amigos, em sua casa, conforme a foram sabendo e descobrindo através dos seus telefonemas, por outras pessoas ou observando-a directamente. Uma história de 20 dias, narrada no breve tempo de uma única noite, véspera de um funeral.
Uma história que começou há três semanas em relação ao tempo em que é narrada e que prossegue numa cidadezinha à beira-mar, bela e tranquila – como tranquila (e também bela, pelo menos por dentro) se vai revelando Lulu, uma nova Lulu, conforme se vai descobrindo e descobrindo rumos para uma vida diferente. Uma cidadezinha onde vai conhecer Charles, como ela um abandonado pela vida, com quem vive uma breve mas gratificante relação.
Pelo meio, vamos conhecendo Tanguy, o marido de Lulu, os amigos dela (não dele…), os seus filhos, em especial Morganne, 16 anos muito adultos, que vai ter que ocupar o lugar da mãe, os (muito loucos, mas extremamente ternos) irmãos de Charles.
Com eles, mantendo o leitor em constante suspense, com a mestria que lhe é habitual (aprecie-se a naturalidade com que nos é mostrada a (longa) noite de conversa, com a narração da “aventura” de Lulu a ser entremeada com apartes sobre o deitar dos miúdos, o frio da noite ou os pedidos de comida ou cerveja…), com muito pudor e ternura, Davodeau constrói um belíssimo relato. Um relato em que o optimismo e a esperança (expressos nos sorrisos de Lulu, nas areias douradas, no mar de um azul intenso…) predominam sobre os contornos negros e sombrios da base narrativa. Um relato sobre relações humanas, realização pessoal e a morte dos sonhos face à incontornável (será?) realidade, face à forma como a vida quotidiana persegue e envolve mesmo quem dela quer fugir. Ou não.
Porque esse suspense prolonga-se para o segundo e último tomo desta história profundamente humana e realista, que neste álbum se conclui, melhor, que é suspensa, 10 dias antes de ser narrada.

A reter
- A originalidade do relato.
- A forma como o autor marca os tempos, as pausas, o ritmo da leitura.
- A expressividade dos rostos, a naturalidade dos movimentos, a credibilidade da história, a humanidade das personagens, a força das emoções expressas.
- As belíssimas pranchas que Davodeau nos oferece, em especial graças aos tons suaves que utilizou para as colorir.
- Enfim, tudo.

05/05/2010

Peter O’Donnell (1920-2010)

Peter O’Donnell faleceu na noite do dia 3, poucos dias depois de ter completado 90 anos. Britânico, nascido a 11 de Abril de 1920, distinguiu-se como criador de Modesty Blaise, uma aventureira que protagonizou uma tira diária de imprensa que começou a ser publicada em Inglaterra, no The Evening Standard, há exactamente 47 anos, depois de ter sido recusada por outros jornais devido à audácia de algumas imagens.
Inspirada na literatura de espionagem, Modesty no início era uma jovem amnésica, fugitiva de um campo de refugiados grego após o final da II Guerra Mundial, e que vivia de expedientes pouco lícitos. Viria mesmo a dirigir uma organização criminal chamada Network, antes de se tornar uma das mais distintas agentes secretas ao serviço de Sua Majestade britânica. Bela, sensual e sedutora, apesar dessa nova faceta não ganhou muitos escrúpulos nem deixou de frequentar o submundo, tendo como único amigo William Garvin, um antigo mercenário.
O responsável pelo desenho era Jim Holdaway que após a sua morte, em 1970, seria substituído sucessivamente por Enrique Romero, John Burns, Patrick Wright e Neville Colvin. Até ao final da série, a 11 de Abril de 2001, foram publicadas 10183 tiras diárias, correspondentes a quase uma centena de aventuras, tendo algumas delas aparecido nas páginas do Diário Popular, em meados dos anos 1980, época em que a Gradiva editou um tomo único com três histórias, intitulado “Aventuras completas de Modesty Blaise”.
Peter O’Donnell escreveu também três dezenas de romances com as suas aventuras, bem como diversos romances históricos sob o pseudónimo de Madeleine Brent. Modesty Blaise protagonizou ainda dois filmes e um episódio piloto para televisão, que não teve sequência.

(Versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias de 5 de Maio de 2010)

04/05/2010

Cadavre Exquis

Pénélope Bagieu (argumento e desenho)
Gallimard
França, Abril de 2010
175 x 245 mm, 128 p., cor, cartonado

Resumo 
Zoé leva uma vida vazia e sem objectivos, entre o seu trabalho como hospedeira de acolhimento em eventos e salões, de produtos tão diversos como queijos ou automóveis, e as noites passadas com o seu companheiro, mais interessado em comida na mesa e sexo do que em partilhar a vida. Thomas Rocher é um (ex-)escritor de sucesso, em falha de inspiração, que vive como um autêntico recluso no seu apartamento de onde nunca sai. O acaso vai fazer com que os dois se cruzem e com que as suas vidas se modifiquem totalmente.

03/05/2010

Quadrinhos em Quadrinhos

Se é verdade que prefiro – de longe – ler em papel (pelo cheiro, a textura, o peso…), isso não impede que pontualmente faço algumas leituras na internet. Embora geralmente isso aconteça face à inexistência de uma versão no suporte físico.
É o caso das bandas desenhadas publicadas no blog Quadrinhos em Quadrinhos, que têm a particularidade de serem recensão crítica de álbuns (editados no Brasil). E a curiosidade de cada uma ser escrita e desenhada no estilo da obra em análise, com as personagens originais como protagonistas.
Até agora foram contempladas “Copacabana”, de Sandro Lobo e Odyr Bernardi, “O Chinês Americano” (“American Born Chinese”), de Gene Luen Yang, “Aya de Yopougon 1”, de Marguerite Abouet e Clément Oubrerie, uma homenagem a Glauco (1957-2010), “Jimmy Corrigan - o menino mais esperto do mundo” (“Jimmy Corrigan - The Smartest Kid on Earth”) de Chris Ware, “Fracasso de Público: Heróis Mascarados e Amigos Encrencados” (“Box Office Poison”), de Alex Robinson, e “Gourmet”, de Masayuki Kusumi e Jiro Taniguchi.
O responsável pelo blog (e pelas bandas desenhadas, de periodicidade quinzenal) é Audaci Júnior, (também) autor de BD, crítico e cineasta, autor de uma curta-metragem em imagem real baseada na BD “O Gosto da Ferrugem, de José Carlos Fernandes, de quem tem na calha a crítica a “A Pior Banda do Mundo”… em BD!
Se é verdade que o modelo tem algumas limitações – até porque o espaço disponível não é (não pode ser) muito – a visita e a leitura (mesmo online!) justificam-se plenamente.

02/05/2010

As Melhores Leituras de Abril

Alix - Garra Negra (ASA+Público), de Jacques Martin (argumento e desenho)
Animal'z (ASA), de Enki Bilal (argumento e desenho)

Cadavre Exquis (Gallimard), de Pénélope Bagieu
Cartoons do ano 2009 (Assírio e Alvim ), de António, André Carrilho, Augusto Cid, Cristina Sampaio, António Jorge Gonçalves e Maia (cartoons)
Faire le Mur (Casterman), de Maximilien Le Roy (argumento e desenho)
Hellboy – Terras Estranhas (G. Floy Studio), de Mike Mignola (argumento e desenho) e Dave Stewart (cor)
Incognito #1 - Project Overkill (Delcourt), de Ed Brubaker (argumento), Sean Phillips (desenho) e Val Staples (cor)
J. Kendall – Aventuras de uma Criminóloga – Almanaque Mistério 2009 (Mythos Editora), de Giancarlo Berardi (argumento e guião), Maurizio Mantero (guião) e Steve Boraley (arte)
Níquel Náusea #7 - Em boca fechada não entra mosca (Devir Livraria), de Fernando Gonsales (argumento e desenho)

Superman & Batman #50 (Panini Brasil)
Tex a cores #1 – O Totem Misterioso (Mythos Editora), de Gianluigi Bonelli (argumento) e Aurelio Galleppini (desenho)

Turma da Mônica Jovem #16 - Monstros do ID Parte 2 (Maurício de Sousa Editora), de Maurício de Sousa

01/05/2010

Para Ver - Ana Madureira na Mundo Fantasma

A galeria Mundo Fantasma, situada na livraria especializada em BD com o mesmo nome, no Centro Comercial Brasília, no Porto, inaugura hoje, às 17h, uma exposição de Ana Madureira, na presença da autora.
Intitulada “A Alma do negócio”, a mostra é composta por 20 ilustrações originais que retratam, através de um desenho sensível e espontâneo, feito de traço frágil e fino, lugares, situações e personagens que nos parecem ao mesmo tempo próximas e estranhas, e evocam histórias que nos soam familiares.
Natural de Espinho, onde nasceu em 1980, Ana Madureira estudou Direito em Coimbra, antes de viver na Holanda e na Índia. Actualmente divide o seu tempo pelo teatro e pela música, enquanto intérprete e cenógrafa na companhia Circolando e com o colectivo musical Gudubik, a dança, campo onde faz investigação na CEM, e a ilustração, tendo auto-editado as colecções “Cosido à mão”, em 2003, e “Coração nas mãos”, em 2009, e sido seleccionada para as Mostras Nacionais de Jovens Criadores de 2003, 2005, 2006, 2007 e 2009, e para a XIII Bienal de Jovens Artistas da Europa e Mediterrâneo, realizada em Itália, em 2008.


(Texto publicado no Jornal de Notícias de 1 de Maio de 2010)

30/04/2010

Alix, o intrépido

Jacques Martin (argumento e desenho)
ASA (Portugal, Abril de 2010)
302 x 225 mm, 64 p., cor, cartonado

Parece resposta ao meu post de há dias, mas é pouco provável que o seja.
De qualquer forma, a notícia é que a partir de hoje está disponível (apenas) nas lojas FNAC uma edição limitadíssima de 300 exemplares da colecção Alix em capa dura, com grafismo igual aos volumes já editados pela ASA.
Serão editados dois álbuns por mês, pela mesma ordem em que estão a ser lançados com o jornal Público. Ou seja, é desde já possível comprar “Alix, o intrépido” e “A esfinge de ouro”, custando cada volume 14,90€.

29/04/2010

Cartoons do ano 2009

António, André Carrilho, Augusto Cid, Cristina Sampaio, António Jorge Gonçalves e Maia (cartoons)
José Miguel Tavares (introdução)
José António Lima (comentários)
Assírio e Alvim (Portugal, Fevereiro de 2010)
245 x 288 mm, 128 p., cor, cartonado


Fossem assim todos os livros de História e os seus leitores seriam certamente mais. Ou pelo menos, a sua leitura constituiria um maior divertimento.
É verdade que talvez não houvesse tantos historiadores – e isso seria mau? – pois raros são aqueles capazes de sintetizar com meia dúzia de traços, umas pinceladas de cor, um eventual texto curto e com muito humor, ironia e/ou mordacidade acontecimentos marcantes e que tanto (nos) marcaram ao longo de um ano. Sejam eles as tristezas da (nossa) política(zinha), as tragédias que assolaram o planeta, as guerras que teimam em persistir, a meia dúzia de disparates dos (pequeninos) ditadores do costume ou as exibições (em bicos dos pés) dos (aspirantes a) artistas habituais.
Porque este (belo) álbum, em pouco mais de uma centena de páginas, noutros tantos (tantos) cartoons (muito) inspirados, que nos fazem voltar atrás recorrentemente, relembra-nos o que foi o ano de 2009, dos casos aos acontecimentos, dos (tristes) anões aos (verdadeiros) gigantes que os fizeram acontecer.
Com a vantagem de que a sua leitura não nos deixa o travo amargo que a recordação deles provoca, antes planta um belo sorriso nos lábios e até dá ânimo para vivermos 2010, tendo no horizonte a esperança de novo tomo compilatório deste ano, em cartoons.
Pelo menos, enquanto nos deixarem ir rindo com eles (e deles) porque – estou tristemente convencido disso – o sentido de humor de muitos (dos retratados?) não chega para que percebam a ironia da divertida introdução de João Miguel Tavares, levando-a a sério e pensando em pô-la em prática...


(Texto publicado originalmente a 24 de Abril de 2010, na página de Livros do suplemento In’ da revista NS, distribuída aos sábados com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias)

28/04/2010

Incognito #1 - Projet Overkill

Ed Brubaker (argumento)
Sean Phillips (desenho)
Val Staples (cor)
Delcourt (França, Abril de 2010)
173 x 264 mm, 160 p., cor, cartonado


Resumo
Zack Overkill é um ex-super-criminoso, hiperviolento e amoral, que após a morte do seu irmão gémeo, Xander, decidiu denunciar os seus chefes à polícia, em troco de imunidade total e da participação num programa de protecção de testemunhas. Para isso, teve de se sujeitar a um tomar um medicamento que o priva das suas capacidades extraordinárias (força, impulso, desprezo pela morte…) devidas a um perigoso soro, e de assumir um emprego como arquivista num escritório banal.
No entanto, uma experiência com drogas, fá-lo recuperar os seus poderes, mas desta vez direccionando-os para fazer combater pequenos criminosos, como ladrões e violadores. Só que o seu regresso não passa despercebido às autoridades nem aos seus antigos empregadores, iniciando-se então uma caçada impiedosa na qual as vitimas colaterais não são importantes nem contadas.

Desenvolvimento
Escritor de (merecido) sucesso no meio dos comics de super-heróis, Brubaker tem aqui uma história que, podendo ser incluída no género, devido a alguns dos seus pressupostos – seres com super-poderes, embora sem nenhum protagonista conhecido, sociedades secretas, conspirações, sábios loucos - apresenta algumas diferenças fundamentais que a empurram mais para os terrenos do romance negro.
Desde logo pelo tom sombrio da narrativa e de (quase) todos os cenários em que ela se desenrola, para o que contribuem sobremaneira os tons escuros utilizados por Val Staples para pintar o traço agreste e duro de Phillips, não especialmente agradável mas eficaz e muito adequado ao contexto.
Depois, pela inclusão de cenas de sexo, moderadas quando avaliadas pelos padrões da BD europeia, mas nada habituais nos comics, e também pela violência extrema de algumas sequências, como a que surge logo na segunda vinheta, quando Overkill esmaga a cabeça de um homem contra uma parede.
Mas acima de tudo, o que marca a diferença e faz deste livro uma obra aconselhável, independentemente do género em que a queiramos classificar, é a forma como Brubaker coloca questões sobre a natureza humana, sobre o que leva um homem a tornar-se um criminoso, partindo da dualidade com que Overkill se debate, dividido entre a sua nova existência e a possibilidade de regressar ao passado, hesitante em manter a sua existência anónima e anódina ou regressar às primeiras páginas dos media, dividido entre continuar subjugado às forças que o controla(ra)m ou tentado a marcar o seu próprio percurso. E fá-lo especialmente através do uso da voz-off com que o protagonista narra grande parte da história, ao mesmo tempo que revela o seu interior torturado e tortuoso e o caos que a sua vida sempre foi.
Ao longo do relato, que avança a uma velocidade trepidante, sem tempos mortos nem momentos de reflexão, Zack Overkill vai-se cruzar com antigos aliados e inimigos e reviver acontecimentos (alguns dolorosos…) que julgava esquecidos para sempre, e vai ser obrigado a fazer escolhas, ao mesmo tempo que descobre segredos perturbadores sobre o seu passado e a sua origem, menos “normal” do que ele pensava.
Até ao final, incómodo, com algo de redentor mas também de passo em frente para o abismo, no qual a vitória do bem (?) fica ligada à sua incapacidade de controlar os seus impulsos violentos e destrutivos…

27/04/2010

Faire le Mur

Maximilien Le Roy (argumento e desenho)
Casterman (França, Abril de 2010)
170 x 240 mm, 96 p., cor, brochado com badanas

Resumo
Esta é (uma parte d)a história de Mahmoud Abu Srour, um jovem palestiniano de 22 anos que vive no campo de refugiados de Aida, na Cisjordânia.
Ele trabalha na mercearia da família, onde foge do quotidiano através dos seus desenhos e dos sonhos que tem com as jovens ocidentais que por vezes passam por lá. Como Audrey, uma francesa que deverá chegar dentro de dias para passar com ele o fim-de-semana, em casa de uma irmã. Só que para isso, terá que ignorar as leis (impostas) e ultrapassar o muro construído pelos israelistas…

Desenvolvimento
Este é um reato assumidamente subjectivo e politizado. Porque escrito na primeira pessoa (embora por entreposto autor). Porque relata experiências vividas. Porque só mostra – só pode mostrar – o seu próprio ponto de vista, só narra aquilo que sentiu na pele, só revela o que viveu do lado de lá… do muro que separa os territórios palestinianos… do resto do mundo (que por vezes se diz civilizado). Porque fala de uma realidade que os países ocidentais não conseguem (não querem...?) resolver.
Mahmoud Abu Srour - Maximilien Le Roy em sua vez, num relato em que o tom utilizado é antes de tudo autobiográfico…, se assim se pode dizer - conta-nos episódios diversos da sua vida, por vezes narrados em curtos flashbacks, a preto e branco ou entremeado com alguns dos seus esboços, feitos com cores vivas, que contrastam com os tons esverdeados que dominam a narrativa principal. Conta como o terreno que o pai possuía lhes foi retirado pela força para ser construído um colonato judaico, algumas (más) experiências com a polícia ou o exército israelita, os expedientes para atravessar o muro quando não se tem autorizações válidas, a revolta perante aqueles que pactuam com os ocupantes, a incompreensão face à não-actuação da ONU e dos outros países…
Apesar de tudo isto, de Maximilien Le Roy explanar muitas das ideias– e ideais – de Abu Srour e das razões e motivos que estão na sua origem, num longo solilóquio, raramente quebrado por diálogos pontuais com outras personagens, a leitura faz-se de forma agradável e a narrativa, se bem que de ritmo (propositadamente) lento, para o leitor poder pesar cada palavra, cada silêncio, está longe de se tornar maçadora ou desinteressante. Pelo contrário prende e cativa, é incómoda, até, deixando no final uma sensação de angústia face à nossa impotência perante a realidade exposta.

A reter
- A forma como Le Roy se identificou totalmente com Abu Srour.
- O modo como o autor faz respirar o texto, através da visualização fragmentada de pequenos gestos quotidianos, como o acender do cigarro nas quatro vinhetas que compõem a prancha da página 8, aqui reproduzida.
- A textura do desenho, devida ao papel utilizado.

Curiosidades
- O livro inclui, no seu final, uma fotobiografia de Mahmoud Abu Srour, uma reportagem fotográfica de Maxemce Emery na Palestina e uma entrevista com Alain Gresh, um jornalista especializado no Médio Oriente.

26/04/2010

Tim-Tim repórter d’O Papagaio

Se a publicação de Tintin, a criação máxima de Hergé, ficou como o grande feito de O Papagaio, os seus leitores tiveram que esperar quase um ano, até ao nº 49, de 19 de Março de 1936, para o herói ser anunciado na revista, como seu repórter na “América do Norte, país civilizadíssimo, donde nos chegam as maiores invenções e belas afirmações de espírito artístico” mas que é também “infelizmente, um território onde o banditismo impera, no qual indivíduos da pior espécie e de todas as nacionalidades estabeleceram de há muito arraiais”. A Milu, seu companheiro de sempre, a revista trocava o nome e o sexo, anunciando-o(a) como “a cadelinha Pom-Pom” porque, explica José Azevedo e Menezes em “O Papagaio – Um estudo do que foi uma grande revista infantil portuguesa” (2ª edição, do autor, 2007), citando Dias de Deus: “nO Papagaio já havia uma Milu, Maria de Lurdes Norberto, que recitava e cantava aos microfones das emissões infantis; Simões Müller entendeu que não ficaria bem dar o nome de uma menina conhecida a uma cadela”… Dois números depois, em novo anúncio, já na capa, o seu nome passava a Rom-Rom mas o sexo trocado manter-se-ia até ao fim da revista. Também o Capitão Haddock e o professor Tournesol foram rebaptizados, passando, respectivamente, a Capitão Rosa e Professor Pintadinho…
Finalmente, no nº 53, logo na capa, com cores vivas (e hoje exageradas) começavam as “Aventuras de Tim-Tim na América do Norte”, pela primeira vez em policromia em todo o mundo. Sinal de outros tempos, o respeito pelos originais de Hergé era pouco ou mesmo nenhum, sendo normal as pranchas serem retalhadas e remontadas, em função do espaço disponível ou a ocupar. Artur Correia, autor português de BD, ainda em actividade, numa entrevista publicada no Mundo de Aventuras 248 (5ª série, de 1978) lembra que nO Papagaio “alargava juntamente com um talentoso moço chamado Soares, os desenhos das histórias do Tim-Tim para virem publicados na página central. Nós é que fazíamos os acrescentos para transformar uma página única numa dupla”...
Modificações que também se faziam sentir ao nível dos textos, a começar logo com “Tim-Tim na América”: na fase final da história, os operários ausentes da fábrica onde o herói sofre um atentado, em greve (proibida no nosso país) no original, tinham saído para almoço… Seguir-se-ia “Tim-Tim no Oriente” (Os Charutos do Faraó, publicado do #115 ao #161), no qual o vendedor de banha da cobra Oliveira de Figueira, o único figurante luso de relevo criado por Hergé, era apresentado como… espanhol! Depois, viriam as “Novas Aventuras de Tim-Tim” (“O Lótus Azul”, #166-#205) e a aventura africana do “repórter que nunca escreveu uma linha”, que o levou a pisar solo (colonial) português em “Tim-Tim em Angola” (“Tintin no Congo”, #209-#244). Já em “O Mistério da Orelha Quebrada” (#247-#298), o general Alcazar é rebaptizado de Manduca, para não ser associado ao episódio, então recente, do cerco do Alcazar de Toledo durante a Guerra Civil espanhola. No episódio seguinte, “A Ilha Negra” (#301-#359), o adversário do herói deixou de ser o Dr. Müller (para não ser entendido como piada ao então já ex-director da revista), transformando-se num banal Dr. Silva, e em “Tim-Tim no deserto” (“O caranguejo das tenazes de ouro”, #366-#426), Haddock, que no original se sentia mal depois de beber um copo de água (por não ser de uísque) nas páginas de O Papagaio, sente-se mal mas melhora depois de beber a água! A aventura seguinte (“A Estrela Misteriosa”, #435-#540) é publicada sem título e a presença de Tintin na revista portuguesa terminaria com “O Segredo da Licorne” (#617-#679).
Para além disso, Tintin surgiu em muitas capas de O Papagaio (cujas revistas correspondentes são hoje avidamente disputadas pelos coleccionadores), em desenhos originais ou feitos por autores portugueses, como boneco articulado de montar e mesmo noutras histórias, como é o caso da primeira aventura do “Boneco Rebelde”, de Sérgio Luiz e Guy Manuel, em que contracena com o protagonista nas páginas iniciais, e como despoletador da acção em “Na pista de Tim-Tim”, de Diniz de Oliveira e Rodrigues Neves.
Pelo meio, ficaram também as tentativas goradas de Simões Müller de o levar consigo para o “Diabrete” (o que só conseguiu após o fim de O Papagaio), onde teve de se contentar com “Trovão e Relâmpago” (aliás “Quick et Flupke”), inicialmente publicados sem conhecimento de Hergé, e o facto de parte dos direitos de Tintin terem sido pagos em géneros, mais exactamente em latas de sardinhas, enviados para a Alemanha onde estava preso o irmão do desenhador belga.

(Texto publicado no dia 17 de Abril de 2010 na revista NS, distribuída ao sábado com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias)

25/04/2010

Adolfo Simões Müller, um homem dos (setenta e) sete instrumentos

Lisboeta, nascido a 18 de Agosto de 1909 – o centenário passou de forma discreta há menos de um ano… - Adolfo Simões Müller, depois de ter frequentado o curso de medicina, foi jornalista, pedagogo, dramaturgo, produtor de programas radiofónicos e director do gabinete de estudos da Emissora Nacional. E também tradutor, adaptador, poeta e prosador, autor de mais de sete dezenas de obras infanto-juvenis (como Caixinha de Brinquedos e O Feiticeiro da Cabana Azul, galardoadas com o Prémio Nacional de Literatura Infantil em 1937 e 1942, respectivamente), folhetins radiofónicos, inúmeras adaptações de clássicos da literatura, romanceador de biografias de figuras de referência da nossa História, assim como de vultos da Humanidade. Para além disso, foi também argumentista de BD, colaborando com muitos dos autores que passaram pelas revistas que dirigiu, merecendo lugar de destaque as suas parcerias com Fernando Bento. Também por isso, é um dos nomes fundamentais do jornalismo infanto-juvenil em Portugal das décadas de 1930 a 1970, onde deixou marcas profundas como director de O Papagaio (1935), onde estreou Tintin, Diabrete (1941), Cavaleiro Andante (1952), Falcão (1958), Foguetão (1961), onde publicou Tintin au Tibet na versão original francesa, com a tradução em rodapé (!) e apresentou Astérix pela primeira vez (a preto e branco) aos leitores portugueses, ou Zorro (1962).
Recebeu o Grande Prémio da Literatura Infantil da Fundação Calouste Gulbenkian pelo conjunto da sua obra, em 1982 e viria a falecer a 17 de Abril de 1989 tendo, um ano depois, a Editorial Verbo instituído um prémio com o seu nome, para homenagear a sua memória e estimular a revelação de novos autores.

(Texto publicado no dia 17 de Abril de 2010 na revista NS, distribuída ao sábado com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias)

Há 75 anos voava O Papagaio

No passado domingo, passaram 75 anos sobre o lançamento de O Papagaio, revista que, juntamente com o Mosquito, Mundo de Aventuras, Diabrete, ou Cavaleiro Andante, formou e fez sonhar muitas gerações portuguesas ao longo de décadas.
Foi a 18 de Abril de 1935 que O Papagaio abriu pela primeira vez, se não as suas asas, pelo menos as suas páginas às mãos e olhos ávidos dos miúdos a quem a revista se destinava, como se lia por baixo do seu cabeçalho, ao lado do qual também estava o preço – elevado para a época - de 1$00. No interior desse número inaugural – como durante o resto da sua vida, onde nunca ocupou mais de um terço das páginas - a banda desenhada – então chamada histórias aos quadradinhos pois o francesismo só entraria em uso décadas depois – era pouca, limitada a uma prancha de Tom (Thomaz de Melo, um dos responsáveis pela capa e pelo grafismo atraente da novel publicação), intitulada “Sabichão em calças pardas”, e meia prancha de Stuart Carvalhais, com os seus Quim e Manecas. Nas suas páginas, a preto e branco, uma ou várias cores, a prioridade era dada a contos, curiosidades, passatempos e concursos, tudo com um forte pendor didáctico e formativo, algo perfeitamente normal na época.
Publicação católica, semanal, com saída às quintas-feiras, propriedade da Renascença, tinha como director um dos maiores nomes que o jornalismo infanto-juvenil português conheceu, Adolfo Simões Müller.
A revista viria a durar 722 números, com altos e baixos, como é incontornável, e dela ficou como principal imagem de marca ter servido de modelo a muitos dos títulos infanto-juvenis lançados nos anos seguintes e o ter publicado – como estreia fora da francofonia e pela primeira vez a cores em todo o mundo – as aventuras de um certo Tintin. Hergé, o seu autor, no entanto, seria um dos poucos autores estrangeiros publicados em O Papagaio, juntamente com Jacobsson, Urátegui, Gordillo, Walter Booth e poucos mais, uma vez que a aposta principal de Müller foi sempre para os autores nacionais, alguns dos quais começaram ainda adolescentes nas suas páginas. Foi o caso de José Ruy, hoje um veterano, especialista em temas históricos, e o autor português com mais álbuns editados, que lá publicou as suas primeiras histórias aos quadradinhos quando contava apenas 14 anos, curiosamente todas no domínio da ficção.
Outros nomes nacionais que desempenharam um papel significativo no sucesso de O Papagaio, para além do já citado Tom, foram José de Lemos (responsável por toda a parte gráfica, após a saída daquele), Arcindo Moreira, Meco ou Rodrigues Neves. Mas, afirmam João Paiva Boléo e Carlos Bandeiras Pinheiro em “A Banda Desenhada Portuguesa 1914-1945” (Fundação Calouste Gulbenkian, 1997), deve-se aos irmãos Sérgio Luiz e Guy Manuel, precocemente desaparecidos, “a mais imorredoira criação de O Papagaio”, o Boneco Rebelde, protagonista de quatro aventuras.
Como casos peculiares há que citar ainda José Viana, o actor e humorista, autor de diversas bandas desenhadas de crítica de costumes, e Júlio Resende, hoje pintor de renome, então animador das festas e das emissões radiofónicas e criador do “emblemático Fagundes Arrepiado” que, escrevem Boléo e Pinheiro, revelava “um humor subtil e desconcertante, inteligente e invulgar, com uma originalidade que lhe vem de uma ironia natural”, e que também engrossaram, com engenho e mérito, o número de colaboradores da publicação. Por ela passariam ainda, embora de forma breve, nomes depois consagrados da 9ª arte nacional como Artur Correia, Vítor Péon ou José Garcês.
Com o modelo consolidado, apoiado também em separatas com banda desenhada ou construções de armar, concursos variados, no incentivo à correspondência por parte dos leitores e num programa radiofónico que alcançou grande sucesso, Simões Müller sairia no número 302, para dirigir o novo “concorrente” Diabrete, sendo o cargo de director assumido sucessivamente por Artur Bivar, José Rosa Ferreira e Laurinda Borges Magalhães.
Se, consensualmente, os primeiros cinco anos foram os melhores, os últimos foram de natural declínio, provocado também pelo aparecimento de novas propostas de uma concorrência forte (Mosquito e Diabrete), tendo O Papagaio, enquanto publicação autónoma, calado a sua voz a 10 de Fevereiro de 1949, 14 anos mais tarde, no nº 722. Teria ainda uma segunda vida, como secção da revista Flama, durante 96 números, até 9 de Fevereiro de 1951, mas já sem grande relevância.
“No período final”, escreve António Dias de Deus em “Os Comics em Portugal – uma história da banda desenhada” (Livros Cotovia, 1997) O Papagaio “era um semanário que (…) chegava pontualmente a casa dos paizinhos assinantes, que pretendiam uma sólida formação moral para os seus rebentos. Às escondidas os miúdos iam ler “O Mosquito” emprestado…”
Eram sinais d(e nov)os tempos que O Papagaio tinha ajudado a preparar.

(Texto publicado no dia 17 de Abril de 2010 na revista NS, distribuída ao sábado com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias)
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