21/06/2022

Dante

...como?

"- (...) depois disto não vou voltar a espreitar para debaixo da cama para ver se há monstros..."
"- Pois... não vale a pena. Eles estão por todo o lado..."
In Dante

Luís Louro é um caso à parte no panorama da banda desenhada portuguesa.
Surgido na década de 1980, revelou uma capacidade de trabalho invulgar para o meio, traduzida na edição regular de novas obras e, em paralelo, sem qualquer desprimor, a aposta numa banda desenhada mais comercial, pela temática humorística e brejeira e pelo traço agradável e personalizado que o levou a desenvolver uma base de fãs que lhe são fiéis.
"Dante", recém-lançado pela Ala dos Livros, é o seu trabalho mais ambicioso, não só pela sua dimensão mas pela temática mais delicada e pelas múltiplas referências que o autor cruza nele, desde a óbvia "A divina comédia" do autor que lhe dá título, a outras como "O Capuchinho Vermelho", Tolkien ou "Peter Pan", para além das auto-citações que farão as delícias dos leitores fiéis que o desenhador e argumentista conquistou e cultivou ao longo dos anos.

Tudo começa algures em França, aquando da ocupação nazi durante a II Guerra Mundial, quando um caça alemão é abatido numa zona campestre. A paisagem bucólica, até aí isenta (?) da brutalidade do conflito, é invadida por soldados que pretendem recuperar o piloto.

Um comando nazi, ocupa a pequena casa onde Dante, de 10 anos, vive com a mãe, cega, alterando a normalidade até aí possível e trazendo a bestialidade do conflito para as suas vidas. Um acontecimento traumático, a cuja essência o leitor assistirá no crescendo de realismo cruel das primeiras páginas, que de certa forma contrasta com o traço personalizado semi-caricatural de Luís Louro, e irá levar o adolescente a fugir de casa e a embrenhar-se na floresta, de que as lendas locais aconselham distância.

Elegia anti-bélica, que tendo a II Guerra Mundial como motivo, se revela intemporal e ganha outra relevância no momento que vivemos, "Dante" sofre nesse ponto uma completa mudança de rumo, mergulhando o leitor num ambiente fantástico, povoado por duendes, elfos, monstros e outros seres que todos julgamos imaginários, mas onde a guerra continua patente com todos os horrores que lhe associamos.

Se é verdade que o lado negro de "Dante" talvez pedisse um traço mais realista, um pouco mais duro e sério, é forçoso admitir que o traço vivo e dinâmico característico do autor, a grande expressividade das suas personagens e as composições de tiras e vinhetas por vezes em duas páginas se revelam ideais, tanto para ridicularizar os monstros que assumem o papel de vilões, quanto para destacar o lado mais maravilhoso e positivo do relato.

Que esteve quase a ser completamente arrasado pelo que os nossos olhos contemplam na centésima página que, a confirmar-se, seria um autêntico murro no estômago dos leitores... Faltou coragem a Luís Louro ou a sua crença na esperança e em dias melhores foi mais forte?

Em mais uma belíssima edição da Ala dos Livros, o generoso caderno com mais de duas dezenas de páginas que encerra o livro, com muitos esboços e comentários de Louro, para além de revelar diversos aspectos do seu método de trabalho, confirmam o rigor e a pesquisa subjacentes a uma obra, mesmo quando, aparentemente, eles não eram necessários. A título de exemplo, veja-se a seriedade com que o autor dotou os 'nazis' com armamento e acessórios reais.


Provocação...?

Ao fazer a releitura de Dante, dei por mim a imaginá-lo com um grafismo diferente - mal comparado, e sem chegar a esse extremo, um pouco como fez Larcenet em O Relatório de Brodeck - e imaginei o lado trágico predominante no relato reforçado por um traço mais realista, mais duro, mais sombrio - que Luís Louro até aflora aqui e ali..., num álbum em que é notório um certo caminhar nesse sentido.

E, possivelmente, sem os entreactos (mais) cómicos e as alusões (mais) maliciosas que de certa forma (também) são a sua imagem de marca..., transformados 'apenas' em violência sexual explícita.

Essa 'revolução' poderia funcionar e propiciar-nos uma obra (ainda) mais dura e cruel mas, sem dúvida, seria outra história...


Dante
Luís Louro
Ala dos Livros
Portugal, Maio de 2021
235 x 310 mm, 128 p., cor, capa cartão
26,50€

(versão revista do texto publicado no Jornal de Notícias online de 10 de Junho de 2022 e na versão em papel do dia seguinte; imagens disponibilizadas pela Ala dos Livros; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar no texto a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)

2 comentários:

  1. Sem dúvida um excelente trabalho do nosso Luís e a Ala dos Livros continua a surpreender-nos com edições de excelente gosto e toques requintados. São livros que adoramos folhear e sentir. Agora, caro Pedro, parece-me isso sim, uma provocação, comparar, ainda que por suposta mudança de grafismo, este bom livro do Luís Louro com a magnificência dessa obra-prima da BD que Larcenet assinou com o Relatório de Brodeck e que é, para mim, o melhor livro de BD que li entre os muitos milhares que já folheei e interpretei nestes também já muitos anos de vida

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    1. Eu não comparei as histórias, apenas 'desafiei' o Luís Louro ( e os leitores) a imaginarem Dante com um grafismo mais realista. Ou seja, com o Luís Louro a fazer um corte radical com o seu grafismo tradicional, tal como 'mal comparado' fez Manu Larcenet no Relatório de Brodeck...
      Boas leituras!

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