Ouçam como eles falam!
Se a anterior visita à pequena aldeia de Notre-Dame-des-Lacs, me levou a abordar esta belíssima série pela óptica dos eloquentes silêncios em que ela é fértil, no seu regresso neste díptico Ernest Latulippe-Charleston vou chamar a atenção para algo completamente oposto: a sua eloquente verve.
Primeiro, um breve resumo: desejado por todos, o regresso de Marie de Montréal, vai trazer consigo os ares do progresso, os hábitos da cidade grande, os ventos do progresso, com resultados imprevisíveis, novos choques entre a tradição e as mudanças, em mais um delicioso duplo capítulo desta crónica humana, sensível, ternurenta e bem-humorada.
Se parte significativa - na definição do que à a vida na aldeia, no campo e na exposição púdica das emoções e sentimentos - da narrativa de Armazém Central é feita através de sequências mudas que exigiriam muitas pranchas dialogadas para expressar o que Tripp e Loisel conseguem numa mão cheia de vinhetas, os diálogos têm igualmente um papel preponderante no avanço do relato.
Se o que acabei de escrever parece uma daquelas óbvias verdades de La Palisse, a forma que eles assumem e a sua disposição orgânica nas pranchas, elevam-nos a um outro nível.
O primeiro daqueles aspectos é evidente: os diálogos desta série assumem uma naturalidade, uma credibilidade e até uma musicalidade que os tornam uma delícia e parte fundamental na caracterização da pequena comunidade do Quebeque de há um século atrás.
Mas, em Armazém Central, os diálogos são mais do que simples troca de palavras - mesmo que marcantes e decisivas - entre as personagens. Pela forma como os respectivos balões estão colocados nas vinhetas e pelo encadeamento sequencial que assumem, muitas vezes são eles que nos guiam pelas pranchas, pautando o ritmo e definindo o sentido de leitura - que muitas vezes foge às habituais sequências cima/baixo-esquerda/direita. E Loisel e Tripp conseguem-no de forma tão natural, que o próprio leitor nem se apercebe que está a ser empurrado a ‘infringir’ uma das regras fundamentais da leitura de banda desenhada.
Para além disso - ia escrever para ‘complicar mais’, mas nada seria mais errado e falso - os autores muitas vezes optam por incluir nas cenas desenhadas diálogos que têm lugar noutro local. Dessa forma, conseguem uma narrativa dupla, com a acção a avançar em simultâneo em diferentes localizações, sendo diferente o que vemos e (parte d)o que ouvimos . Veja-se, a título de exemplo, a recepção dos habitantes a Marie e Jacynthe quando elas regressam de Montreal, com todos a querer cumprimentá-las e saber as novidades, ao mesmo tempo que Gaëtan experimenta a surpresa que elas lhe trouxeram. Se as imagens com a confusão das saudações - e com parte dos diálogos - nos mostram o que decorre perante os nossos olhos, há um outro momento em curso, desfasado dos desenhos, fora da nossa vista, em que o monólogo de Gaëtan nos deixa curiosos ao longo de algumas páginas: afinal o que é que elas lhe trouxeram?
Mas, mais uma vez, é tal a mestria com que Tripp e Loisel gerem os diálogos, a planificação e a sequência narrativa que, para o leitor, tudo surge naturalmente, como se a banda desenhada - toda a banda desenhada - fosse sempre assim.É pelos diálogos - também, a par dos silêncios, da humanidade, do humor, do traço, das cores… - que Armazém Central é uma das séries do século - de sempre - e só posso recomendar o mais possível esta série e a sua leitura.
Até às lágrimas
Não era o objectivo deste texto, mas não resisto a referi-lo: se o humor em Armazém Central é geralmente terno, bem-disposto e ligeiro, desta vez tem uma cena que me fez rir até às lágrimas. Refiro-me, obviamente, ao entreacto - e há muitos, aparentemente banais e desnecessários, mas que são peças do imenso puzzle que define a caracterização de Notre-Dame-des-Lacs e dos seus habitantes - francamente cómico, quando, a páginas tantas de Charleston, contracenam o padre Réjean, as cunhadas Gladu e o ursinho Roger-Roger. Leiam, releiam - a cena e o seu seguimento - e vejam lá se resistem…!
A vida por vezes também é assim.
Armazém
Central #6 Ernest Latulippe / #7 Charleston
Régis
Loisel e Jean-Louis Tripp (argumento e desenho)
François
Lapierre (cores)
Arte
de Autor
Portugal,
Outubro de 2021
227
x 302 mm, 152 p., cor, capa dura
29,00€
(imagens disponibilizadas pela Arte de Autor; clicar nesta ligação para ver mais algumas pranchas ou nas imagens aqui mostradas para as aproveitar em toda a sua extensão)
Também adorei. Parabéns à Arte de Autor por nos proporcionar o seguimento da série que a ASA interrompeu
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