03/11/2021

1984 + 1984 + 1984

Comparações

A chegada recente às livrarias de duas adaptações de 1984, de George Orwell, juntando-se a uma terceira com quase um ano, inevitavelmente levanta duas questões: porquê tantas adaptações da mesma obra e qual escolher.
Se a primeira é de resposta fácil, a segunda obriga a um exercício de análise mais extenso.

Deixem-me começar por responder à pergunta inicial. Há duas razões fundamentais para tantas versões da mesma obra em BD. A primeira, o facto de a obra do escritor ter entrado no domínio público este ano. Isso significa que não há necessidade de pagar direitos a ninguém pela publicação ou adaptação das suas obras. A segunda, prende-se pelo renovado interesse que a banda desenhada tem manifestado pela literatura em anos recentes, multiplicando as versões em quadradinhos baseadas em grandes obras (ou não…) da literatura universal. Vão encontrar muitas delas, seguindo esta ligação.

Desta forma e dado a inegável relevância que 1984 continua a ter - mais nos nossos dias do que quando foi escrito em 1948…? - está esclarecida a razão para estarem publicadas entre nós três das quatro versões que viram a luz do dia nos mercados internacionais no último ano.


Por estranho que pareça a alguns, escolher qual delas será a melhor, torna-se um exercício mais difícil. Especialmente porque, para lá chegar, temos primeiro de pensar que tipo de leitor a vai ler. Porque, devo vincar agora, a maioria destas adaptações são primeiramente dirigidas a um público que geralmente não consome banda desenhada.

Para eles, o 1984, de Sybille Titeux de la Croix e Amazing Ameziane, editado pela Cavalo de Ferro, é sem dúvida a mais indicada. Mais próxima da ilustração do que qualquer das outras, pelo abuso frequente da utilização de blocos de texto separados das vinhetas desenhadas propriamente ditas, permite uma leitura menos exigente para quem não tem o hábito de ler BD, que é como quem diz, de fazer a leitura simultânea de texto e imagem. A opção por vinhetas mais amplas e um traço menos detalhado, de certa forma mais limpo e legível, embora sem perder o carácter opressivo do original, são outros factores a ter em conta.


De certa forma, o 1984 de Fido Nesti, que tem edição portuguesa da Alfaguara, que oportunamente analisei aqui, será a versão intermédia entre as três que estou a considerar.

Apesar da grande densidade de texto que utiliza, por vezes de forma redundante, tal como acontece com a versão referida anteriormente - sendo um exercício curioso comparar a ‘parte escrita’ das duas versões - a opção evidente pelo visual 'banda desenhada de planificação tradicional', seguindo uma grelha base de três toras por três vinhetas, bastante densa, aproxima-a mais deste registo. O traço feio e sujo, bem de acordo com o espírito da obra, contribui para transmitir o espírito opressivo e o clima de permanente angústia que perpassa pelas páginas do romance original, e o conjunto pode prender leitores ocasionais tanto quanto leitores de BD.


Finalmente, a versão agora disponibilizada pela Relógio D’água, com a assinatura de Xavier Coste, é indiscutivelmente a melhor banda desenhada e a mais indicada para quem é leitor habitual deste género. Aliás - mas estranhamente - ganhou recentemente o Prémio Uderzo para a Melhor Contribuição para a 9.ª Arte.

Voltando ao livro, e ao que escrevi atrás, por outras palavras, é aquela que vive melhor no actual género narrativo, segundo os seus códigos próprios. Uma reduzida presença de textos de apoio e uma narrativa que avança baseada nos diálogos e, muitas vezes até, apenas nas sequências gráficas, francamente legíveis, justificam aquela afirmação. A impotência do protagonista na fase inicial, a felicidade que encontra nos braços e no corpo de Júlia de seguida, combinada com a esperança numa mudança que nunca acontecerá, e o desespero final são-nos transmitidos de forma bastante palpável, com as diferentes emoções expressas pelas cores utilizadas, a pequenez da personagem face ao gigantismo dos edifícios ou os sucessivos silêncios tão eloquentes.


Do que atrás fica escrito, realço como o mesmo romance pode originar três bandas desenhadas, fiéis ao espírito e à letra do original, mas tão distintas na forma e no estilo.


1984
Adaptação do romance homónimo de George Orwell


Sybille Titeux de la Croix (argumento)
Amazing Ameziane (desenho)
Cavalo de Ferro
Portugal, Agosto de 2021
210 x 280, 240 p., cor, capa dura
24,99 €


Fido Nesti
Alfaguara
Portugal, Outubro 2020
175 x 245 mm, 224 p., cor, capa dura
21,90 €


Xavier Coste
Relógio D’Água
Portugal, Outubro de 2021
248 x 250 mm, 248 p., cor, capa dura
18,50 €

(imagens disponibilizadas pelas editoras; clicar nelas para as apreciar em toda a sua extensão)

5 comentários:

  1. Também opto por essa ordem, mas se tivesse que recomendar um deles, seria o de Nesti.

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  2. Parabéns Pedro por esta análise comparativa e pelas explicações quanto à existência de várias publicações de 1984 em dois anos

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  3. É curioso verificar que nenhuma das editoras que colocaram estas obras no mercado é editora de BD. Talvez isso explique a sobreposição de 3 títulos (4 se contarmos com a obra sobre George Orwell da Ala dos Livros...) num período de tempo relativamente curto. Há que saudar a variedade mas a questão que se coloca é se fará sentido esta dispersão de títulos num mercado ainda demasiado pequeno e com pouca "rotação" de obras publicadas? Pessoalmente a adaptação brasileira de Fido Nesti (edição do ano passado) será aquela que captura melhor alguma da ambiência do romance original, mas é a penas a minha opinião (tenho pena que a edição portuguesa não faça justiça á arte de Nesti e condense demasiado as caixas e balões de texto tornando a experiência de leitura pouco agradável)...

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    Respostas
    1. Possivelmente porque são obras maioritariamente para 'não leitores' de BD...
      Boas leituras!

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