25/10/2010

War Songs

Ivan Brun (argumento e desenho)
Drugstore (França, Setembro de 2010)
215 x 293 mm, 64 p., cor, cartonado

Quais os sons que associámos à palavra ‘guerra’? Gritos de dor, raiva, medo, aflição? Estampidos de bombas, tiros, carros de combate? Assobios de balas, mísseis, aviões? Rajadas de metralhadora, tiros de pistola, disparos de tanques? War Songs é um álbum mudo.
Que imagens associamos à palavra ‘guerra’? Justas medievais? Índios contra cowboys? Combates nas trincheiras? Bombardeamentos e destruição em massa? War Songs é um álbum sobre a invasão do Iraque, sobre as guerras mediáticas e sofisticadas actuais, sobre o terrorismo e (algumas d)as suas causas.
Um álbum só com imagens, sem uma única palavra, embora haja balões com símbolos cuja leitura é universal: comida, dinheiro, alvos, destruição…
Um álbum que conta uma história – igual a tantas histórias – de alguém empurrado para o terrorismo pelas desigualdades mundiais e sociais, pela opressão de um povo, pela força do único poder que hoje em dia existe: o poder do dinheiro, o poder da economia.
Uma história dividida por pequenos episódios, de ritmos diversificados, ao longo dos quais vamos conhecendo o protagonista, o meio em que vive, as necessidades que passa, as diferentes opções que ele e os seus conterrâneos fazem: trabalhar ou lutar, cumprir ou desobedecer…
Pequenos episódios que vão mostrando diferenças que tantas vezes tentamos esquecer: que muitos cães (literalmente) ocidentais comem mais e melhor do que seres humanos de países do terceiro mundo; que as opções correctas nem sempre são (ou parecem…) as mais certas; que são cometidas muitas injustiças quando se usam estereótipos para classificar todos por igual; que a guerra estampada nos jornais e televisões muitas vezes soa asséptica e inconsequente, fazendo esquecer que as vítimas são seres humanos como nós; que por muito bem-intencionada (se isso é possível) que seja uma invasão, quase sempre o quotidiano dos invadidos tende a ficar (bem) pior, apesar de “libertados”.
War Songs – não finalmente, mas para concluir este texto – é um álbum incómodo, que obriga a (re)leitura atenta e a meditar no que se leu, porque quase todas as suas perguntas ficam sem resposta, porque as acusações que faz – a ambos os lados, note-se – são justas e pertinentes.

A reter
- A (triste) actualidade do tema.
- A força de algumas imagens – algumas chocantes até – que incomodam e não deixam o leitor indiferente, apesar da ingenuidade aparente do traço naif com um toque de anime.
Menos conseguido
- A contextualização do álbum na invasão do Iraque o que lhe retira o impacto que uma localização “anónima” poderia ter.
- A dificuldade de interpretação de algumas das imagens (demasiado complexas) utilizadas nos balões, o que retira fluidez à leitura.

24/10/2010

‘Palabéns’ Cebolinha!

Foi há 50 anos já, que chegou à Rua do Limoeiro um certo Cebolinha, baixinho, com apenas cinco fios de cabelo e já com a característica dificuldade de pronunciar os “rr”. Nessa primeira aparição, ainda nas tiras protagonizadas por Bidú (o cãozinho azul nascido em Julho de 1959), saía de uma casota de cão, e revelava a tendência para ferver em pouca água que o acompanharia ao longo dos anos. Mais tarde, viria a saber-se que a sua camisa era verde, os calções negros e os sapatos castanhos, “uniforme” que usaria quase sempre.
Alguns, adivinham em ilustrações anteriores – e numa história de uma página com o seu nome – a “pré-história” (mais cabeluda) do Cebolinha, mas foi nas tiras de jornal que Maurício vendia para diversos jornais brasileiros que se viria a afirmar como uma das mais populares criações dos quadradinhos brasileiros, com direito a revista própria a partir de 1973 e participação em inúmeros filmes, desenhos animados, peças de teatro e artigos de merchandising.
Quando apareceu, não sabia ainda, mas viria a ser adepto do Palmeiras e o “dono da rua” (ou da “lua”, como ele dizia), pelo menos até uma certa Mônica, que nasceria três anos depois, assumir o protagonismo que faria com que o seu nome fosse dado por Maurício de Sousa à turma que foi desenvolvendo com ternura e humor, baseado nos filhos e naqueles que o rodeavam. Como aconteceu com Cebolinha, alter-ego de alguém que o desenhador conheceu na sua infância em Mogi das Cruzes.
Ultrapassado pela “baixinha dentuça”, depois desse dia, nada ficou igual para o Cebolinha, que, julgando-se mais inteligente do que todos, passou a ocupar o tempo a inventar planos infalíveis, iguais no objectivo – derrotar a Mônica - e no resultado – acabar derrotado, quase sempre depois de levar com Sansão, o coelho de peluche dela.
Pelo menos, até o dia em que cresceu – corria já o mês de Agosto de 2008 – tornando-se jovem como a restante turma, numa existência paralela, pois o Cebolinha “pequeno” continua a divertir os seus leitores. Deixou o colorido – na prática voltou ao preto e branco original – e, agora em estilo manga (bd japonesa), chama-se só Cebola, só troca “rr” por “ll” quando está nervoso e passou a ter como objectivo conquistar o coração da antiga “inimiga”. Com ela, como reflexo de uma nova geração que Maurício quer conquistar, vive aventuras do dia-a-dia (e também outras mais fantásticas) e até já trocou alguns beijos.
E no futuro, quem sabe, se um dia o dese-nhador, já com 75 anos, decidir criar a Turma da Mônica Idosa, Cebolinha, voltando à infância, quase careca e já muito rezingão, pouco terá a mudar!

(Versão expandida do texto publicado no Jornal de Notícias de 24 de Outubro de 2010)

23/10/2010

Fernando Bento em Viseu

Depois de ter passado por Moura e pela Sobreda, abre hoje ao público, na Biblioteca Municipal D. Miguel da Silva, em Viseu, a exposição retrospectiva “Fernando Bento - Centenário do seu nascimento – Vida e Obra”. Iniciativa do GICAV com o apoio da câmara local, é composta por reproduções de algumas das suas obras mais significativas e ficará patente até dia 6 de Novembro, podendo ser visitada de segunda a sexta, entre as 8h30 e as 19h00, e aos sábados, entre as 13h00 e as 19h00.
No mesmo local, ainda hoje, às 15 horas será lançado o livro “Um campeão chamado Joaquim Agostinho”, que compila pela primeira vez a biografia aos quadradinhos do ciclista português, publicada originalmente em Agosto de 1973, no “Jornal da Volta”, suplemento do extinto jornal “A Capital”. A obra traça o perfil do campeão luso, desde a sua infância até à vitória na volta de 73, que posteriormente lhe seria retirada por doping.
Nome maior da banda desenhada portuguesa, Fernando Bento destacou-se na adaptação aos quadradinhos de episódios da História de Portugal e de clássicos da literatura, publicados maioritariamente nas revistas “Diabrete” e “Cavaleiro Andante”, entre 1940 e 1960. Curiosamente, os primeiros passos de Fernando Bento como desenhador foram dados nos anos 30 no jornal “Os Sports”, onde publicou caricaturas de ciclistas e ilustrações de temática desportiva.


(versão expandida do texto publicado no Jornal de Notícias de 23 de Outubro de 2010)

22/10/2010

Amadora BD 2010 (II)

Abre hoje as suas portas o 21ª edição do Amadora BD - Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora, que se prolonga até ao dia 7 de Novembro. São 17 dias, dezenas de autores e centenas de pranchas que mais uma vez trazem a festa dos quadradinhos até aquela cidade pois, para além do Fórum Luís de Camões, na Brandoa, onde se situa o núcleo central do evento, há mostras espalhadas por diversos equipamentos municipais.
A edição deste ano dá um grande destaque à 9ª arte nacional, ou não fosse o recente centenário da República o seu mote. Por isso, a principal exposição, “A I República na Génese da Banda Desenhada e no Olhar do Século XXI”, traça um retrato cronológico da forma como a BD, a caricatura e o cinema de animação anteciparam e têm mostrado a República ao longo de mais de 100 anos. Com a mesma temática, há também o making of de “É de noite que faço as perguntas”, uma narrativa ficcionada dos acontecimentos que levaram à queda da monarquia, escrita por David Soares e desenhada por Richard Câmara, Jorge Coelho, João Maio Pinto, André Coelho e Daniel Silvestre Silva. A par destas duas, destaque ainda para a retros-pectiva de Richard Câmara, autor do cartaz e da imagem gráfica do festival deste ano, e para a mostra que assinala o centenário de nascimento de Fernando Bento. As obras de Bernardo Carvalho (na Casa Roque Gameiro), Cristina Sampaio, e José Carlos Fernandes e Luís Henriques, premiadas em 2009, são também tema de exposições, bem como os trabalhos de Luís Diferr (“As Viagens de Lois – Portugal”, na Galeria Municipal Luís Bual) e Paulo Monteiro (“O Amor Infinito que te Tenho e Outras Histórias“).
Curiosa é a abordagem de “Lusofonia - A Nona Arte em Língua Portuguesa”, que, a partir das obras Nuno Saraiva (Portugal), Jô Oliveira (Brasil), Lindomar Sousa (Angola) e Zorito e Machado da Graça (Moçambique ), se propõe mostrar as particularidades da língua portuguesa falada em cada um deles.
No programa deste ano, no entanto, há duas falhas significativas: mais uma vez a quase total ausência de manga (bd japonesa) e de comics norte-americanos e a falta de nomes sonantes do panorama internacional, que seriam capazes de cativar o público (em especial os mais jovens) para ir descobrir a produção portuguesa. Os belgas François Schuiten e Benoit Peeters (distinguidos em 2009 pelo álbum “A Teoria do Grão de Areia, vol. 1) e, em menor escala, o norte-americano Sean Gordon Murphy (“Joe the Barbarian”) são as parcas excepções. Ou a um outro nível, Korky Paul, autor de “A Bruxa Mimi”, que faz sucesso entre os mais pequenos.
Para este primeiro fim-de-semana estão anunciadas as presenças de Schuiten e Peeters, Aude Samama, Alfonso Azpiri, Seri Aoi, Kim Hakhyun, João Mascarenhas, Paulo
Monteiro, Richard Câmara, Fil, David Soares, Fernando Dordio, Mário Freitas, Osvaldo Medina, Nuno
Duarte, Pedro Leitão, Ricardo Cabral, Carlos Páscoa, Joana Afonso, Luís Diferr e Rui Lacas, e programadas a apresentação dos livros “O menino Triste – Punk Redux”, de João Mascarenhas , e “Agentes do C.A.O.S.: A Conspiração Ivanov”, de Fernando Dordio, Filipe Teixeira e Mário Freitas.
Veja o programa completo do festival aqui.

(Versão expandida do texto publicado no Jornal de Notícias de 22 de Outubro de 2010)

21/10/2010

Corto Maltese – Mü, a cidade perdida

Hugo Pratt (argumento e desenho)
Edições ASA (Portugal, Maio de 2010)
235 x 305 mm, 198 p., cor, cartonado

“Prefiro acreditar que uma coisa estranha e bela que ainda não conheço, conseguirá vencer a lógica sem piedade que tive de engolir e da qual ainda não consegui libertar-me…” (Corto Maltese, p.135)


Entre as muitas personagens emblemáticas que a banda desenhada nos deu ao longo de pouco mais de um século de existência (oficiosa), Corto Maltese ocupará sempre um lugar de destaque. Pela sua personalidade e pela forma como isso o fez saltar para lá dos limites dos quadradinhos, enfeitiçando e seduzindo (mesmo) aqueles que nutrem pouca (ou nenhuma) consideração pela 9ª arte.
Criado pelo veneziano Hugo Pratt (1927-1995) em 1967, na sublime – e para muitos inultrapassável – “A Balada do Mar Salgado”, este marinheiro romântico e errante – seguindo os passos do seu criador de quem é perfeito alter-ego –, com sede de liberdade e o horizonte como único limite, defensor de causas perdidas e de ideais utópicos – não são assim todos os ideais? -, personalizou de forma intensa e invulgar, os sonhos, paixões e ambições de gerações de leitores que, com ele, viveram realidades (oníricas?) de outra forma impossíveis de concretizar.
O presente álbum, marcou o regresso das suas aventuras às livrarias nacionais, numa nova edição, colorida – para mim um senão, porque prefiro de longe o preto e branco contrastado de Pratt -, de formato ligeiramente inferior aos álbuns originais (mas sem prejuízo de maior para o desenho), complementada com uma bela introdução de Marco Steiner, ilustrada com fotos de Marco D’Anna, sobre alguns dos mistérios da História da humanidade que ainda subsistem nos nossos dias.
Se a escolha de “Mü, a cidade perdida” para este regresso é perfeitamente justificável, por ser a única aventura de Corto que não teve distribuição comercial nas livrarias portuguesas (foi apenas integrada na colecção vendida com o Público) – ela é também, no entanto, de certa forma, o seu canto do cisne, não só por ter sido a última história escrita e desenhada por Pratt, mas também por ser uma das mais estranhas (e irreais) aventuras que o marinheiro viveu. E onde se adivinha um certo tom de celebração da série, pela reunião de algumas das personagens com quem Corto se foi cruzando ao longo do seu percurso: Rasputine, Boca Dourada, Steiner, Tristan… a par de outras que agora vai conhecer.
A história, complexa, densa, recheada de referências, combinando factos comprovados, lendas e fábulas, começa com uma discussão sobre História, com os Maias como pano de fundo, e um escafandrista – o próprio Corto – à procura, mais uma vez (sempre!), desta vez do lendário (?) continente de Mü. Se o encontrará ou não – com quem e como – cabe ao leitor descobrir, de mente e espíritos abertos, para viajar no tempo e no espaço, no mundo real e também no dos sonhos.

“- Já não distingo o sonho da realidade.
- São duas vias paralelas. Porquê limitarmo-nos a uma só?” (p.166)

20/10/2010

Snuff #1 – La mélodie du bonheur

Philippe Nihoul (argumento)
Xavier Lemmens (desenho e cor)
Delcourt (França, septembre 2010)
240 x 320 mm, 48 p., cor, cartonado)

Resumo

Ethan Fargo vive desiludido desde o acidente em que perdeu a mulher e a filha. Arrasta-se pelas ruas de Brooklyn proclamando o seu ódio aos pombos e ao golfe e tendo como único centro de interesse as comédias musicais.
Mas tudo vai mudar no dia em que, (não) por acaso, se vê envolvido roubo num estranho e violento.

Desenvolvimento
Este não é um álbum para ser levado a sério – linearmente – porque falha no argumento, que tem alguns pontos obscuros. Desde logo e principal : o que leva Ethan a ser escolhido e a aceitar a missão que lhe é proposta? Pontos obscuros que poderão vir a ser (ou não) esclarecidos nos dois restantes tomos previstos.
De qualquer forma, merece ser lido porque a sua história, desbragada e muitas vezes divertida é, antes de mais, uma homenagem/piscar de olhos a realizadores como Tarantino, ao policial negro tradicional, a uma certa cultura – actual e muito presente a diversos níveis – de hiper-violência. Por isso, preparem-se leitores para muitos tiros e cenas violentas, com destruição a rodos e cérebros, braços e pernas a explodir. Num relato que - ironia maior… - tem como base um ‘snuff movie’ - filmes, geralmente artesanais, com cenas reais de tortura e assassinato, filmados de modo cru, sem quaisquer efeitos especiais.
A emoldurar tudo isto, está uma interessante – apesar de baseada em estereótipos reconhecíveis… - galeria de personagens. O protagonista, Ethan Fargo, é alguém que bateu no fundo e não tem vontade nem motivos para voltar à superfície, que desperdiça o seu tempo lançando bolas de golfe para o mar, insultando os pombos que pousam no beiral da sua janela ou vendo comédias musicais, a única coisa que ainda o anima (e faz viver ?).
A meio do álbum, primeiro envolto num manto de mistério, depois revelando-se (ou será que o argumento ainda nos vai surpreender por aqui ?), surge Alejandro Gutierrez, ex-membro proeminente de uma ditadura da América Latina cuja filha enveredou por veredas revolucionárias e acabou como protagonista involuntária do tal snuff movie; por isso, Guttierrez, magnata sem escrúpulos, pretende contratar Ethan para o vingar, tendo começado por apagar o seu passado e dar-lhe uma nova identidade.
Ao seu serviço (será… ?) está ‘Ismael’, o assassino impiedoso e violento que fala por citações bíblicas e se apresenta como anjo protector de Ethan, desenrascando-o por mais de uma vez. E que, a espaços, parece até mais (talhado para) protagonista do que Ethan.
Em segundo plano, mas com papéis relevantes em cenas específicas, surgem dois meliantes trapalhões e pouco dotados, o dono e o amigo da loja de DVDs que Etah frequenta e um tenente da polícia da tal ditadura latina, habituado a trabalhar ao ritmo do cassetete e dos subornos.
Com eles, de forma sarcástica e mordaz, onde se multiplicam referências e piscadelas, Nihoul desenvolve uma história desenvolvida em ritmo moderado – para dar tempo para a violência crescer e o sangue jorrar?! – suficientemente divertida e interessante para dar vontade de (pelo menos) ler o próximo tomo.
O traço de Lemmens, primeiro motivo para me interessar pelo álbum, é uma linha clara dinâmica mas angulosa, que tem por base uma planificação tradicional, mas com a qual o desenhador consegue transmitir o ritmo desejado. E onde se encontram alguns bons achados como o tratamento gráfico de Ismael ou o bom trabalho ao nível da cor, baseada em tons maioritariamente frios, mesmo quando predominam os vermelhos e os amarelos, bem utilizada para definir e destacar em cada pranchas apenas os pontos fulcrais.

A reter
- Confesso-me fã deste género de traço, uma espécie de linha clara dura que evoca o grande Serge Clerc, embora sem a sua elegância.
- O humor dos diálogos, bem conseguidos.
- Posso enganar-me, mas este tríptico ainda reserva algumas reviravoltas surpreendentes.

Menos conseguido
- Pode vir a ser explicado nos dois tomos previstos para a conclusão de Snuff ou até ser desnecessário tendo em conta o espírito do relato, mas neste primeiro volume as razões para a escolha de Ethan como braço vingador e a sua aceitação da tarefa são de todo obscuras e até pouco credíveis.

Curiosidade
- É bastante estranho nos dias que correm, mas para além das (poucas) cenas em que a filha de Gutierrez é torturada e morta e de figurantes completamente anónimas que apenas servem para preencher umas poucas vinhetas, nas páginas de Snuff – até agora - não há uma única personagem feminina.

19/10/2010

Entre les ombres

Arnaud Boutle (argumento e desenho)
Glénat (Suíça, Setembro de 2010)
195 x 275 mm, 72 p., cor, brochado com badanas

Resumo

Após um acontecimento de contornos e origens desconhecidos, que deu origem a diversos confrontos e alterações climáticas, os seres humanos desapareceram da face da Terra, com excepção de um único homem.
Este álbum conta o seu dia-a-dia, entre a luta pela sobrevivência e as recordações e fantasmas do tempo que viveu em comunidade.

Desenvolvimento
A ter que escolher uma única palavra para definir este livro, ela seria melancolia. Este é o sentimento dominante neste relato traçado em tons esverdeados - para o tempo presente - e azuis-acizentados - para os – muitos - flashbacks que o integram; tom este que reforça o sentimento de nostalgia e perda em relação a esses tempos passados. No trabalho gráfico de Boutle, num estilo agradável embora não muito vistoso, destaca-se igualmente o uso recorrente e bem conseguido de tracejado a lápis de cor para definir volumes, texturas e superfícies, que, a par da ausência de linhas de delineação das vinhetas, dá ao todo um aspecto delicado e atraente.
Quanto à história... É a história de um homem só, numa imensa cidade deserta, onde, por um lado, tem que fazer face aos elementos adversos do clima em mudança. Factor que permite ao autor algumas belas pranchas, nomeadamente da antiga metrópole invadida por enormes plantas trepadeiras ou os efeitos das violentas tepestades de neve.
Mas a questão climática acaba por ser um problema menor para o protagonista que vive a mais profunda e absoluta solidão. Essa solidão obriga-o a uma disciplina férrea para manter a lucidez: recolha de comida – pesca, enlatados pouco mais – ou de medicamentos em espaços agora desertos e quase esgotados, com aspecto de terem sido saqueados; busca de entretenimento na recolha de livros e cds musicais, na decoração do « seu espaço », com quadros retirados do museu… Só que aos poucos, vai perdendo essa lucidez, possivelmente ao mesmo tempo que aumenta a tendência para viver cada vez mais em função do passado, das suas recordações e dos seus fantasmas, ao som das músicas que escreveu e que a sua namorada cantou... Sinónimo, talvez, de uma lenta progressão se não para a loucura, pelo menos para a perda de noção da realidade, quando as (muitas) lembranças começam a tornar-se obsessivas e a tomar cada vez mais conta dele.

A reter
- Algumas pranchas bem conseguidas.
- O peso da solidão do protagonista que emana da leitura da história.

Menos conseguido
- A falta de uma explicação para o que aconteceu ao planeta Terra e conduziu á situação presente...
- … o que conduz à sensação de que falta algo (mais?) ao relato dos 219 dias de vida do único homem restante na Terra para que a história se torna mais coerente e credível e para que o seu destino (afinal) nos interesse.

18/10/2010

Adèle Blanc-sec , vol. 1

Jacques Tardi (argumento e desenho)
ASA (Portugal, Setembro de 2010)
225 x 300 mm, 96 p., cor, cartonado


Adèle Blanc-sec é um dos casos estranhos em que a edição de banda desenhada é fértil em Portugal.
Lançada originalmente pela Bertrand, no final da década de 70 do século passado, era uma série que destoava num catálogo em que imperava a BD juvenil de aventuras, o que não impediu a edição dos quatro primeiros tomos (correspondentes aos dois primeiros arcos das aventuras de Adèle Blanc-sec) em apenas dois anos, volumes que durante muitos anos se encontravam com facilidade em livrarias e alfarrabistas.
Anos depois, em 2003, a Witloof acabada de surgir, surpreendia por voltar a apostar numa obra já editada, de um autor que não era propriamente um nome de referência no nosso país e cuja bibliografia nacional praticamente não tivera continuidade (com excepção de “A Sacanice”, surpreendentemente lançada pela Terramar em 2000, e de “Varlot Soldado”, da Polvo, em 2001). Com uma edição ligeiramente maior, com nova tradução e capas pouco diferentes, apenas com a imagem original ampliada, a Witloof ficou-se pela (re)edição dos três primeiros volumes.
Agora, é a ASA que volta a esta obra emblemática de Tardi, à boleia de um filme que - ao que parece infelizmente - não se sabe se e quando vai estrear em Portugal. A tradução e a capa (uma montagem) são novas mais uma vez, surgindo também como novidade a compilação das duas primeiras histórias (Adèle e o Monstro e O Demónio da Torre Eiffel, correspondentes ao primeiro arco) num único volume. E a certeza (tanto quanto é possível assegurá-lo neste momento) de que mais dois volumes, com os tomos 3/4 e 5/6 (estes até hoje inéditos em português) serão editados durante 2011. A faltar, para encerrar o primeiro ciclo de Adèle, ficará o álbum “Tous les Monstres”, bem como duas derivações à série: “Adieu Brindavoine” e “La fleur et le fusil”.
A verdade é que nada do que para trás fica escrito põe em causa o interesse ou a qualidade da obra de Tardi, um dos grandes nomes da BD francófona das últimas quatro décadas, quer com esta Adèle, quer com as suas adaptações de clássicos policiais franceses ou de episódios históricos. Como denominador comum a todas elas, a presença de Paris como local central da acção, uma Paris revisitada e retratada com mestria, rigor e paixão ao longo de várias épocas. Porque mesmo que o traço de Tardi seja semi-caricatural, no que ao tratamento da figura humana diz respeito, revela-se perfeito para pôr no papel os cenários reais que as personagens teriam calcorreado se tivessem realmente existido no tempo em que o autor as coloca.
Mesmo assim, no conjunto da sua obra, Adèle Blanc-sec destaca-se pelo tom fantástico e irónico que perpassa as suas páginas.
Fantástico, porque na origem destas rocambolescas histórias está um pterodáctilo ressuscitado por pseudo-cientistas e uma seita de adoradores de um demónio assírio, em pleno coração da França. E uma trama longa e retorcida (e pontualmente difícil de acompanhar, tantas são as personagens envolvidas e as peripécias apresentadas), repleta de referências, em que abundam conspirações, perseguições e tiros.
Irónico, porque a par daquela trama densa, Tardi diverte-se – nitidamente – a criticar de forma mordaz polícias e políticos, a guerra e a ciência, autores (como ele próprio) e (os seus) heróis, de forma bem conseguida e irresistível. Ao mesmo tempo que brinca com a (sua) história e as situações, numa narrativa que adopta o estilo dos folhetins do início do século XX, o que a torna a um tempo estranha mas também apetecível e, por isso, bastante recomendável, sendo sem dúvida uma bela homenagem à literatura popular!
Como (triste) nota final, fica a confirmação que a edição de “integrais” em Portugal (que, ao contrário da maior parte das edições similares de clássicos francófonos ou americanos, continuam a ter custos relativos a tradução e balonagem e a pagar direitos de autor) é financeiramente pouco vantajosa para o leitor, apesar do preço do actual tomo com dois álbuns (21,70 €) ficar abaixo do que custariam dois livros isolados.

16/10/2010

Dinis Conefrey na Mundo Fantasma

A Galeria Mundo Fantasma inaugura hoje, às 17 horas, a exposição Memórias Topográficas, com a presença do autor Dinis Conefrey, para uma conversa com os visitantes e sessão de autógrafos.
Composta por 22 originais, metade ilustrações soltas de temáticas distintas e a outra metade pranchas do álbum “Arquipélagos”, cujo argumento é baseado em dois textos do poeta Herberto Hélder, a mostra, segundo o autor, é “uma exposição de imagens saídas do tempo em que as ideias tomaram forma; planos interceptados por linhas, texturas, cores que dão corpo e luz à interpretação dos sonhos”.
Nascido em Lisboa, em 1965, Conefrey tem feito ilustração para livros e publicações periódicas e, no que à banda desenhada diz respeito, participou em diversos álbuns colectivos, destacando-se, na sua bibliografia a solo, o já citado “Arquipélagos” (Íman, 2001) e também ”O Livro dos Dias” (publicado pela Devir, em 2003, em Portugal e Espanha) e realizado com uma bolsa de criação literária do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas.
Com um estilo muito pessoal, no qual a cor tem um papel fundamental na definição de ambientes, ensações e volumes, nos últimos anos Dinis Conefrey tem dedicado particular atenção ao México, tendo, em 2005, recebido uma bolsa do estado mexicano que lhe permitiu trabalhar por 6 meses naquele país preparando o segundo tomo de “O Livro dos Dias”.
A exposição de Dinis Conefrey estará patente na Mundo Fantasma, no Centro Comercial Brasília, no Porto, até 14 de Novembro. Como é habitual estará à venda um giclée assinado e numerado pelo autor, que reproduz a ilustração que abre este post.

(Versão revista do texto publicado no Jornal de Notícias de 16 de Outubro de 2010)

15/10/2010

Little Nemo in Slumberland - Há 105 anos, na terra em que os sonhos eram a realidade



Com que sonhavam os homens há 105 anos?
Alguns que desejavam voar como os pássaros, sonho acalentado pelo ser humano quase desde que o Homem é Homem, punham no ar os primeiros verdadeiros engenhos voadores a que mais tarde se chamaria aviões. Em muitos países - chamavam-se então colónias - sonhava-se com a liberdade e a independência, mas, nalguns deles, muito tempo teve que passar e muito sangue teve que ser derramado para que esses sonhos se concretizassem. Em Portugal, como também noutras nações, havia quem sonhasse com o fim da monarquia e a implantação da república, o que se tornaria uma realidade entre nós a 5 de Outubro de 1910. Uma outra revolução, a russa, que mergulharia o país na ditadura e num banho de sangue, sabemo-lo hoje, estaria também já na mente de alguns.

Muitas mulheres aspiravam a ser iguais aos homens, no que toca a direitos, deveres, oportunidades e responsabilidades, mas esta é uma luta que hoje ainda tem que continuar em muitas latitudes e não só aos países ditos islâmicos…
Nalguns países, especialmente africanos, ainda havia escravos a sonhar com a liberdade; chegaria oficialmente para todos em 1915, após a assinatura, em St. Germain, de um tratado internacional de abolição da escravatura. Que não impede que continue a existir hoje, umas vezes mais claramente, outras à socapa, sob diferentes nomes…
A outro nível, Júlio Verne morria deixando (d)escritos sonhos sem fim, de viagens por todo o planeta, ao centro da Terra e também à Lua, em engenhos novos e mirabolantes que hoje nos são comuns. E talvez Edgar Rice Burroughs já tivesse na cabeça as bases da história de um homem branco que cresceria entre os macacos - que hoje conhecemos como Tarzan, um dos mitos do século XX - e sonhasse já, também, com viagens espaciais e a descoberta de outros mundos.
Todos estes sonhos, e tantos mais, como todos os sonhos, tinham - e têm - o valor que lhes queiramos dar. O valor que lhes dá quem os sonha; o valor que lhes dá quem os ouve contar, sonhando-os, por isso, também. Entre todos estes sonhos e entre tantos sonhadores, um distinguia-se pela forma como os explanava. Os seus sonhos, que hoje, ainda, podemos também fazer nossos, como tantos puderam, ao longo de 105 anos, mais de um século - um século de mudanças intensas, vividas a uma velocidade cada vez maior - foram transmitidos para o papel, para as enormes folhas de um jornal, o "New York Herald", onde, pela primeira vez, um miúdo, de quem quase nada sabemos, para além do seu nome, Little Nemo - literalmente o Pequeno Ninguém, talvez para que cada leitor melhor se pudesse identificar com ele - sonhou fantásticos sonhos passados na terra deles, Slumberland. Sonhos (re)vividos através duma arte - que ainda não se sabia tal - que dava os primeiros passos, ainda trémulos e inseguros, à procura de suportes, técnicas, estilos e temáticas e que via surgir no seu seio uma obra tão notável.
Uma arte que descobria - viria a descobrir mais tarde - neste fabuloso "Little Nemo in Slumberland", tudo aquilo que ela podia/queria/aspirava ser: um desenho fabuloso, uma planificação variada e dinâmica, uma deslumbrante paleta cromática, uma narrativa onírica, fantástica e absorvente.
O seu criador - soa melhor o seu sonhador? - era Zenas Winsor McCay, nascido nos Estados Unidos, em Spring Lake, no Michigan, a 26 de Setembro de 1867. Filho de emigrantes escoceses que tinham chegado à terra de todos os sonhos, uma outra Slumberland, que para tantos foi de pesadelo, ainda hoje é, ainda é mais hoje, até - McCay, aos 19 anos, foi enviado pelo pai para Ypsilanti, Michigan, para estudar comércio num colégio. Foi lá que conheceu um inglês chamado John Goodison, que decidiu experimentar o método de aprendizagem que criara, com diversos alunos, entre os quais aquele McCay que herdara os nomes próprios do patrão do pai. O professor forneceu-lhe todas as ferramentas necessárias para representar objectos no espaço de forma tridimensional. As lições incluíam o desenho de sólidos geométricos e outros objectos, as suas sombras e reflexos, texturas e perspectivas, ensinamentos que McCay utilizaria mais tarde na sua obra gráfica, onde sempre procurou as perspectivas mais originais e os efeitos mais surpreendentes.
Como surpreendente era a forma como ocupava o seu tempo após as lições, no Wonderland de Detroit, um dime museum, uma espécie de circo sedentário que combinava atracções exóticas com espectáculos cómicos e onde, pela primeira vez, ganharia dinheiro com os seus desenhos, pois entretinha-se a retratar os actores, vendendo essas obras a 25 cents.
No princípio da última década do século XIX, McCay mudou-se para Cincinnati onde conheceu, nas escadas do dime museum de Vine Street, a pequena Maud Leonore Dufour, por quem se apaixonou de imediato, apesar dos seus apenas 14 anos. O que não foi impedimento para que, poucas semanas depois, fossem casados por um juiz de paz.
Ela seria a mãe dos seus filhos Robert Winsor, nascido em 1896, e Marion Elizabeth, em 1897. A estabilidade era palavra desconhecida então e o casal mudava de residência pelo menos duas vezes por ano, o que não impedia McCay de, após sair do emprego, frequentar o mundo muito especial do circo e do espectáculo. A partir de 1886 e durante cerca de uma década, Winsor McCay produziu milhares de desenhos publicitários e cartazes, alguns dos quais painéis gigantes desenhados ao vivo, ao mesmo tempo que, a partir de 1887, colaborava pela primeira vez em jornais, tendo-se estreado no "Commercial Tribune", de Cincinnati. Neste e noutros títulos como a "Life" ou o "Cincinnati Enquirer", deixou magníficas ilustrações de acontecimentos do quotidiano como paradas do exército, engarrafamentos no centro da cidade e outros em que podia dar largas ao seu virtuosismo, ao seu gosto pela espectacularidade e aos seus excepcionais sentidos de perspectiva e de observação. O "Cincinnati Enquirer", no qual também assinou ilustrações humorísticas, viu nascer a sua primeira banda desenhada, "The tales of the Jungle Imps of Félix Fiddle", em 1903. Pouco tempo depois partia para Nova Iorque, onde continuou a ilustrar editoriais, cartoons e caricaturas políticas e também banda desenhada. Assim, a partir de 1904, encontrámos "Mr. Goodenough" e "Dream of the Rarebit Friend", no "Evening telegram", "Sister's Little Sister's Beau", "Phurious Phinish of Phoolish Philipe's Phunny Phrolics" e "Little Sammy Sneeze", no "New York Herald", e, no ano seguinte, "A Pilgrim's Progress by Mister Bunion", no "Evening telegram" e "Story of Hungry Henrietta", de novo no "New York Herald". Destas destacam-se duas protagonizadas já por crianças, antevendo aquele que seria o seu maior sucesso, "Little Sammy Sneeze", as desventuras de um miúdo possuidor de um espirro com uma invulgar potência destruidora que, por isso, acaba invariavelmente expulso, muitas vezes a pontapé, do local das suas devastações, e "Story of Hungry Henrietta", uma menina insaciável que por isso espalha à sua volta o terror, e ainda " Dream of the Rarebit Friend", que tem por base não sonhos mas intensos e estranhos pesadelos, causados pelo recorrente abuso de um fondue de queijo por parte do protagonista.Finalmente, a 15 de Outubro de 1905, os leitores do "New York Herald" descobriam pela primeira vez "Little Nemo in Slumberland", aparentemente uma série tematicamente bastante limitada porque, em cada prancha, encontramos Nemo, numa situação que muitas vezes não sabemos se corresponde à realidade ou ao sonho, para no final o descobrirmos a acordar da fantasia que vivera no seu sono, quase sempre caindo abaixo da cama - muitas nódoas negras deve o pequenote ter coleccionado…!
Assim, na prancha inaugural de 15 de Outubro, vemos Omp, um emissário do rei Morfeus, a acordar Nemo para solicitar a sua presença perante o soberano. Apresenta-lhe um cavalo que Nemo monta de imediato, enquanto é avisado que não o deve forçar a correr demasiado.Começando a cruzar-se com estranhas parelhas, um canguru montado por um macaco, um porco por um coelho ou um cão por um sapo, Nemo entusiasma-se perante o desafio de uma corrida, acabando derrubado pela sua montada numa queda sem fim que termina… no chão do seu quarto, pois tudo não passara de um sonho, concluído com uma queda da cama. Na semana seguinte, o emissário regressa, fazendo a cama de Nemo afundar-se no chão, descobrindo-se este perante um palhaço que o leva po
r uma densa floresta de cogumelos de empilhar que desabam quando Nemo se descuida e se encosta a um deles, desatando aos gritos com medo de ficar soterrado e… acordando mais uma vez na sua cama. Esta situação repetir-se-ia semana após semana, terminando cada sonho com o regresso à realidade palpável da cama ou do chão onde esta assentava.
Mas aquela aparente limitação temática revelar-se-ia enganadora e, convidado primeiro pelo Rei Morfeus e mais tarde pela sua filha a princesa, Nemo, só seis meses e muitas aventuras e desventuras - muitos sonos e bruscos despertares - mais tarde, transpõe os portões de Slumberland, tendo, no entanto, de esperar até 8 de Julho de 1906 para conhecer a princesa. No entretanto, travara conhecimento com o pérfido anão Flip, que por todos os meios o tentara impedir de conseguir os seus objectivos, mas que mais tarde se tornará seu amigo e companheiro inseparável, dele e da princesa, constituindo com o canibal (!) Imp os protagonistas da onírica prancha dominical. As sucessivas visitas do pequeno Nemo à terra dos sonhos revelam-se fonte inesgotável de aventuras e descobertas, recheadas dos mais estranhos e deslumbrantes cenários, seres e personagens. Gigantes e anões, palhaços e saltimbancos, animais falantes, outros mais reais, encarnações de lendas e superstições, dragões, sereias e tudo o mais que poderia encher os sonhos de um miúdo de então. Cenários, seres e personagens de sonho, de puro sonho, apetece escrever. Para começar as histórias - cada sonho - o início é o mais diverso e inaudito possível: pode ser o aparecimento de um emissário de Morfeus, a cama de Nemo a afundar-se no chão ou boiar num mar caseiro, elevar-se a casa no ar engolida por um gigantesco peru, ser soterrada por uma tempestade de neve, aparecer como refúgio de um leão ou de um interminável bando de Nemos, etc., etc.. E, com o passar do tempo, cada vez mais McCay faz da última vinheta de cada prancha apenas uma espécie de "(continua)", porque, se nos primeiros tempos, em cada semana Nemo vive um sonho mais ou menos isolado de todos os outros, progressivamente o leitor aprende que na semana seguinte o sonho de Nemo continuará onde foi deixado - não é com isto que sonhamos todos nós, quando acordamos a meio dos nossos melhores sonhos? Com isto, também, McCay dava ao mundo dos sonhos existência própria, porque este não desaparecia com o final de uma prancha - de um sonho - ficava apenas suspenso até à primeira vinheta da página seguinte, uma semana depois… Um aspecto - as histórias em continuação - em que McCay também foi pioneiro, pois este foi um sistema que levaria muitos anos a estabelecer-se como hábito nas histórias em quadradinhos.
Graficamente, "Little Nemo in Slumberland" é difícil de descrever, pois todos os adjectivos parecem limitados para o qualificarem. Deslumbrante, fabuloso, inovador, único, moderno, são os que primeiro me ocorrem. Mais a mais se considerarmos que a banda desenhada, enquanto forma de expressão não contava ainda dez anos (pela data oficial, estabelecida quase um século depois!), embora as suas primeiras manifestações, com o sentido que hoje lhe atribuímos, tivessem ocorrido há já mais de meio século. Em termos gráficos, no Little Nemo de McCay encontrámos do mais inovador, arrojado e surpreendente que a banda desenhada já nos deu. Artisticamente pode ser considerado exemplo acabado de Art Nouveau. Em termos de banda desenhada pura e dura, é verdade que nos primeiros tempos, McCay parece algo hesitante em relação ao funcionamento da forma de expressão que escolhera. Numera (desnecessariamente) vinhetas para estabelecer o sentido de leitura, explica em cartuchos de texto por baixo das imagens o que estas descrevem na perfeição, mostra alguma dificuldade em gerir os balões de fala. Questões que virão a revelar-se menores e que desaparecerão progressivamente para dar lugar a um autor que demonstra um invulgar à-vontade com a planificação.
Em Little Nemo a disposição das vinhetas pela prancha é sempre imprevisível, sendo poucas as pranchas que surgem divididas da mesma forma. McCay tanto segue um esquema mais tradicional, com sucessivas vinhetas regulares, como utiliza vinhetas horizontais e/ou verticais para dar dimensão aos seus mundos de sonho ou situar as personagens - e com elas o leitor - em relação aos elementos do sonho que se deslocam, utiliza vinhetas adjacentes com uma única imagem de fundo, através das quais as personagens se vão deslocando para dar sensação de movimento. Tem pranchas com duas dezenas de vinhetas enquanto outras explodem em meia dúzia ou menos, transforma as letras do título em alimento para Nemo e os seus amigos, faz de vinhetas caleidoscópios ou desenha-as como se os seus heróis fossem vistos em vulgares espelhos deformadores dos que é comum encontrar nas feiras ou parques de diversões (que tanto o atraíam), representa um palácio de lado e depois de pernas para o ar, obrigando as personagens, tão espantadas quanto o leitor, a escolherem novos "pisos" para colocarem os seus pés, sejam eles janelas, paredes ou o que antes era tecto, usa e abusa (no bom sentido) de perspectivas invulgares, apresentando as suas personagens de quase todos os ângulos possíveis e imaginários, brinca até com os próprios ícones que criou, sendo o exemplo mais evidente a famosa prancha de 26 de Julho de 1908 em que a cama de Nemo ganha vida, levando-o em passeio com as suas longas pernas."Little Nemo in Slumberland" teria diversas vidas. A primeira, iria até 1911, quando terminou o contrato de McCay com o "New York Herald", transferindo-se então o autor com armas, bagagens e heróis para o "New York American", onde a série prosseguiria até 1914, rebaptizada "In the land of Wonderful Dreams". McCay retomá-la-ia entre 1924 e 1926, ficando, pelo meio, um musical inspirado nela, em 1908, e um filme de animação de três minutos, em 1909, outra arte em que Winsor McCay foi pioneiro e mestre - havendo mesmo quem compare a sua importância à de Disney - destacando-se nesta sua faceta artística a curta-metragem "Gertie, the (trained) dinosaur". Nos anos 30, o filho de McCay tentou, sem sucesso público nem capacidade artística, retomar a série, numa experiência de curta duração, já o seu pai falecera, inesperadamente, a 26 de Julho de 1934. As histórias de McCay seriam . pontualmente, recuperados por alguns jornais ao longo dos anos, ou compilados das mais diversas formas e tamanhos, em edições mais ou menos dignas.
Surpreendentemente, "Little Nemo in Slmberland" chegou também a Portugal. Estávamos no princípio dos anos 90 e os Livros Horizonte participaram na co-impressão que reuniu uma dúzia de países, de uma edição organizada e prefaciada por Richard Marschall.
Porque não éramos merecedores de tanto, porque a edição em capa dura, com sobrecapa colorida e bom papel tinha um preço demasiado elevado para os bolsos lusos ou por qualquer uma das outras razões misteriosas que abundam no mundo da edição de banda desenhada em Portugal, a verdade é que dos quatro volumes previstos, apenas dois, correspondentes às pranchas publicadas originalmente entre 15 de Outubro de 1905 e 30 de Agosto de 1908, viram a luz do dia (e se encontram ainda, com alguma facilidade, em algumas livrarias ou em feiras de saldos).
Agora, tantos anos passados, "Little Nemo in Slumberland", umas tantas páginas aos quadradinhos, velhas de 105 anos, fará ainda sentido? Não na obrigatória evocação do clássico, não na defesa e apresentação de uma obra que é intemporal (passe o paradoxo que se segue), mas na actualidade dessa mesma obra, na sua legibilidade, hoje, em 2010? O primeiro impulso é responder sim, claro, qual é a dúvida. Pelo pouco que atrás ficou escrito, por tudo aquilo que a sua leitura revela. Mas, tematicamente, serão os sonhos de Nemo - de McCay - ainda sonhados hoje? Sonharão os mais novos, ainda, com mundos encantados e princesas encantadoras, anões e gigantes, palhaços mil, com mundos maravilhosos, palácios faustosos, com o inenarrável e prodigioso universo com que McCay deslumbrou Nemo e os seus muitos leitores? Serão estes sonhos ainda capazes de encantar as novas gerações? A resposta custa a escrever, mas penso que é não.
Infelizmente - por nossa culpa, também por nossa culpa - o imaginário infanto-juvenil de hoje em dia perdeu muito - tudo? - da pureza, sensibilidade e encanto que tinha há um século e que McCay tão bem soube captar e expor no papel. A violência, a falta de valores humanos, éticos e morais, o orgulho, o preconceito, a omnipresença do sexo pelo sexo, o elogio da imbecilidade, ocupam-no hoje (quase?) na totalidade. Fazem de pesadelo aquele que devia ser um mundo de sonho, na idade dos sonhos. Definitivamente? Não sei. A resposta caberá a cada um de nós, pais, tios, professores, adultos, "escrevinhadores" de jornais e blogs e tantos outros…
Mas acredito que a leitura de "Little Nemo in Slumberland" poderá contribuir para o modificar. Bons sonhos!

(Versão revista do texto publicado originalmente no BDJornal #6, de Outubro de 2005)

14/10/2010

Banksy cria abertura polémica para os Simpsons

Foi mostrada no passado domingo nos EUA, aquela que pode ser a mais polémica sequência da série de animação The Simpsons. O responsável por ela é Banksy, o grafiter britânico que foi convidado para recriar o gag da sequência de abertura do 3º episódio da temporada 22, intitulado “Money Bart”.
Para além de ter assinado o seu nome pela cidade de Springfield, o artista pôs Bart a escrever no quadro (e por toda a sala de aula) a frase “não devo escrever nas paredes”.
No entanto, é quando a família se senta no sofá, que surge a sequência polémica, com um minuto de duração e uma banda sonora triste. Nela, em cavernas sujas, cheias de ossos humanos e ratos, vêem-se crianças e jovens asiáticos a fabricarem o merchandising da série, desde os negativos da animação, até DVD’s, t-shirts e peluches, que são cheios com pêlo de gatos mortos na hora. Estes não são os únicos animais maltra-tados, pois pandas, golfinhos e até unicórnios são utilizados pelos trabalhadores.
No final é revelado que tudo se passa dentro do edifício da própria Fox, a estação que transmite a famosa série de animação. À BBC, Banksy revelou que a abertura deu origem a uma série de discussões e atrasos, tendo havido mesmo ameaças de demissão entre os responsáveis pela animação.

O vídeo está disponível no Youtube.

(Texto publicado no Jornal de Notícias de 12 de Outubro de 2010)

13/10/2010

Amadora BD 2010

A 21ª edição do Amadora BD - Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora - vai decorrer de 22 de Outubro a 7 de Novembro e, a exemplo dos últimos anos, o seu núcleo central, estará localizado no Fórum Luís de Camões, na Brandoa.
Como já tinha sido divulgado o seu tema é “O Centenário da República”, revisitado através de uma viagem cronológica de mais de um século pelas obras dos artistas nacionais que abordaram o tema. “Os Caretos da República”, caricaturas de Pedro Ferreira, Carlos Laranjeira e Ricardo Galvão, e as obras participantes no Concurso de BD, são duas outras visões da República aos quadradinhos, complementadas pelo making of do livro “É de Noite que faço as Perguntas” (a lançar durante o festival), escrito por David Soares e desenhado por Richard Câmara, Jorge Coelho, João Maio Pinto, André Coelho e Daniel Silvestre Silva, uma narrativa ficcional que segue com rigor a história e cronologia republicanas, tendo início em 1891, na sequência do Ultimato Inglês, e terminando com o desfecho do Golpe Militar de 28 de Maio de 1926.
Fernando Bento, cujo centenário do nascimento se comemora no próximo dia 26, um autor de traço personalizado e original, cujas adaptações literárias marcaram gerações de leitores de revistas como “O Diabrete” ou “O Cavaleiro Andante”, será outro dos grandes destaques do evento.
Como é habitual, haverá mostras dedicadas aos vencedores dos Prémios Nacionais de BD de 2009, os belgas François Schuiten e Benoit Peeters, criadores das “Cidades Obscuras” e os portugueses Luís Henrique e José Carlos Fernandes, distinguidos pelo livro “A Metrópole Feérica”. Richard Câmara, autor do desenho original do cartaz e dos diversos materiais gráficos será o autor nacional em destaque.
O Fórum Luís de Camões acolhe igualmente mostras individuais de Cristina Sampaio, Paulo Monteiro, Korky Paul, autor de “A Bruxa Mimi” e Sean Gordon Murphy, desenhador de “Joe the Barbarian”.
“Lusofonia - A Nona Arte em Língua Portuguesa”, revela como as particularidades da língua portuguesa são utilizadas por Nuno Saraiva (em Portugal), Jô Oliveira (Brasil), Lindomar Sousa (Angola) e Zorito e Machado da Graça (Moçambique). Já “City Stories” aborda os resultados de uma residência artística dinamizada pelo festival de BD de Lodz (Polónia), com Moscovo, Londres, Lyon, Lucca e Amadora.
Como é habitual, o festival, que contará com a habitual feira do livro, sessões de autógrafos e lançamento de diversas obras, vai levar os quadradinhos a diversos espaços da cidade, nomeadamente a Galeria Municipal Artur Bual (com uma mostra de Luís Diferr) e os Recreios da Amadora (Augusto Cid, Vangelis Pavlidis e Jean Plantu).


(Versão integral do texto publicado no Jornal de Notícias de 13 de Outubro de 2010)
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