13/01/2010

Efeméride - Mickey Mouse, 80 anos aos quadradinhos

Há 80 anos, fazia a sua estreia na banda desenhada, em tiras diárias de carácter humorístico publicadas nos jornais, aquele que possivelmente é o rato mais famoso e conhecido de todos os tempos, Mickey Mouse.

Tudo começara cerca de um ano antes, com o filme animado “Steamboat Willie”, estreado a 28 de Novembro de 1928. Desde então, Mickey já protagonizara uma quinzena de desenhos animados, cujo sucesso comercial levaram a King Features Syndicate a sondar Walt Disney quanto à possibilidade de o transpor para tiras diárias.
Uma vez o acordo alcançado, Ub Iwerks, que participara na criação gráfica do rato e animara a curta-metragem inicial, foi encarregado de desenhar os quadradinhos, passados a tinta por Win Smith, a partir de argumentos do próprio Walt Disney. A primeira tira, publicada a 13 de Janeiro de 1930, intitulada “He’s going to learn to fly like Lindy.”, mostrava Mickey deitado num monte de feno a sonhar com viagens de avião, numa alusão a Charles Lindbergh, que fizera o primeiro voo transatlântico sem escalas três anos antes. Era a primeira de uma série de tiras que adaptavam livremente “Plane Crazy”, um filme da “pré-história” de Mickey.
De início auto-conclusivas, embora com sequência, e de carácter puramente humorístico, as histórias aos quadradinhos bebiam na animação muito do seu dinamismo e do seu espírito.
Mas poucas semanas decorridas, Iwerks, não sentindo reconhecimento por uma colaboração com mais de uma década, abandonaria os estúdios Disney. Floyd Gottfredson assumiria a BD em Abril desse ano e ficaria na história como “o desenhador” de Mickey por excelência, após desenhar mais de 15 mil tiras e pranchas dominicais, até se reformar, em 1975. Nelas, dotou Mickey com um espírito mais decidido, empreendedor e aventureiro e introduziu muitos dos heróis secundários que com ele geralmente contracenam , criando outros como Morty e Ferdie (Chiquinho e Francisquinho) ou Phantom Blot (Mancha Negra).
Mantendo algum paralelo em relação à animação, em que manteve o tom mais divertido, na BD Mickey evoluiu graficamente aproximando-se mais da figura humana, cresceu e desenvolveu-se, em histórias policiais, de mistério, aventura e ficção-científica, participou no esforço de guerra contra os nazis, encarnou personagens clássicas e históricas, reviveu filmes célebres, experimentou um sem-número de profissões, prolongando o sucesso dos anos 1930, considerados a sua idade de ouro nos comics. Para isso contribuiriam, entre muitos outros, grandes artistas como Al Taliaferro, Ted Osborne, Paul Murry, Romano Scarpa ou Giorgio Cavazzano.
Hoje, 80 anos depois, a banda desenhada Disney, cancelada em diversos países, há muito que deixou os seus tempos áureos, surgindo como raras excepções a Itália ou os países nórdicos (Finlândia, Dinamarca, Suécia). Talvez por isso, em Dezembro de 2008, a companhia anunciou a sua entrada na BD digital, com meia centena de histórias produzidas em Itália, para iPhone, iPod e PSP. Possivelmente a melhor forma de transmitir o humor, a aventura e a magia que Mickey levou a tantos leitores, a uma nova geração com hábitos diferentes mas a mesma necessidade de sonhar.

Curiosidade
Em 2008, a tira de 29 de Janeiro de 1930, autografada por Walt Disney, foi leiloada por quase 55 mil dólares (cerca de 38 000 €).

(Versão revista e aumentada do artigo publicado no Jornal de Notícias de 13 de Janeiro de 2010)

Lançamentos ASA 2010

A ASA prevê lançar no nosso país durante 2010 os primeiros tomos de “Dragon Ball”, de Akira Toryiama (ainda no primeiro semestre), “Yu-Gi-Oh”, de Kazuki , e “AstroBoy” e “A Princesa e o Cavaleiro”, ambos criações de Osamu Tezuka, o “pai” do manga (BD japonesa) moderno.
Até agora a editora apenas lançara manga de origem norte-americana - como "Warcraft Legends", cujo segundo tomo fica disponível ainda este mês -, dada a grande dificuldade em negociar com as editoras nipónicas tiragens tão pequenas como são as portuguesas. Conforme revelou ao Jornal de Notícias a Drª Maria José Pereira, responsável pelo departamento de BD da ASA, estas edições seguirão o formato original “Tankobon”, a preto e branco, com cerca de 200 páginas por volume e sentido de leitura japonês, ou seja, do fim para o princípio e da direita para a esquerda, e permitirão finalmente descobrir em português títulos relevantes de um género que chegou ao Ocidente há cerca de 20 anos e que detém quotas de mercado na ordem dos 40 % na França, Espanha, Alemanha ou Estados Unidos.
Mas não só de manga viverá o catálogo de BD da editora, que já este mês, com “Mú”, acolherá uma nova colecção de "Corto Maltese", a grande criação de Hugo Pratt, a cores, com novas introduções e num formato ligeiramente inferior ao habitual. Ainda sem data definida continua o início da edição integral das aventuras de Tintin, de Hergé, com nova tradução.
Contrariando uma das principais críticas desde sempre feitas à edição de BD em Portugal, a ASA propõe-se concluir - ou pelo menos continuar - este ano quatro das séries que tem em curso: “Passageiros do Vento”, de Bourgeon (com a chegada às livrarias, ainda em Janeiro, do sétimo volume “A menina de Bois-Caiman #2”), “Bórgia”, de Jodorowsky e Manara (com dois tomos em 2010), “A Teoria do Grão de Areia – vol. 2”, de Schuiten e Peeters, e “Murena”, de Dufaux e Delaby, e continuar com algumas séries do seu catálogo como Lucky Luke ou Dilbert.

(Versão revista e aumentada do texto publicado originalmente no Jornal de Notícias de 12 de Janeiro de 2010)

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12/01/2010

Le Fils

Colecção écritures
Ren Zheng-Hua
Casterman (França, Maio de 2007)
174 x 240 mm, 126 p., pb, brochado com badanas

E pronto, depois dos manga (BD japonesa) e dos manhwa (bd coreana), marcam também já presença no mercado franco-belga os manhua (BD chinesa). Ou, no caso presente, quase, porque a autora de "Le Fils", Ren Zheng-Hua, nasceu em Taiwan, que em termos políticos não é exactamente China, embora para a questão da designação isso não seja relevante.
Graficamente esta obra segue as linhas mestras das bandas desenhadas asiáticas, com um traço realista, fino e expressivo, representando parte das personagens mais próximos do modelo ocidental do que da imagem de marca dos manga, embora estas também existam e a autora utilize também o recurso a traço caricatural para representar estados de espírito mais exaltados.
"Le Fils" tem por fundo a eterna questão do triângulo amoroso, em dose dupla pois, de certa forma, são dois os triângulos amorosos que estão na origem de tudo o que se passa nesta banda desenhada pausada, de ritmo lento, em que vamos descobrindo o íntimo dos protagonistas à medida que a narração avança e vamos percebendo o que os condiciona - e há tantas condicionantes nesta história!
Como cenário da acção, a China dos anos 30, mesmo antes de começar a guerra que iria travar com o Japão. Uma China tradicionalista e apegada às convenções sociais - que impunham casamentos combinados e davam importância suprema ao facto de o primeiro filho ser varão (o contrário era motivo suficiente para divórcio!) - que parecem estranhas aos nossos olhos ocidentais, mas que têm princípios que também fizeram lei nesta nossa Europa, embora as épocas fossem outras.
São essas convenções sociais que vão interferir na relação de Yuan Qin, um jovem estudante, de férias (contra sua vontade) na sua cidade natal, onde reencontra a sua amiga de infância Xiao Yu, que sempre foi (ou quis ser) mais do que isso, o que Yuan só agora vai percebendo, descobrindo sentimentos recíprocos em si próprio. Só que Yuan tem na cidade onde estuda uma amante, Linda, a filha do director da sua escola, cujo nível social e de educação é bem mais aproximado do de Yuan. Perdido entre razões sociais, morais e de coração, Yuan apercebe-se aos poucos que está a viver uma situação semelhante à dos pais que despreza (porque até agora não compreendia), sem que isso, no entanto, o ajude na tomada de decisão que tem de fazer, sendo o desfecho o menos importante deste drama familiar, com uma forte componente psicológica, de contornos universais, mesmo nos dias de hoje.

(Versão revista e actualizada do texto originalmente publicado no BDJornal #19 de Junho/Julho de 2007)

11/01/2010

Blake & Mortimer – A Maldição dos 30 denários T.1

Jean Van Hamme (argumento)
René Sterne e Chantal De Spiegeleer (desenho)
ASA (Portugal, Novembro de 2009)
240 x 320 mm, 56 p. cor, cartonado


Cada novo “regresso” de Blake e Mortimer – e com este já são seis, quase tantas quantas as oito aventuras que Jacobs criou – tem que obrigatoriamente passar pelo crivo da comparação com os originais. Que é medida apertada ou não fosse esta uma das séries de referência da banda desenhada realista de aventuras franco-belga e um dos grandes clássicos dos quadradinhos mundiais. Apesar de Edgar P. Jacobs, o seu (idolatrado) criador, até ter algumas limitações enquanto autor de BD, em especial no que diz respeito à dinâmica do seu traço e à interligação texto/desenho, que muitas vezes é repetitiva. Por isso, nalguns casos, histórias interessantes e bem contadas, são desvalorizadas pela comparação e outras diminuídas por não serem cem por cento fiéis ao modelo.
O mesmo se passou/vai passar com este álbum - editado em Portugal simultaneamente com a edição original francesa – que na sua origem até tem um pretexto bem interessante, alicerçado na tradição judaico-cristão: a pretensa descoberta dos 30 denários que terão sido pagos a Judas Iscariotes por ter traído Jesus Cristo. O acontecimento, leva o professor Mortimer até à Grécia, onde reencontrará o coronel Olrik, seu inimigo de sempre, na busca pelas preciosas moedas às quais parece associada uma maldição, à semelhança do que acontecia com a arca perdida de Indiana Jones… E que, patente no titulo do álbum, parece ter-se transmitido à sua génese: primeiro com Ted Bênoit, que desenhou “O caso Francis Blake” e “O Estranho Encontro” a declinar continuar associado às sucessivas ressurreições de Blake e Mortimer; depois com René Sterne, o seu sucessor, a demorar quase dois anos para desenhar as primeiras 29 pranchas devido ao seu extremo rigor e perfeccionismo; finalmente, com a sua morte súbita, em 2006, a provocar novo atraso.
Como resultado, se se nota um esforço de aproximação ao traço de Jacobs no que diz respeito às personagens principais, noutras, como o pastor das primeiras pranchas ou Eleni – mais uma mulher, secundária, na série… - têm indiscutivelmente a assinatura gráfica de Sterne. Mas é no tratamento dos fundos e cenários, mais sóbrios e menos pormenorizados, que o distanciamento em relação a Jacobs é maior, em especial na segunda metade do álbum, que foi concluído pela sua esposa, Chantal De Spiegeleer, que também denota algumas dificuldades no tratamento das cenas de acção.
Quanto à narrativa em si, Jean Van Hamme, com a mestria que se lhe reconhece, construiu-a de forma consistente e envolvente, com os diversos momentos a encadearem-se a bom ritmo, fazendo a ponte entre os diferentes locais da acção, que decorre num crescendo moderado, equilibrando cenas mais dinâmicas com outras mais paradas em que vai contextualizando o enredo. E em que, a par da colagem ao mítico “O Mistério da Grande Pirâmide”, apresenta aspectos originais como a exploração da lenda relacionada com a falha do suicídio de Judas, o envolvimento de uma organização nazi e a dialéctica razão/fé implícita na trama. Resta esperar pela conclusão no segundo tomo, que está a ser desenhada pelo desconhecido Aubin Frechon, para avaliar se Van Hamme consegue conciliar todos estes aspectos de forma satisfatória.

Curiosidade
- A edição portuguesa encontra-se disponível em duas capas diferentes; a mostrada no início deste post, é igual à da edição original francófona; a outra, exclusiva das lojas FNAC e que foi desenhada propositadamente para o nosso mercado, pode ser vista aqui.

(Versão revista e aumentada do artigo publicado originalmente a 9 de Janeiro de 2010, na secção de Livros do suplemento In’ da revista NS, distribuída aos sábados com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias)

08/01/2010

Noir Metal

Xavier Bétaucourt (argumento)
Jean-Luc Loyer (desenho)
Delcourt (França, Março de 2006)
205 x 265 p., 110 p., cor, brochado com badanas


O ponto de partida deste livro é o fecho, em Janeiro de 2003, da Metaleurop, uma grande fundição de não-ferrosos (essencialmente chumbo), no Pas-de-Calais, no Norte da França. Dois meses depois, está o conflito social no seu auge, com os operários a lutarem, impotentes, contra o facto consumado, os autores deslocam-se às instalações da fábrica para prepararem um documentário sobre o processo que levou ao encerramento. Um documentário aos quadradinhos.
E o documentário em papel funciona, com a apresentação do tema a decorrer de forma fluida, ao ritmo a que os autores/entrevistadores despoletam os diálogos que nos vão narrando como tudo se passou - como as coisas se passam tantas vezes, numa rede de silêncios, cumplicidades, subornos e corrupção - num tom cordial, mas que não apaga a imensa crueldade afecta a todo o processo. E chegam mesmo a "emprestar da TV" técnicas que já conhecemos, para manter o anonimato das fontes, como na bem conseguida sequência das páginas 62-64.
O seu prólogo - que vai traçando em paralelo como o "Dia D", aquele em que o fecho de MetalEurop foi decidido, foi vivido pelos diversos interessados - pode enganar pois tudo é narrado como se de simples fait-divers se tratasse, mas esta é afinal uma denúncia da forma como hoje em dia se fecham empresas - grandes empresas - ignorando os trabalhadores - "esmagados como se fossem formigas". Porque este não é um documentário isento - algum, alguma vez, é? - antes dá voz aos que normalmente não a têm e vão mostrando os diversos podres da administração: a forma desumana como os trabalhadores eram tratados; o roubo encenado de 1,5 milhões de euros em ouro - um subproduto do local - nas vésperas do encerramento; o abandono das práticas regulares de manutenção, para provocar o encerramento por falta de condições; a teia de subornos e corrupções estabelecida, que ia das autoridades, cúmplices surdas e mudas, conhecedoras de que a empresa reconhecidamente envenenava o ar, a terra e toda a região numa área de 45 km2 (!), mas ignorando-o pois ela garantia também a sobrevivência económica de toda aquela zona, ao veterinário e aos agricultores, para fecharem os olhos aos animais que morriam e aos legumes que não se desenvolviam, até aos operários, cuja saúde e dos seus era comprada à custa de "esmolas" como pinturas de automóveis, para manterem aquele que era o seu ganha-pão. Tudo isto perante uma realidade indesmentível: na região, a taxa de envenenamento por chumbo nas crianças rondava os 27 %. Mas, como diz uma testemunha-sombra, "era o envenenador que fazia viver a região!".
Sobram dois senãos: o simpático traço linha clara de Loyer - quão mais indicado era o utilizado na capa - que atenua o dramatismo do relato, despojando-o de parte importante da sua carga emotiva, e só ter sido publicado três anos após o fecho da Metaleurop, tempo demasiado para produção de um documentário com estas características, mesmo em BD. Numa altura em que 300 operários ainda não tinham arranjado emprego e 13 já se tinham suicidado...

(Versão revista e actualizada do texto originalmente publicado no BDJornal #14 de Agosto/Setembro de 2008)

07/01/2010

CHT #0

Associación Cultural CHT (Espanha, Dezembro 2009)
227 x 300 mm, 36 p., cor, brochada


Nascido como blog, a CHT - Cómic / Historietas / Tebeos, acabou por se transformar em revista impressa – digam o que disserem a melhor forma de ler (também) BD, sendo que o seu número zero já está disponível, de forma gratuita, para quem o pedir aqui.
Com uma bela ilustração de Alex Raymond na capa e um grafismo cuidado, a nova publicação dedica um extenso dossier ao álbum “A Mulher do Mágico” (editado em Portugal pela Meribérica/Líber), bem como artigos (com muitas imagens) sobre o criador de Flash Gordon, enquanto ilustrador, o “El Cid” de António Hernandez Palácios e o crossover “Tarzan/Superman” de Carlos Meglia e Chuck Dixon.
Se há que destacar a boa qualidade da revista/objecto, levanta-me algumas reticências o destaque dado a uma única obra, pois no caso presente são 14 as páginas ocupadas por aquele álbum de Boucq e Charyn. Mas confesso que me despertou o apetite para o reler…
A CHT, que estará à venda apenas por assinatura, promete 60 páginas por exemplar e periodicidade trimestral, sendo que o primeiro número regular, que deverá sair no início de Abril, abordará temas como “Mort Cinder”, o “Tarzan” de Burne Hogarth, Jesus Blasco ou “Terry e os Piratas”, estando previsto um especial dedicado ao “Príncipe Valente”, em Junho.

06/01/2010

La mère des victoires

Enrique Fernandez (argumento e desenho)
Delcourt (França, Janeiro de 2008)
240 x 130 mm, 64 p., cor, cartonado

Num futuro não muito próximo (mas não tão diferente do nosso tempo, no que aos valores diz respeito) a guerra das audiências é isso mesmo: uma guerra. Literalmente. Por isso se encenam/realizam verdadeiras batalhas, devidamente patrocinadas, em que vencedores e vencidos não se contam pelo número de mortos, feridos ou objectivos destruídos ou conquistados, mas sim pelo número de espectadores que seguiram fielmente o "espectáculo" no pequeno ecrã, através do programa da moda, intitulado "Conflito em directo".
É este conflito - não tão inócuo quanto pode parecer - que nos narra Enrique Fernandez, mais um autor espanhol da nova geração à procura do seu lugar no mercado franco-belga, entremeando cenas de combate de acção pura com páginas mais calmas (?) em que chocam os sentimentos, ambições e desejos do tenente Katana Raijuro, supostamente o herói do show televisivo, e da sua superior, amante e mãe do seu maior rival, a capitã Eva Anderson.
O traço de Fernandez é arredondado e esguio, muito expressivo e extremamente dinâmico, tal como dinâmica é a planificação em que se multiplicam os enquadramentos, num todo bem servido por tons quase sempre frios, aplicados a computador.
Fica, no entanto, a sensação de que faltaram mais algumas páginas a Fernandez para construir uma obra mais sólida e tornar mais claras algumas situações.

(Versão revista e actualizada do texto originalmente publicado no BDJornal #22 de Janeiro/Fevereiro de 2008)

05/01/2010

Silverfin – As extraordinárias aventuras do jovem James Bond


Charlie Higson (argumento)
Kev Walker (desenho)
Asadelta (Portugal, Novembro 2009)
152 x 226 mm, 162 p., cor, brochada


A exploração da infância/adolescência/juventude de heróis(adultos…) tem sido um filão recorrente quer na literatura, quer no cinema, quer na banda desenhada, por vezes com resultados interessantes que permitem conquistar públicos mais jovens e, por vezes, até dar uma outra vida ao original. Tarzan, Superman, Indiana Jones ou Spirou, são alguns dos exemplos possíveis, a que se junta agora Bond. James Bond.
A quem foi dada uma juventude atribulada com estadia num colégio interno onde a sua condição de órfão (os pais, alpinistas, desapareceram numa escalada) e o estatuto de caloiro, o tornam o alvo preferido das partidas de alunos mais velhos e/ou mais ricos. No entanto, a sua predisposição para investigar mistérios já está latente, e por isso não surpreende encontrá-lo a tentar esclarecer um desaparecimento misterioso ao mesmo tempo que se vê envolvido no dia-a-dia escolar ou numa violenta prova desportiva, através da qual tenta provar o seu valor individual. Sem deslumbrar, a trama, baseada num romance do próprio Higson, num registo entre a aventura e a ficção-científica, de que (ainda) está ausente a componente sexual dos romances e filmes, mas que é condimentada por alguns divertidos piscares de olho ao futuro do protagonista, é narrada em bom ritmo e de leitura agradável. Ou seja, distrai e diverte, tal como o Bond adulto.
Para isso contribui também o desenho de Walker, um autor com um percurso feito nos super-heróis da DC Comics e da Marvel, que opta aqui por um traço um tanto agreste mas bem servido por tons frios e sombrios que ajudam a definir a ambiência do relato.

(Versão revista e aumentada do artigo publicado originalmente a 12 de Dezembro de 2009, na secção de Livros do suplemento In’ da revista NS, distribuída aos sábados com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias)


J. Kendall #56

Giancarlo Berardi e Maurizio Mantero (argumento) 
Valerio Piccioni e Laura Zucchi (desenho) 
Mythos Editora (Brasil, Julho de 2009) 
135 x 178 mm, 132 p., pb, brochado, mensal

Resumo Uma família norte-americana, os Norton – pai, mãe, filho, filha, avô e uma empregada mexicana – planeia deixar o apartamento em que vive para se mudar para uma casa numa zona mais tranquila. Combinam a visita à nova moradia e, depois, desaparecem sem deixar rasto. 

Desenvolvimento Após esta introdução, entra o primeiro dos vários flashbacks que integram a narrativa, um artifício que faz a história avançar e que serve também para prender o leitor, que assim vai sendo actualizado e recebendo a informação ao mesmo tempo que os protagonistas. Curiosamente, ao fim de trinta e poucas páginas, aparentemente o caso que desta vez é investigado pela polícia de Garden City, com o auxílio de Júlia, parece já estar resolvido, com um suspeito a confessar o crime. Pelo que de imediato avança a sua avaliação psiquiátrica e o respectivo julgamento. Mas na sua confissão há algo que não convence a criminóloga, que decide continuar por sua conta e risco, levantando questões, situando cada um, ouvindo pessoas – tão importante que isto é! – até chegar ao desfecho, de todo inesperado, onde se adivinha uma homenagem a uma obra-prima do cinema, que não refiro para não estragar o prazer da leitura e da surpresa que ela encerra, mostrando que nem sempre são os motivos mais óbvios que provocam os maiores estragos. Giancarlo Berardi, mais uma vez, tece uma trama complexa, credível e interessante, que desenvolve a seu bel-prazer, obrigando o leitor a segui-lo ao ritmo que ele impõe. Um ritmo calmo tranquilo, apesar de um ou outro sobressalto. Pelo caminho, com mestria, aproveita para traçar um retrato decadente da instituição familiar norte-americana – e da própria sociedade -, feito de forma exemplar nas primeiras pranchas, em que os curtos diálogos durante o pequeno-almoço definem e marcam cada um dos Norton. Retrato que conclui, sem dúvida de forma incómoda, no final da história. Um retrato duro que fala de falta de diálogo, da convivência de (parentes) estranhos dentro da mesma casa, da incapacidade de expressar sentimentos, do avanço do individualismo, da falta de objectivos, da solidão. Ao mesmo tempo que continua a definir – de forma bem humana - a protagonista, a mostrar o que a move e inquieta, as suas qualidades e defeitos, o que a faz forte e quais as suas fragilidades, medos, receios, (des)ilusões. Embrenhado no argumento de Berardi, quase se esquece o desenho – realista, firme, anatomicamente correcto, ritmado, de planificação clássica mas dinâmico nos movimentos de câmara que variam planos e enquadramentos – mas que, no entanto, tem um papel determinante, pela forma como define estados de espírito, sensações e emoções, expressos pelos olhares e pelos gestos. 

A reter - Não tenho dúvidas que este é um dos melhores títulos mensais distribuídos actualmente em Portugal. Por isso, desafio quem ler estas linhas a procurá-lo numa banca (perto - ou longe - de si…!), onde neste momento está disponível, pondo de lado eventuais preconceitos em relação à edição, em brasileiro, de pequeno formato, a preto e branco, papel de fraca qualidade e impressão por vezes com problemas nas zonas mais escuras.

04/01/2010

Portugal aos quadradinhos

Tal como as celebridades da música ou do cinema, também os heróis de papel por vezes escolhem Portugal como destino, para viverem emocionantes histórias aos quadradinhos. Shania Rivkas, aliás Lady S., é o caso mais recente.

Foi em “Salade Portugaise” (Dupuis), lançado há pouco mais de um mês, que a jovem estoniana, que trabalha como intérprete no Parlamento Europeu, e às ordens da CIA, sob o nome de código Lady S., chegou a Portugal para seguir uma pista que a podia levar a reencontrar o pai, que julgava morto há uma dúzia de anos, ao mesmo tempo que contribuía para desmantelar um atentado terrorista da Al Qaeda. Escrita por Jean Van Hamme e desenhada por Philippe Aymond, tem na capa a protagonista em trajos menores, tendo por fundo uma boa perspectiva da cidade e do castelo de S. Jorge, e no interior uma atribulada refeição à sombra da ponte 25 de Abril, uma animada perseguição pelas ruas lisboetas com um eléctrico envolvido e um vistoso acidente automóvel nos arredores de Sesimbra.
Pelas mesmas (?) ruas de Lisboa, pelo Bairro Alto em especial, pass(e)ou também Michel Vaillant em 1984, em “O Homem de Lisboa”, em que Jean Graton combina uma história de espionagem com a participação de Steve Warson e Julie Wood no Rali de Portugal, a que as estradas nacionais – e os pouco cívicos espectadores - servem de pano de fundo. As primeiras pranchas mostram um passeio turístico do par enamorado por locais como a Praça do Comércio, o Elevador de Santa Justa ou a Torre de Belém. E, mais uma vez, os típicos eléctricos lisboetas. E tal como em Lady S., os protagonistas utilizam um avião da TAP.
13 anos antes em “5 filles dans la course”, traduzido como “Rali em Portugal”, Michel e Steve já tinham corrido nas estradas portuguesas, com este último a fazer equipa com a lusa Cândida Maria de Jesus. Um outro português, o campeão Pedro Lamy, defrontou os Vaillant em “A Febre de Bercy” (1998).
Portugueses, também, são Oliveira de Figueira, o vendedor (de banha da cobra) com quem o Tintin de Hergé se cruzou algumas vezes, o António Alfacinha da Turma da Mônica, de Maurício de Sousa, bem como alguns escravos (!) com aparição fugidia em dois álbuns de Astérix, de Goscinny e Uderzo.
Foi ainda a Portugal, mais concretamente aos Açores, que Jacobs enviou Blake e Mortimer em “O Enigma da Atlântida”, para os dois aventureiros descobrirem no subsolo da ilha de S. Miguel os descendentes daquele continente mítico.

Também Monsieur Jean, o trintão celibatário imaginado por Dupuy e Berbérian, fez uma atribulada visita a Lisboa em busca de inspiração para escrever um romance, no segundo tomo das suas histórias, nunca editado na nossa língua.
E em “O segredo de Coimbra”, a cidade dos estudantes do século XVIII foi escolhida pelo belga Étienne Schréder como local de acção para uma narrativa sobre a construção de uma ponte sobre o rio Mondego, tendo por base anamorfoses.
Mas se podemos considerar de certa forma normal que heróis europeus nos visitem de vez em quando, será mais surpreendente saber que Hellboy, o demónio saído dos infernos que combate nazis, fantasmas e monstros, esteve em território nacional em 1992, como conta Mike Mignola “In The Chapel of Moloch" (Dark Horse, 2008), que tem inicio nas ruas estreitas de Tavira, mas que ainda está inédita em português.
No mesmo registo de terror, Dampyr, um caçador de vampiros, esteve em Trás-os-Montes, “na localidade de Riba Preta”, lê-se numa vinheta de “Lo Sposo della Vampira” (Sergio Bonelli Editore), que surgiu inspirada em diversas aldeias reais, visitadas pelo argumentista Mauro Boselli. Desenhada por Alessandro Bocci, permite acompanhar a investigação da lenda do Castelo de Monforte da Estrela, supostamente assombrado por uma vampira, no final da qual o protagonista é salvo in extremis por um pastor luso, Vitorino Rocha.
Mais natural, é o aparecimento da cidade do Porto nas páginas do diário ilustrado de James Kochalka, cultor da autobiografia em BD, a propósito da sua passagem pelo Salão de BD local, em 1999, em BD publicada na "Quadrado".
Para finalizar, referência a três livros sobre Lisboa, ilustrados por autores de banda desenhada: “Lisbonne, voyage imaginaire” (Casterman), em que o traço de De Crécy ilustra uma composição de textos (Camões, Voltaire, Alberto Caeiro ou Almada Negreiros) feita por Raphael Meltz, “Lisboa – cadernos” (Bedeteca de Lisboa), fruto de uma permanência de alguns dias na capital, em 2000, de Dupuy e Berbérian, e “Carta de Lisboa” (Meribérica/Líber), no qual belíssimas aquarelas de Miguelanxo Prado ilustram um texto de Eric Sarner.



O país na BD moderna portuguesa
Para além das óbvias utilizações de Portugal como cenário, em bandas desenhadas de temática histórica ou sobre cidades e vilas nacionais, geralmente de encomenda autárquica, são várias as criações da moderna BD portuguesa que têm revisitado, de forma inspirada, o nosso país. Eis alguns (bons) exemplos:

As aventuras de Filipe Seems
Nuno Artur Silva e António Jorge Gonçalves
ASA

Recentemente reeditadas numa caixa com os três álbuns, as aventuras de Filipe Seems, investigador privado num futuro indefinido, decorrem numa Lisboa retro futurista, semi-submersa e percorrida por gôndolas, que evoca múltiplos imaginários.

BRK, tomo 1
Filipe Andrade e Filipe Pina
ASA

História urbana de procura do seu lugar por um adolescente que acaba envolvido com uma organização terrorista, BRK, que se passa maioritariamente em Almada, fica marcado pelos atentados contra o McDonalds da Praça da Liberdade, no Porto, e o Cristo-Rei.

O Menino Triste – A Essência
João Mascarenhas
Qual Albatroz

Embora maioritariamente ambientada na “sereníssima” Veneza, é na sua Coimbra (natal?) que o Menino Triste inicia este percurso iniciático que se cruza com amizades, sociedades secretas, dúvidas existenciais e… muita(s) Arte(s).

Obrigada, Patrão
Rui Lacas
ASA

Com a paisagem serena da Zambujeira como fundo, esta é a história opressiva de um drama rural, que versa sobre as prepotências dos senhores das terras e a destruição dos sonhos de infância.

(Versão revista e aumentada do artigo publicado no Jornal de Notícias de 28 de Dezembro de 2009)



Adenda
O artigo publicado no Jornal de Notícias não pretendeu ser exaustivo, longe disso, mas apenas referir alguns casos, dentro de alguma diversidade.
Como entretanto o Manuel Caldas (quem mais?) e o João Mascarenhas e tiveram a gentileza de me fazer chegar mais dois exemplos, bem díspares e que encaixam na perfeição na tal diversidade citada, aqui ficam eles também referenciados: o medieval Príncipe Valente, de Hal Foster, aportou na nossa costa, como a imagem documenta e, em 2004, o Europeu de Futebol serviu de pretexto para uma história em que os heróis Disney nos visitaram que tem ainda a curiosidade de ter sido concebida de raiz em Portugal.

As Melhores Leituras de Dezembro

Comanche - Os lobos do Wyoming (Bertrand), O céu está vermelho sobre Laramie (Bertrand), Le desert sans lumiére (Le Lombard), O dedo do diabo (Distri), Les sheriffs (Le Lombard), E o diabo gritou de alegria (Distri), de Greg (argumento) e Hermann (desenho)
Blake e Mortimer #19 – A maldição dos trinta denários (ASA), de Jean Van Hamme (argumento), René Sterne e Chantal De Spiegeleer
J. Kendall Especial 04 - Almanaque Mistério 2008 (Mythos Editora), de Berardi, Calza e Zaghi

Tibet (1931-2010)

Obrigado Tibet.
Obrigado por Ric Hochet e Chick Bill, dois expoentes da chamada banda desenhada grande público, que tantas horas agradáveis me proporcionaram.

Resolução para 2010

Pôr de lado os preconceitos (que ainda me restam) e diversificar as minhas leituras de banda desenhada. Experimentar franco-belga e super-heróis, manga e fumetti. Aventura e adaptações literárias, ficção e ensaio, BD histórica e autobiografia, poesia desenhada e relatos intimistas. Desenho realista e humorístico, clássico e moderno, a cores ou a preto e branco. Autores de todo o mundo, em português, espanhol, francês, brasileiro ou inglês. E BD muda também.
Acredito que, se vou lamentar por vezes, abrirei horizontes, descobrirei grandes obras e autores e experimentarei novas sensações. Que espero continuar a compartilhar aqui.
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