Verborreia
Uma publicação no Facebook e meia dúzia de comentários impulsionaram estas (re)leituras, quase de rajada, para confirmar memórias e avaliar da passagem do tempo.
Para o melhor e o pior, estão na mesma, como as recordava.
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| A primeira prancha |
São estas as primeiras impressões de um país
chamado Rêverose - Sonharosa na versão portuguesa da revista TIntin - e cuja
capital é Halucinaville, um país onde pensar é deprimente, onde todos se
divertem, se alimentam dos seus sonhos e de coisas intangíveis como raios de
luar ou brilho do sol, em suma um lugar onírico onde só podem chegar os poetas
e os puros de espírito, em tudo o oposto do “verdadeiro-mundo-onde-nos-aborrecemos”,
a certeira designação que os seus habitantes dão ao local onde nós, leitores,
infelizmente, vivemos, nos aborrecemos e preocupamos tanto.
Claro que, anos depois, descobri os álbuns escritos e desenhados
pelo genial Franquin - muitos dos quais verdadeiras obras-primas que continuo a
reler com deleite – assentes num humor delicioso, um imaginário fantástico e um
magnífico sentido de aventura – sempre combinados em doses diferentes - mas já
era tarde para que o groom e o seu colérico amigo Fantásio me pudessem marcar emocionalmente,
limitando-se – e não é pouco – a uma forte impressão mais racional.
Mas, a este mote aventuroso - e por isso incluí atrás aquele
“aparentemente” – sobrepõe-se e predomina neste álbum um tom profundamente irónico
pois, a reboque daquele pretexto, Franquin e Greg aproveitam para ridicularizar
não só os regimes totalitários – e na época eles eram muitos… - e as suas bases
– militarismo, tortura, espionagem, delações, opressão… - bem como tudo aquilo
que a eles possa ser de alguma forma associado, nem que isso seja a resistência,
a luta pela liberdade ou as aspirações (legítimas) dos oprimidos, numa
surpreendente subversão de uma banda desenhada grande público que era publicada
numa revista infanto-juvenil…!
Greg (argumento)
Vance (desenho)
Petra (cor)
Le Lombard (França, Junho de 2001)
224 x 297 mm, 48 p., cor, cartonado
1. Iniciadas com este álbum, as minhas leituras do corrente ano tiveram, por isso, um pendor fortemente nostálgico.
2. Lido originalmente (no final da década de 70…?) na revista Tintin portuguesa, emprestada por algum amigo – é verdade, eu não coleccionei aquela revista – esta foi uma das histórias que mais marcaram o meu percurso de leitor de BD.
3. Uma história que pertence a uma lista curta, da qual fazem parte também Rip Kirby – O envelope trocado
, Simon du Fleuve – Maílis, Lanterna Verde & Arqueiro Verde – Os “Pássaros da Neve” não voam ou Silêncio.
4. Histórias às quais devo o facto de ainda hoje ter os quadradinhos como minha leitura de eleição.
5. Porque, lidas na altura certa, permitiram-me descobrir em banda desenhada temáticas e abordagens diferentes e mais adultas, que correspondiam às minhas exigências crescentes do momento.
6. Há muitos anos na minha lista de “álbuns a comprar”, este relato segue – de forma não especialmente brilhante, confesso – o modelo tradicional dentro da banda desenhada de aventuras franco-belga.
7. Os seus protagonistas são a Brigada Caimão, um grupo de operações especiais de elite, comandado por Bruno Brazil que, na sequência de alguns atentados, recebe a missão de resgatar em Madagáscar o último possuidor do segredo de um novo míssil estratégico experimental (implantado cirurgicamente no cérebro do homem em questão…).
8. Graficamente, é um trabalho pouco inspirado de Vance, com um traço demasiado estático, uma planificação mais rígida do que era habitual e a utilização de legendagem mecânica nos tamanhos maiores o que não torna o conjunto especialmente atraente.
9. Datado de 1975, inspirado no clima de guerra fria que então se vivia, o argumento é uma história de espionagem e acção, com debilidades, narrativas e temporais, e que se destaca – quase só - pelo falhanço quase total do comando de Brazil…
10. A diferença, que me marcou então sobremaneira, surge nas páginas finais, mais exactamente nas pranchas 40 a 44, onde um então adolescente descobriu, com surpresa e choque, que os heróis de papel, geralmente perfeitos e invencíveis, também podiam ficar estropiados ou até morrer…
11. E nas quais (re)lembrei uma frase que, tantos anos depois, ainda estava gravada na minha memória: “Gaucho Morales, que a morte não quisera, chorava convulsivamente…”


E talvez este seja, também, o adjectivo que melhor define a série: humana porque, apesar de abundarem os tiroteios, os confrontos com bandidos e pele-vermelhas, as emboscadas, as armadilhas, a corrupção e os negócios pouco claros, ficando como um marco o tríptico “Os lobos do Wyoming”/”O céu está vermelho sobre Laramie”/”Deserto sem luz”, que narra a passagem do protagonista pela prisão após desrespeitar a proibição do uso de armas para por fim a um impiedoso bando de assassinos. E cujo final (sugerido por Hermann) hiper-violento (para a época) do segundo daqueles títulos – o último dos irmãos Dobbs é abatido por Dust, semi-nu e desarmado, caindo no meio do lixo e sujidade - valeu à série ser “excluída” das páginas da revista Tintin. 

Mas a verve narrativa já não era a mesma, o tempo do western tinha também passado e o traço de Rouge (mostrado em “As Feras”, publicada na 1ª série das Selecções BD, do #38 ao #40) ficava muito distante da arte de Hermann.