11/03/2010

Tex Anual #10 – O esquadrão infernal

Cláudio Nizzi (argumento)
Ugolino Cossu (desenho)
Mythos Editora (Brasil, Dezembro de 2008)
136 x 176 mm, 332 páginas, preto e branco, capa brochada 

Resumo Tex Willer e Kit Carson são enviados para o Colorado, onde um misterioso bando de ladrões semeia o terror e a morte, desaparecendo misteriosamente após cada investida. 

Desenvolvimento Se não se pode falar de revolução, mesmo que tranquila, a verdade é que nos últimos anos Tex tem passado por uma renovação, para uma maior adequação ao tempo em que vivemos, embora sem perder as características marcantes que lhe permitiram resistir durante 60 anos. Essa renovação surge quer a nível gráfico, com a chamada de alguns mestres – especialmente espanhóis, como Font, Ortiz ou Sommer – e de novos e talentosos autores, quer a nível temático, com a elaboração de enredos mais consistentes, com o ranger a perder um pouco da sua invencibilidade e da sua aura de intocável e com a introdução de elementos geralmente ausentes das suas aventuras. Esta história é um bom exemplo disso. Graficamente, Cossu apresenta um traço limpo e agradável, pouco habitual em Tex – a excepção será Civitelli – com um bom uso de tramas e pontilhados, as personagens bem proporcionadas e um bom trabalho na reconstituição dos cenários, sejam urbanos ou naturais Que nalgumas pranchas, desculpem a comparação, que não tem qualquer tom acusatório, apenas pretende apontar uma referência, me fez lembrar o de Manara em “Quatro dedos – O Homem de papel”, um atípico western desenhado pelo mestre do erotismo. Como contra há que apontar algum estaticismo dos intervenientes, o que num western é sempre de considerar. Como elementos inovadores no relato, há a presença de mulheres na história, com algum protagonismo, em especial a índia Flor de Inverno que – oh, heresia! - na capa surge abraçada a Tex. E em algumas poses bem sensuais, por diversas vezes, durante o relato. Também nada habituais são as cenas de cariz sexual, como a violação com que termina o assalto inicial, logo na página 24, e as acusações de abuso que Flor de Inverno faz ao coronel que a mantinha prisioneira. Que apesar de invulgares em Tex, fazem todo o sentido no conjunto do relato, no contexto da acção e na época em que ele decorre. Quanto à narrativa em si, ganharia se a identidade dos ladrões fosse mantida em segredo até mais perto do final, pois o facto de o leitor descobrir muito cedo a quem imputar responsabilidades retira-lhe um potencial suspense que só a beneficiaria. Fora isso tem, na generalidade, com um bom nível, os padrões habituais em Tex, ou seja: é longa e bem estruturada, com algumas inflexões se surpresas, momentos de tensão e acção q.b.. Ou seja, trezentas páginas de western que permitem passar um bom par de horas.

A reter - O traço de Cossu, em especial quando aplicado nos cenários.
Menos conseguido - Volto ao tema. Eu conheço e compreendo as razões da Mythos para optarem pelo “formatinho” em lugar do formato original italiano (160 x 210 mm) para as suas edições Bonelli: menor desperdício de papel e, consequentemente, preço de capa bem mais baixo. Mas será que, pelo menos pontualmente – por exemplo, no caso desta colecção anual ou no do especial colorido dos 60 anos de Tex – não seria possível abrir uma excepção e oferecer aos leitores o formato maior – como está a acontecer agora no Brasil com a edição colorida - que permitiria desfrutar melhor e apreciar com mais justiça a parte gráfica?

Curiosidade - Não apostaria, mas possivelmente esta é uma das poucas capas de Tex em que aparece uma mulher. Possivelmente, uma das raras em que ela abraça Tex. Fico o desafio aos admiradores do ranger para descobrirem quantas são!

A noiva que o rio disputa ao mar + Portimão – Como se faz uma cidade

A noiva que o rio disputa ao mar
João Paulo Cotrim (argumento)
Miguel Rocha (desenho)
Câmara Municipal de Portimão (Portugal, Dezembro de 2009)
172 x 250 mm, 128 p., cor, cartonado

Portimão – Como se faz uma cidade
João Paulo Cotrim (argumento)
Alex Gozblau, Daniel Lima, Filipe Abranches, Jorge Mateus, Pedro Brito, Ricardo Cabral, Susa Monteiro e Zé Manel (desenho)
Câmara Municipal de Portimão (Portugal, Dezembro de 2009)
172 x 250 mm, 152 p., cor, cartonado

Num país em que muitas autarquias continuam a apostar na banda desenhada para contarem a sua História ou as suas histórias, esta edição da C. M. Portimão merece destaque duplo. Não pelo facto (relevante) de se tratar de dois livros – é esse o seu formato – mas pela aposta numa utilização dos quadradinhos moderna e atraente, que foge às narrativas habituais, mais ou menos monocórdicas e pouco estimulantes, que se limitam a debitar informação (mais ou menos bem) ilustrada.
Não que ela esteja ausente destas obras, mas encontra-se (muito) diluída, só limitada ao essencial, surgindo Portimão como cenário e pano de fundo e, na realidade, único protagonista dos dois livros.
Isto acontece mais no primeiro título, sobre a génese da cidade – bela amante dividida entre as carícias do rio e do mar – devido à escolha de um fotógrafo (intemporal, para cobrir cerca de 500 anos de história…) cujos instantâneos fotográficos vão marcando os momentos destacados – um casamento, a construção de naus, a chegada do comboio, a atribuição do foral… - e também pelo facto de estes tanto serem reais como fictícios, históricos como anónimos, dando corpo(s) e alma(s) ao relato. Tudo assinado com cores fortes mas difusas, apropriadas aos diversos aspectos abordados, mas sempre com o azul (forte) da água como tom predominante, por um Miguel Rocha na posse de todas as suas (muitas) qualidades gráficas.
Mas o protagonismo de Portimão é mais evidente em “Como se faz uma cidade”, em que alguns dos mais relevantes ilustradores e autores de BD nacionais contemporâneos, com os seus traços, técnicas e estilos personalizados, mostram diversos aspectos daquela localidade algarvia, cosmopolita mas humana, com belezas naturais e artificiais, que servem de referência e preenchem as memórias (de férias) de tantos e que é local onde vivem e se cruzam tantas pessoas, tantas vivências, tantas (outras) histórias…
Neste conjunto – desculpem-me os outros… - quero destacar em especial os trabalhos de Filipe Abranches, Ricardo Cabral e Pedro Brito, que considero especialmente conseguidos.
No (bom) resultado final, pesa João Paulo Cotrim, escolhido para coordenar e escrever os argumentos, já que é marcante o tom poético que costuma pontuar a sua escrita em que mais do que o que diz, deixa no ar hipóteses, sugestões, dúvidas, desafios que pedem ao leitor várias (re)leituras e abrem a porta a interpretações diversas. E que no todo apresentam Portimão pelo que é mais do que por aquilo que foi ou lá aconteceu.

Curiosidades
- O livro “Portimão – Como se faz uma cidade” inclui no seu miolo um caderno intitulado “Como se vive esta cidade” com pranchas de 19 jovens que participaram num workshop de BD conduzido por Pedro Brito, merecendo algumas delas um olhar atento.

(Versão revista e aumentada do texto publicado originalmente a 6 de Março de 2010, na página de Livros do suplemento In’ da revista NS, distribuída aos sábados com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias)

10/03/2010

Le tour du monde en bande dessinée #2

Igal Sarna (argumento)
Gipi, Erwann Terrier, Carlos Nine, Sonny Liew, Khamel Khelif, Vanessa Davis, Nick Abadzis, Mazen Kerbaj (argumento e desenho)
Rutu Modan (desenho)
Delcourt (França, Fevereiro de 2010)
226 x 298 mm, 112 p., cor, cartonado

Colectânea de histórias curtas, feitas por autores provenientes de Israel, França, Argentina, Singapura, Tailândia, Estados Unidos, Grécia e Líbano, comprova, mais uma vez, como a banda desenhada pode ser – é, sem dúvida! – uma arte plural e maior, que pode assumir todos os estilos, todos os géneros, todas as temáticas – documentário, reportagem, autobiografia, sátira política, poesia… - de acordo com a sensibilidade e a formação de cada um.
Por isso os israelitas Sarna e Modan abordam a (impossível) normalidade quotidiana em Israel e em Gaza, com (mais) um bombardeamento como pano de fundo e coelhos por toda a parte, na sequência da invasão dos territórios palestinianos no início do ano passado; Gipi põe dois mafiosos a comparar Berlusconi e Sarkozy, antes de (mais) uma execução; Terrier evoca os bons velhos tempos do bairro de Saint-Germain-des-Prés, quando era ponto de encontro de intelectuais, artistas e revolucionários; o argentino Carlos Nine elabora uma fábula política que tem a conspiração como tema; Vanessa Davis combina reportagem e autobiografia num relato sobre o Festival de Filmes Judeus de Palm Beach; Abazis aponta vantagens e inconvenientes de ser um cidadão do mundo sem/com várias nacinalidade(s); Khelif traça a (pungente) história de Mi Su, uma prostituta tailandesa, vendida duas vezes, pela mãe e a irmã; Liew, num relato em torno da própria criação, homenageia de forma curiosa alguns dos maiores autores de quadradinhos actuais; Kerbaj, desde o Líbano transforma em imagens um poema de Khaled Saghieh.
São formas, estilos, géneros, materiais, sensibilidades, educações diferentes, que marcam como se está na vida e como se faz banda desenhada,. Usando uma arte, a 9ª, uma mesma linguagem, a dos quadradinhos, para narrar quotidianos.
Como só em BD é possível fazer.

09/03/2010

Sonho sem fim – Pedro Couceiro

Pedro Couceiro (história)
Hugo Jesus (argumento)
Rui Ricardo (desenho)
ASA (Portugal, Novembro de 2009)
222 x 300 mm, 48 p., cor, cartonado


Se a vida de algumas pessoas dava um (ou vários) filmes/livros, Pedro Couceiro é certamente um deles, enquanto (pequeno) cantor/fadista de (algum) sucesso, nº 1 do ranking mundial de ténis na sua idade, piloto de corridas com diversos títulos conquistados ou Embaixador da Unicef. Por isso se compreende que a sua (ainda curta?) biografia tenha originado esta banda desenhada – uma paixão antiga -, nascida por sua iniciativa, tornada possível pelo patrocínio de diversas entidades, cuja venda reverte integralmente a favor da Aldeia de Crianças SOS, e cuja menagem base é que mostrar que com empenho e trabalho todos nós podemos concretizar os nossos sonhos.
Narrando a sua vida desde criança até à actualidade, esta é uma obra de leitura agradável, apesar de alguma (inevitável) sobrecarga de informação, que é de alguma forma compensada por apontamentos de humor que a suavizam. Faltaram-lhe, possivelmente, mais algumas páginas, que permitissem aprofundar momentos mais marcantes – quem sabe até ficcionando-os de alguma forma – como uma ou outra das corridas que venceu (ou não…) para dar um pouco mais de emoção, de sentimento, ao relato.
O traço semi-realista adoptado para o álbum, embora aqui e ali surja um pouco preso ao material fotográfico que lhe serviu de base, cumpre bem a sua função, mas teria ganho com a utilização de cores mais vivas (ou com uma melhor reprodução de cor?).

(Versão revista e aumentada do texto publicado originalmente a 6 de Março de 2010, na página de Livros do suplemento In’ da revista NS, distribuída aos sábados com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias)

08/03/2010

Dans mes yeux












Bastien Vivés (argumento e desenho)
Casterman + KSTR
(França, Março de 2009)
190 x 276 mm, 136 p., cor, cartonado

Resumo
Dans mes yeux narra uma história de amor. Bela como todas as histórias de amor. Enquanto duram. Triste, como todas as histórias de amor, quando terminam. Porque terminam.

07/03/2010

J. Kendall – Aventuras de uma criminóloga #58

Giancarlo Berardi, Giuseppe De Nardo e Lorenzo Calza (argumento) 
Marco Soldi (desenho) 
Mythos Editora (Brasil, Setembro de 2009) 
135 x 178 mm, 132 p., pb, brochado, mensal 

 Resumo O assassínio de um polícia em simultâneo com o aparecimento de uma série de mafiosos mortos desencadeia mais uma investigação da polícia de Garden City que, como habitualmente, recorre à consultoria de Júlia. 

Desenvolvimento
Esta é mais uma história policial bem contada, com a investigação e os momentos de acção intercalados com aspectos banais do quotidiano ou com um registo mais intimista em que a protagonista se expõe, dando voz às suas dúvidas, sentimentos, desejos e ansiedades, num todo como habitualmente bem escrito e ritmado, com protagonistas credíveis e bem definidos. E em que nada acontece por acaso. Veja-se como exemplo a interligação entre a cena em que a gata Toni liga inadvertidamente a televisão assustando Júlia e Emily – aparentemente um fait-divers - e, mais à frente, como ela influencia a reacção inicial da protagonista à intrusão do mafioso “John Smith” em sua casa. Desta vez, Berardi aproveita o relato para levantar duas questões muitas vezes associadas à actuação policial. Por um lado – com um curioso toque romântico, porque o inacessível parece sempre exercer uma grande atracção sobre nós – se é legítimo o recurso – com custos… - a informadores ou a acordos de legalidade duvidosa com criminosos, mesmo quando os fins a atingir o parecem justificar. Por outro, a existência de vigilantes, que se colocam acima da lei face à (aparente?) inutilidade/incapacidade dela. Graficamente – embora a edição nem sempre possibilite uma boa apreciação – a arte mantém a qualidade média que este título costuma apresentar mensalmente, com um traço realista, não excessivamente detalhado mas funcional, equilibrado no tratamento do ser humano, com especial atenção nos rostos, e eficiente no retrato de interiores e exteriores, nas cenas mais calmas como nas de acção. Uma referência ainda para a excelente cena do tiroteio na rua, nas páginas 25 a 31, credibilizada pela utilização de enquadramentos variados e o recurso a grandes (e expressivos) planos dos rostos dos intervenientes.

05/03/2010

Sutures

David Small (argumento e desenho)
Delcourt (França, Dezembro de 2009)
182 x 210 mm, 328 p., pb, brochado com badanas


Resumo

Autobiografia em banda desenhada, Sutures conta a infância e adolescência de David Small, a quem foi descoberto um quisto aos 11 anos, nos anos 1950, resultante de um tratamento intensivo com radiação, prescrito pelo pai, devido aos seus problemas de garganta, e que veio a resultar na perda das suas capacidades vocais.

Desenvolvimento
De uma (aparente) simplicidade desarmante, de leitura rápida, com longas sequências mudas e outras providas de muito pouco texto, Sutures conta diversos episódios da infância, adolescência e juventude de David Small, cartoonista em publicações como o New Yorker, o New York Times, o Washington Post, a Esquire ou a Playboy, mas mais conhecido como ilustrador de livros infantis.
Nesta estreia em banda desenhada, que não se adivinha pela mestria com que gere a planificação e o ritmo narrativo, grande parte dessa legibilidade extrema deve-se ao apuramento do seu traço, fino, por vezes esquemático, habituado que está a condensar o desenho o mais possível, apoiado em tons cinzentos dados a aguarela.
E é assim que nos conta a sua história, num claro exercício de exorcismo pessoal, em que vai saltando de episódio para episódio. Todos marcantes, todos com uma enorme carga emocional, a que o leitor não consegue ficar indiferente. Não que o tom seja de lamúria, lamentação ou de exposição gratuita, mas porque o simples desfiar dos acontecimentos impressiona.
A primeira memória – subtítulo original perdido nesta tradução francesa - começa aos seis anos. David mostra-se e à sua família, constituída por uma mãe, dona de casa de poucas palavras, sem paciência, autoritária e incapaz de expressar afectos – reflexo da sua própria experiência com a sua mãe e avó de David?-, um pai, médico especialista em raios X, quase sempre ausente, e um irmão mais velho, claramente preferido pelos progenitores. Uma família disfuncional, em que se sente deslocado, mergulhando por isso nos mundos imaginários que os livros e a sua imaginação lhe proporcionam, comunicando muitas vezes por desenhos. Motivos de sobra para que tenha crescido (quase sempre) solitário, cada vez mais introvertido, mergulhado em silêncio – num triste prenúncio do que o destino lhe reservava. Uma existência difícil em que os únicos oásis foram o (pouco) tempo que passou com o avô materno, durante férias sazonais em que acompanhava a mãe.
Nascido com problemas digestivos e respiratórios, de constituição débil, David desde pequeno foi muitas vezes sujeito pelo pai a injecções e tratamentos com raios X – algo vulgar nos anos 1950 – o que viria a ter consequências funestas, que começariam a revelar-se, por volta dos 11 anos, quando lhe surgiu um quisto, supostamente sebáceo, no pescoço, deixado pelos pais para tratar mais tarde, “quando houvesse dinheiro”. Dinheiro que começou a entrar e a sair num autêntico corropio, gasto em remodelações na casa, novos electrodomésticos, carros mais luxuosos e festas com os amigos.
Novo salto, até aos 14 anos, quando finalmente o quisto foi extraído e acabou por se revelar maligno, implicando uma segunda operação, da qual saiu sem as cordas vocais e com uma enorme (e inestética) cicatriz no pescoço, resultante da sutura que dá título ao livro. Tempo do qual guarda como memória – mais uma – a única vez (!) em que a mãe foi simpática com ele, embora de forma transitória. Mais exactamente durante o curto espaço de tempo em que acreditou que a segunda operação seria fatal…
De regresso a casa, agora ainda mais confinado a um silêncio - já não voluntário, provocado pela perda de voz e pela inestética cicatriz – David, encontra-se cada vez mais sozinho, cada vez mais mergulhado em si mesmo e no seu mundo, cada vez mais afastado dos pais que não tentaram – pelo contrário – qualquer gesto de aproximação, que não lhe revelaram, sequer que tinha tido um cancro. Mais um entre muitos segredos de que sempre rodearam David. Um cancro provocado ou, pelo menos, potenciado – tudo o indica – pelo excesso de radiação recebido ao longo dos anos, como o pai mais tarde lhe confessará. Como se aos olhos deles, para além de vítima fosse também culpado. Por isso, possivelmente, foi enviado para um colégio interno. Talvez para que os pais afastassem dos seus olhos o objecto que lhes podia inspirar um sentimento de culpa?
Seguem-se tempos tormentosos – com diversas fugas do colégio, sessões de psiquiatria – cujos custos, tal como os do colégio, lhe foram atirados à cara várias vezes -, a descoberta que a mãe enganava o pai com outra mulher… Até se tornar evidente aos seus olhos que a mãe nunca o amou, que nunca foi desejado. E é nesta descoberta – ilustrada de forma soberba por várias páginas em que apenas se vê chuva a cair, como se a água o pudesse limpar de todas aquelas memórias indesejadas - e também no abalo provocado pela morte do avô, que vai acabar por encontrar forças para sair de casa, se afastar da família, num distanciamento imperioso para uma busca e descoberta interiores, num percurso de queda e redenção, em que finalmente se vai encontrar a si próprio, descobrindo no desenho a melhor forma de se expressar. E encontrando, também, as forças necessárias para não seguir o mesmo caminho da avó e da mãe, como transmite na transcrição do sonho com que encerra o livro. Porque, apesar do tom hiper-realista do relato, há ao longo da narrativa diversos momentos com elementos fantásticos ou oníricos, que servem de contraponto ao tom do registo e ilustram aspirações, devaneios ou sonhos do protagonista.
É verdade que faltou a Small aprofundar algumas questões que poderiam ajudar a dar mais consistência ao livro, em especial a sua relação (inexistente?) com o irmão ou as razões porque os pais eram incapazes de manifestar sentimentos e afectos, mas acabam por ser aspectos menores numa obra magnífica embora dolorosa, de uma enorme carga humana.

A reter
- O ritmo com que o autor dotou a narrativa
- A expressividade de algumas sequências mudas.
- A utilização de diversos registos gráficos para distinguir estados de espírito ou a dualidade realidade/sonho.
- A conseguida sequência da chuva – o seu significado… - nas páginas 255 a 262.

Menos conseguido
- Este texto. Escrever sobre algumas obras, por vezes, é para mim um problema. Não porque a sua qualidade não o justifique, mas pela sensação de que por mais que explique, evoque ou desenvolva, nunca serei capaz de exprimir tudo o que a leitura me transmitiu. Sutures foi um desses livros. E já sei que uma vez postadas estas linhas, um sem número de vezes (re)escritas, vou sentir que faltou isto ou aquilo, que aqui ou além podia ter chegado mais fundo ou mais longe, que possivelmente ele está demasiado descritivo. Pelo que, como sempre, mas mais ainda desta vez, deixo o conselho: leiam estas linhas, se quiserem, mas não deixem de ler o livro.

Curiosidades
- A versão original deste livro, Stitches: A Memoir (da editor norte-americana W.W. Norton), foi finalista do National Book Award em 2009, um prémio habitualmente concedido apenas a obras literárias, e chegou a estar no primeiro lugar da lista dos livros mais vendidos do The New York Times.

04/03/2010

O Combate Ilustrado de 1986 a 2007



Vários autores
Edições Combate (Portugal, Janeiro de 2010)
216 x 160 mm, 198 p., cor e pb, brochado


“O Combate” foi o jornal/revista do PSR – Partido Socialista Revolucionário – de Francisco Louça, uma das formações políticas que esteve na origem do Bloco de Esquerda. E foi também um local de divulgação, descoberta, experimentação e afirmação - com uma grande, imensa, enorme liberdade criativa - de um grande número de artistas plásticos nacionais, de Pedro Amaral a João Fazenda, passando por Alice Geirinhas, Nuno Saraiva, João Fonte Santa, Fernando Relvas, Cristina Sampaio, José Feitor e muitos outros, entre os anos de 1986 e de 2007.
20 anos traduzidos em cartoons, ilustrações e bandas desenhadas, trabalhados a preto e branco ou a cores, em diversas técnicas e estilos, que hoje - nalguns casos duas décadas mais tarde - funcionam a vários níveis: causam estranheza, evocam recordações, perturbam pela actualidade que se mantém inalterada, marcam percursos, registam evoluções, recuperam nomes esquecidos …
E que esta colectânea – a que faltam, naturalmente, os textos que muitas vezes inspiraram os artistas – em boa ocasião resgata, exercitando a memória, dando um novo fôlego e existência mais duradoura a cerca de duas centenas de obras de 40 autores nacionais, nascidas em páginas perecíveis, numa “Primavera gráfica, nada comum nas esquerdas da época”, lê-se na introdução de Jorge Silva, então director de arte e responsável pela selecção .
E que constitui “um olhar sobre as coisas de ontem (…) uma viagem na máquina do tempo, revelando camadas e tesouros de arqueólogo”, de uma época em que “computadores e e-mail nem em sonhos”. Sendo ao mesmo tempo “um testemunho da evolução da ilustração em Portugal, desde a produção manual, com aguarelas, acrílicos, até ao predomínio do digital”, enquanto revela “cores insuspeitas e texturas subtis que a pelintrice de outrora não permitiu”, e traz para os dias que (hoje) correm gritos, palavras, afirmações, ideais, ideias que já/ainda não passaram. Mas que ainda (nos) podem deslumbrar.

(Versão revista e aumentada do texto publicado originalmente a 27 de Fevereiro de 2010, na página de Livros do suplemento In’ da revista NS, distribuída aos sábados com o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias)

Lançamento - As Incríveis Aventuras de Dog Mendonça e Pizza Boy

Filipe Melo (argumento)
Juan Cavia (desenho)
Santiago Villa (cor)
Tinta da China (Portugal, Fevereiro de 2010)
165 x 240 mm, 120 p. cor, brochado com badanas


Depois da Zona Fantástica a banda desenhada regressa ao Fantasporto e ao Rivoli para o lançamento de “As Incríveis Aventuras de Dog Mendonça e Pizza Boy”, um dos títulos que vai marcar o panorama nacional de quadradinhos em 2010.
Novela gráfica escrita por Filipe Melo (pianista de Jazz e autor da curta-metragem de terror "I'll See You In My Dreams" e da série televisiva “Mundo catita”) e desenhada pelo argentino Juan Cavia, reúne um entregador de pizzas, um detective do oculto, um demónio que encarnou numa criança e a cabeça duma gárgula, que percorrem as entranhas de Lisboa, para descobrirem quem anda a raptar as crianças lisboetas e combaterem uma (nova) ameaça nazi.
De tom delirante e fantástico, cruza referências e citações da literatura, cinema e BD, numa narrativa de rimo acelerado, em que as surpresas e o bom humor são recorrentes.
Depois da apresentação pública amanhã, os autores de “As Incríveis Aventuras de Dog Mendonça e Pizza Boy” iniciam um périplo pelo país para autógrafos e conversas com os leitores, com as seguintes paragens já programadas:
- 6 de Março, às 16h00, na Central Comics - Porto
- 6 de Março, às 18h00, na Fnac Sta Catarina - Porto
- 6 de Março, às 21h30, na Fnac Braga - Braga
- 8 de Março, às 21h30, no Acert - Tondela
- 9 de Março, às 20h00, na Tertúlia de BD de Lisboa
- 10 de Março, às 18h30, na Dr.Kartoon - Coimbra
- 10 de Março, às 21h30, na Fnac Coimbra - Coimbra
- 11 de Março, às 20h00, na Fnac Chiado - Lisboa

03/03/2010

Des rivières sur les Ponts

Zoran Penevski (argumento)
Goran Josic (desenho)
Delcourt (França, Maio de 2004)
204 x 262 mm, 48 p., cor, cartonado com sobrecapa

Os exemplos da utilização da banda desenhada para reportagens ou documentários vão-se multiplicando. Muitos deles interessantes ou notáveis. Dois estão disponíveis em português: “Palestina” (Mundo Fantasma/MaisBD/Devir), de Joe Sacco, e “Persepólis” (Edições Polvo), de Marjane Satrapi. A que se podia juntar a tradução deste “Des rivières sur les Ponts” dos sérvios Zoran Penevski e Goran Josic, bem incluído na graficamente atractiva colecção Mirages, da Delcourt.
Este é um livro que começa nas manifestações de 1997, conta Milosevic, em Belgrado, e que vai até aos bombardeamentos da Nato, feitos com o objectivo de terminar a guerra civil em curso e depor o ditador. Um livro, autobiográfico, que fala dos “mortos que não contam, entre as vítimas da guerra”, aqueles que não aguentaram a pressão, cujas mentes “estouraram” - às vezes literalmente...
Um livro que fala da incompreensão entre gerações. Dos mais velhos – os pais - partidários do regime (nalguns casos, só – tão naturalmente – receosos da mudança). Que em muitos casos, sem recursos nem alternativas, apenas puderam ficar sentados – impotentes – à espera que a guerra acabasse... ou que acabasse com eles. E da revolta dos mais jovens – os filhos - que, no entanto, se voluntariaram para o exército, quando a NATO começou a bombardear. Indiscriminadamente.
Um livro bem trabalhado nas expressivas cores directas de Josic, feito de momentos soltos, que mostram como a vida (ou uma existência difícil, penosa, a que (dificilmente) se pode chamar vida...) continua apesar das circunstâncias.
Um relato de momentos precisos e concretos, reais, incomodamente reais (porque vividos), porque, como diz o cineasta Jan Kounen no texto que fecha o livro: “A vida era bem estranha para que fosse preciso inventar o que quer que fosse”.

(Versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias de 5 de Junho de 2004)

Lançamento - Zona Fantástica

É lançada amanhã, às 18 horas, no teatro Rivoli, no Porto, a revista Zona Fantástica que surge associada ao Fantasporto 2010.
Depois da Zona Zero e da Zona Negra, este é o terceiro número de um projecto alternativo, quase totalmente desenvolvido através de colaborações pela Internet, que pretende divulgar o trabalho de novos autores e promover o desenvolvimento da Banda Desenhada e da Ilustração no panorama nacional.
Este número, de temática fantástica, é até agora o mais ambicioso, pois conta 80 páginas a cores com a participação de 34 autores, 5 dos quais estrangeiros. Informações mais detalhadas aqui.

02/03/2010

Jour de Grâce

Gani Jakupi (argumento)
Marc N’Guessan (desenho)
Dupuis (Bélgica, Fevereiro de 2010)
240 x 320, 64 p., cor, cartonado


Resumo

Carteirista de segunda classe, Andrei vive algures no norte da França à espera de um golpe de sorte que lhe permita conseguir os papéis necessários à sua legalização.
Na véspera de Natal, comete o erro de roubar a carteira a Mathias, um assassino a soldo de uma máfia de leste, que lhe concede 24 horas de vida antes de o executar.

Desenvolvimento
O primeiro aspecto a destacar neste thriller policial, que se divide entre o intimismo e a acção, é a sua adequação a uma realidade actual: a presença em grande número de emigrantes de leste na Europa comunitária. Em França – onde se passa a acção do álbum - como cá, em Portugal. Gente que vem em busca de trabalho, de uma vida melhor, atrás de sonhos ou à procura de dinheiro fácil.
Andrei, como a sua amiga Tatiana, são exemplos - do fundo - dessa realidade. Ele, ilegal, desocupado, carteirista, sem ilusões nem força interior para (eventualmente) as tornar realidade, sem coragem até para revelar que gostava que ela fosse mais do que uma simples amiga. Ela, sozinha, prostituta, se ainda sonha, vê o tempo passar e as ilusões transformarem-se cada vez mais nisso mesmo: ilusões.
Mathias, o “tio”, é o terceiro vértice deste triângulo. Assassino a soldo de uma máfia de leste, foi – enquanto possível… - amigo do pai de Andrei e, de alguma forma, que o álbum não esclarece totalmente, funcionou como protector de Tatiana.
Após o ultimato, é desconcertante ver como Andrei (não) reage, desde logo não demonstrando força nem iniciativa, incapaz de optar por gozar ao máximo o último dia de vida ou tentar que ele seja o primeiro de muitos através da fuga ou da alteração das condições que lhe foram impostas. Um retrato perfeito de desilusão face a uma vida vazia, de cansaço, de desespero. Por isso, até as suas tentativas de fuga são patéticas e pouco credíveis – e por isso facilmente abortadas por Mathias. Para ele, parece que o tempo corre imparável, a esgotar-se rapidamente.
Até que… há um momento de mudança, um instante em que a réstia de coragem que (ainda) tem – consegue reunir - o levam a um avanço – ligeiro, ridículo até na forma como se concretiza – em relação a Tatiana. A resposta dela – ou a forma como ele a interpreta…? - dão-lhe o alento necessário para (tentar) reagir e ditar o seu próprio destino como nunca tinha feito até aí. Sem se afastar totalmente do que era, é verdade. Com um resultado que não vou revelar, porque se é duvidoso que lhe traga perspectivas muito diferentes ou melhores do que as que tinha até então, cada leitor pode interpretar o final em aberto à sua maneira.
Este álbum, antes de ser um (interessante) policial ou um registo de acção, este é um relato sobre juventude perdida e solidão, falta de sonhos e perspectivas, sobre tantos enganos e falsas promessas que a sociedade ocidental – involuntariamente? – cria, para quem nela vive e para quem a olha de fora.
O que possivelmente foi o caso de Gani Jakupi, nascido em 1956 “numa vila montanhosa do Kosovo, a província mais pobre da ex-Jugoslávia”, que possivelmente transmite nesta história um pouco da sua própria experiência, quando chegou a França, nos anos 70, com meia dúzia de desenhos debaixo do braço…
História passada para o papel por N’Guessan, o desenhador nascido em Toulouse, França, em 1965, que para o feito utilizou uma linha clara, de contorno semi-realista, servida por cores planas, mais atraente no conjunto das pranchas do que quando olhada de perto, mas bastante legível e perfeitamente eficaz para contar uma história falsamente linear.

A reter
- A premissa de que parte o relato: o que fazer quando nos restam 24 horas de vida?
- A forma fluente como a história e os diálogos são apresentados.

Menos conseguido
- A falta de aprofundamento do passado dos três intervenientes.

Curiosidades
- Este álbum fez parte da selecção oficial de Angoulême 2010, fora de competição.
- Gani Jakupi esteve envolvido num projecto com o português Ricardo Cabral, entretanto abandonado.

01/03/2010

A Relíquia de Eça de Queiroz

A Relíquia de Eça de Queiroz
Marcatti (argumento e desenho)
Conrad Editora (Brasil, 2007)
160 x 226 mm, 224 p., pb, brochado com badanas

Lançada em 2007 no Brasil, "A Relíquia" (Conrad Editora) é um bom exemplo de uma adaptação bem conseguida de um romance para quadradinhos. O que à partida podia ser posto em causa, dado o tom escatológico da maior parte das obras anteriores de Marcatti, aliás Francisco A. Marcatti Jr., autor underground brasileiro, nascido em São Paulo, a 16 de Junho de 1962.
Só que Marcatti fez o que deve ser feito numa adaptação: interiorizou o espírito do romance de Eça e o seu peculiar sentido de humor, na sua crítica exacerbada à Igreja Católica, aos seus fiéis fanáticos e às suas crenças e credulidades, tarnspondo-os depois para a (sua) nova linguagem. A opção de manter "a estrutura da história original" ajudou à consistência do livro, bem como a utilização, nos textos, de "uma mistura de coloquialidade e erudição para facilitar a leitura sem perder o tom clássico da obra", sem que isso o tornasse demasiado denso ou pesado. Com eles, e apesar do seu traço caricatural, conseguiu recriou em "quadrinhos" o clima tenso e opressivo que Eça deu à sua narrativa, e transmitir o estado de prostração e impotência que Raposão, o boémio sobrinho da beata Titi, sente face à rédea curtíssima com que ela o mantém e, posteriormnte, após cair em desgraça.
Paradoxalmente, é o seu traço caricatural, caracterizado por personagens de olhos vivos e grandes narizes e corpos de inusitada mobilidade, o outro trunfo incontornável do livro, pois a sua vivacidade e dinamismo opoõem-seao tom mais pausado dos textos, ao mesmo tempo que o cmplementam e aprofundam o tom da obra.

E é com ele que Marcatti marca o ritmo da narrativa e expressa à saciedade os diversos estados de espírito (veja-se a transformação de Titi em apenas 3 vinhetas na página 172), mostrando sentir-se como peixe na água na representação das cenas mais picantes, divertidas caricaturas que surgem como oásis na vida de Raposão e como aliviadoras da tensão na leitura do livro, muito bem recebida pela crítica brasileira, que Marcatti faz questão de apresentar como "a sua Relíquia".

(Versão revista e aumentada do texto publicado no BDJornal #20, de Agosto/Setembro de 2007)
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