13/09/2012

Leituras de Banca

Setembro 2012

Revistas periódicas de banda desenhada este mês disponíveis nas bancas portuguesas.
 
Turma da Mónica (Panini Comics)
Almanaque da Mônica #32
Almanaque do Cascão #32
Almanaque do Cebolinha #32
Almanaque do Louco #3
Almanaque temático #21 – Magali - Bruxas
Cascão #63
Cebolinha #63
Chico Bento #63
Magali #63
Mônica #63
Mônica Joven #43
Mônica Teen #3
Mónica y su Pandilla - Turma da Mónica em Espanhol #12
Monica’s Gang - Turma da Mónica em Inglês #12
Ronaldinho Gaúcho e Turma da Mônica #63
Turma da Mônica - Colecção Histórica #28
Turma da Mónica – Saiba mais #54 – Semana de Arte Moderna 1922
Turma da Mônica – Uma aventura no parque #63
Turma da Mônica Jovem #45
 
DC Comics (Panini Comics)
Batman #111
Liga da Justiça #110
Superman #111
Universo DC #20
 
Marvel (Panini Comics)
Avante Vingadores #52
Homem-Aranha #121
Os Vingadores #96
Wolverine #85
Universo Marvel #19
X-Men #121
 
Mythos
A editora Mythos retomará a distribuição dos títulos de Tex nas bancas e quiosques portugueses em Outubro. http://asleiturasdopedro.blogspot.pt/2012/07/tex-regressa-em-outubro.html

 

12/09/2012

Heróis Marvel #10

Justiceiro - Diário de Guerra



 

 

 
 

 

Carl Potts (argumento)
Jim Lee (desenho)
Levoir+Público (Portugal, 06 de Setembro de 2012)
170 x 260 mm, 208 p., cor, cartonado
8,90 €

 
 

Resumo
Este volume compila as revistas “Punisher War Journal 1-8”, originalmente publicadas em 1989, nas quais há a destacar três narrativas principais: a evocação da morte da família de Frank Castle às mãos de traficantes de droga; o seu confronto com um ex-companheiro do Vietname, apostado em matar todos os sobreviventes da sua companhia e uma inusitada ida a África para combater caçadores furtivos que procuram os últimos dinossauros e que inclui um confronto com Wolverine. 
Desenvolvimento
Confesso que este era um dos volumes da colecção Heróis Marvel que mais curiosidade me despertava, não só pelo pouco que conhecia do Justiceiro, mas também porque tenho alguma empatia com relatos protagonizados por vigilantes, embora descarte completamente a sua existência na vida real.
E a verdade é que as minhas expectativas foram satisfeitas, e com um bónus: o facto de estas histórias, publicadas numa revista editada em simultâneo com o título do herói, vocacionadas para uma faixa etária superior à dos habituais consumidores de comics, evocarem o seu passado – explicando a origem da sua cruzada contra os traficantes de droga em particular e a sua experiência (traumática) no Vietname - em paralelo com as histórias narradas na “actualidade”.
Para isso, nos dois primeiros números, Potts construiu uma narrativa a dois tempos, com a evocação do assassinato da família de Frankl Castle (vítimas colaterais por se encontrarem no sítio errado, à hora errada) narrada num registo gráfico e cromático diferente, a decorrer na última tira de cada prancha, em simultâneo com a narrativa principal.
Pessoalmente, dispensava, é verdade, os comics #6 e #7, em que o Justiceiro se vê a braços com Wolverine e dinossauros (!) numa selva africana (!), cuja história, auto-conclusiva, surge deslocada do registo original do herói, pela localização da acção e pela temática. E descartaria também a última narrativa – em que as pontas soltas são mais do que as respostas dadas, numa clara ilustração do motivo porque os comics de super-heróis nunca tiveram a minha preferência: o interminável encadeamento de histórias e o distorcer até ao exagero de realidades que pareciam outras, com os simples merceiros da rua onde Castle tem um dos seus esconderijos a transformarem-se em agentes não sei bem de quê, com ramificações com uma qualquer seita oriental...
Apesar disto, os dois relatos iniciais (correspondentes aos comics #1 a #5), compensaram largamente o investimento, pois  revelaram-me o Justiceiro que eu esperava: duro, violento, acima da lei e dos trâmites legais, não invencível (mas quase), assentando a sua acção na colaboração tecnológica de Microchip e nas armas que ele vai desenvolvendo. O segundo arco, em que o seu passado no Vietname é evocado, está especialmente bem escrito, combinando o habitual registo híper-violento com a cobertura pela imprensa e o suspense quanto às motivações e identidade do assassino dos seus companheiros de pelotão, com uma crítica dura e implícita (já presente no relato inicial) quanto aos métodos e às relações dos EUA com impérios assentes no dinheiro da droga.
Este volume tem ainda o atractivo de mostrar o primeiro trabalho de fôlego para a Marvel de um tal Jim Lee, futura estrela da Casa das Ideias, num registo de traço duro e agressivo – que quase página a página - que acentua o lado violento (e de certa forma adulto) do Justiceiro.
A reter
- A evocação da origem e motivações de Frank Castle para se transformar no Justiceiro, o que permite fruir integralmente da leitura deste tomo mesmo por quem nunca ouviu falar desta personagem Marvel.
- A qualidade dos primeiros dois arcos.
- A estreia “a sério” de Jim Lee.
- A edição, cartonado, com bom papel e impressão, por um preço acessível. 
Menos conseguido
- Os exageros registados a partir do comics #6, com a inclusão de Wolverine, dinossauros e seitas orientais…

 

11/09/2012

Crematorium

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Eric Borg (argumento)
P-H Gomont (desenho)
Casterman/KSTR (França, Agosto de 2012)
190 x 277 mm, 128 p., cor, cartonado
16 €
 
 
 
Resumo
Concretizando um reencontro há muito marcado, algures numa vilazinha perdida na França profunda, Théo e Clara evocam recordações e preparam uma vingança que esperou muitos anos.
 
Desenvolvimento
Théo e Clara são as personagens centrais deste romance negro desenhado. Claramente desequilibrados, marcados pela vida e disfuncionais, desde o início deixam o leitor em dúvida sobre os laços que os unem.
O reencontro, após a saída de Théo da prisão, é atípico, parecendo mais forte o seu objectivo do que propriamente o reatar da relação.
Com uma introdução (relativamente) longa e alguns saltos ao passado que nos ajudam a compreender – ou pelo menos a aceitar – os comportamentos errantes e anti-sociais de Théo e Clara e porque regressam a uma terra marcada pelo abandono, que os esqueceu – ou quis esquecer? – a história, apesar de um certo tom depressivo,  acaba por prender o leitor, pelas dúvidas quanto à forma como vai evoluir.
Aos poucos – também com a entrada em cena de um gang local que não hesita em utilizar meios extremos para se impor - o ritmo vai crescendo, os acontecimentos precipitam-se e a violência explode, de forma amoral, explícita mas nem sempre justificada, conduzindo o leitor para um final inesperado, cru e chocante, que obriga a uma segunda leitura à luz das revelações entretanto feitas, mas que não esconde algumas insuficiências no argumento que deixa algumas pontas por atar.
Sem deslumbrar, o traço anguloso e propositadamente pouco preciso de Gomont revela-se de uma grande agilidade e bastante expressivo, o que ajuda a dar consistência ao todo.
 
A reter
- A paleta cromática utilizada, voluntariamente limitada tons frios – mesmo quando impera o vermelho do sangue – que define o tom das cenas.
- A eficácia narrativa do traço de Gomont apesar de algumas limitações.
- O desfecho surpresa e o retrato convincente do casal que protagoniza Crematorium.
 
Menos conseguido
- Algumas oscilações de ritmo e algumas indefinições na narrativa, que complicam um pouco a vida ao leitor.
 
 

10/09/2012

Lance #4

Volume 4 (de 4)






Warren Tufts (argumento e desenho)
Libri Impressi (Portugal, Julho de 2012)
235 x 335 mm, 88 p., cor e pb, brochado com badanas
26,50 €


1.       Confesso que a leitura deste tomo me provocou sentimentos contraditórios. Daí, também o atraso na publicação deste texto.
2.      Que, de qualquer forma, recebe o destaque que merece, pois marca o regresso de As Leituras do Pedro ao seu ritmo normal, com predominância das recensões sobre as notícias e os fait-divers, ritmo esse que afrouxou durante o período de férias.
3.      (Por isso, esta semana – e possivelmente também na próxima – conto mostrar por aqui muitas e boas páginas de edições de BD que vale a pena ler).
4.      A primeira reacção, foi positiva, pois este volume encerra a publicação integral de Lance, iniciada por Manuel Caldas há meia dúzia de anos.
5.      Se o facto já merecia realce em Portugal, onde tal raramente tem acontecido, merece destaque maior sabendo-se as condições artesanais (mas apaixonadas) em que Manuel Caldas trabalha.
6.      Pois demorou apenas cerca de meia dúzia de anos para (em simultâneo com outros projectos) restaurar a pureza do traço original, o seu fabuloso colorido, o seu brilho e a capacidade de deslumbramento de quase três centenas de pranchas, reunidas numa edição que desse ponto de vista merece todos os encómios.
7.      (E cuja qualidade e excelência valeram a venda desta “sua” edição de Lance a editores alemães e noruegueses, estando em estudo a sua edição também nos Estados Unidos).
8.     Edição que é também uma bofetada de luva branca em todos aqueles – e são (sempre) demasiados – que até agora não compraram Lance temendo que a edição ficasse a meio.
9.      É a esses (e alguns mais) que se deve a minha primeira decepção com este livro, pois possivelmente trata-se do último que Caldas editará em português, dado o exíguo número de exemplares que vende no país.
10.  Que, como habitualmente, deverá preferencialmente ser pedido directamente ao editor Manuel Caldas , porque ainda não foi distribuído, porque lhe permite recuperar mais do seu investimento em cada volume (e quem sabe repensar novas edições em português) e ainda terá direito a alguns “brindes”.
11.   Posto isto, entremos então na obra em si, notoriamente crepúsculo de um western de contornos clássicos, embora marcado por um forte humanismo e uma invulgar predominância dos sentimentos sobre a acção (ou como influenciadores da acção).
12.  Nele, é visível algum cansaço de Tufts (possivelmente já com outros projectos em mente) na mudança da estrutura das pranchas, até agora com três tiras, que passam a ser quatro, aproximando-as de um esquema próximo da “montagem” de tiras diárias em detrimento dos imensos painéis em que as vinhetas, muitas vezes, atingiam proporções assinaláveis.
13.  Com isso, há uma evidente perda de pormenorização do desenho e, embora o traço pareça surgir mais conciso, perde-se o esplendor dos grandes planos e a imensidão que tantas vezes caracterizava os cenários naturais do velho oeste.
14.  Em termos de narrativa, cuja análise hoje será breve, pois já a detalhei aquando da leitura dos tomos #2 e #3, na qual contornos ficcionais e base histórica continuam a ombrear, esbate-se um pouco a noção de saga que (também) marcava significativamente a diferença, devido ao facto de os episódios se tornarem mais curtos, auto-conclusivos e praticamente independentes entre si.
15.   Apesar dessa quebra na uniformidade que a narrativa até então apresentava, o protagonista, que continua envolvido nas questões políticas e activas decorrentes do confronto (mais diplomático do que bélico) entre os Estados Unidos e o México pela posse do Texas, não perde as suas características, continuando impetuoso, justo, determinado e (involuntário) Don Juan.
16.  As personagens mulheres continuam a marcar forte presença o que, a par do seu tom dramático e da tensão emocional que perpasse por muitas das suas páginas, tornam este western distinto, mantendo-o afastado dos estereótipos do género e uma leitura altamente recomendável.
17.   Nesta edição integral portuguesa. 

Nota final
Este quarto tomo de Lance fecha (praticamente) com uma explicação de Manuel Caldas para a sua paixão pela obra e sobre o trabalho de restauro que ela exigiu.
Um retrato breve (não restaurado!) da imensa paixão do editor pelos quadradinhos – por alguns quadradinhos, por estes quadradinhos.
Um retrato de leitura obrigatória para perceber como se perdem – se ganham, o que ganhamos nós! – 20 horas de trabalho aturado por prancha.
A única forma de ter em mãos, com esta qualidade, estas 261 pranchas (5200 horas, mais de 200 dias…) hoje. Hoje, como  momento em que Tufts as desenhou, com a qualidade (melhorada pelas técnicas de edição actuais) com que chegaram às mãos dos que primeiro as descobriram nas páginas de jornais.
Por isso, também por isso, muito obrigado Manuel Caldas.
Com a certeza de que, terminada esta tarefa hercúlea, de certeza que outra de qualidade similar, para nova proposta de leitura estimulante, já foi iniciada.
Há-de ter eco aqui.

09/09/2012

Entrevista com Alfredo Castelli

“Hoje, não tentaria criar Martin Mystère”
 
 
 
 
 
 
 
 
Em mais uma colaboração com o Tex Willer Blog, As Leituras do Pedro participaram numa entrevista a Alfredo Castelli, a propósito dos 30 anos de Martin Mystère, na qual ele aborda diversos aspectos relacionados com a sua principal criação.
A longa conversa que poderão ler já a seguir, com perguntas minhas, de José Carlos Francisco e Giampiero Bellardinelli, traduzida para italiano por Gianni Petino e para português por Júlio Schneider - e para todos fica aqui o meu agradecimento por a terem tornado possível - é apenas um segmento de uma entrevista bem mais extensa, que poderá ser lida integralmente aqui.
 
 
As Leituras do Pedro - A personagem de Allan Quatermain antecipou, no conteúdo, Martin Mystère. Fale um pouco disso.
Alfredo Castelli - Allan Quatermain foi a primeira encarnação de Martin Mystère e surgiu em 1975. Nesse ano eu apresentei o projeto da série a Il Giornalino, uma revista para a qual no início dos anos 70 eu tinha escrito duas séries (Gli Astrostoppisti algo como Os Boleeiros do Espaço e Mister Charade) e histórias livres. Não foi aceite.
Na época uma recusa não era um drama: como eu disse, o mercado funcionava muito bem, e tinha várias revistas que publicavam séries em episódios; se uma coisa não era aceite, era só apresentar outra, sem muitos problemas. A ideia descartada poderia ser tirada da gaveta na hora certa, como aconteceu com Allan Quatermain, que saiu em 1979 em SuperGulp. Depois do fecho da revista semanal, eu apresentei-o à Bonelli na fórmula actual, em 1980. Seguiram-se dois anos de preparação de um pacote de histórias e assim chegámos a 1982.
 
ALP – Vamos então deter-nos no Detetive do Impossível. A personagem que chegou aos quiosques em Abril de 1982, era muito diferente da sua ideia inicial?
AC - Não era muito diferente, excepto pelos nomes, pelo tamanho das histórias e pelo facto de que Quatermain morava em Londres e não em Nova Iorque.
 ALP - Qual foi a reação de Sergio Bonelli depois da publicação das primeiras aventuras?
AC - Ele esperava uma série mais agitada. Ficou muito perplexo ao ver uma personagem de BD que usava um computador um aparelho que estava há pouco no mercado mas que já na época Bonelli detestava, como tudo que era electrónico. Ele disse toda a vida a brincar, mas não de todo que eu o tinha enganado ao desenvolver uma série diferente da que tinha sido proposta.
Com relação ao computador, parece que Martin Mystère foi a primeira personagem de BD a possuir um personal computer. Não sei se é verdade, mas eu não encontrei exemplos precedentes. Eu tinha um daqueles que na época eram chamados home computer, aparelhos não muito caros que eram ligados ao ecrã da TV. Era um Atari 800, programado em basic e com os ficheiros gravados num gravador de cassetes. Fazer isso demorava vários minutos e não havia garantia de que a gravação seria suficientemente boa para permitir abrir novamente os arquivos. O Personal Computer era praticamente exclusividade da IBM e era muito caro (fazendo as devidas comparações, eu diria algo em torno de 25 000 euros atuais para um aparelho com 128K de RAM!). Como eu não podia comprar, fiz com que a minha personagem tivesse um.
 
ALP - Um dos temas dominantes da série pelo menos nos primeiros dez anos foi o dos continentes perdidos. O que o fascinava neste assunto?
AC - Eu não diria genericamente continentes perdidos, eu diria mais especificamente continentes perdidos de Atlântida e Mu.
Na saga de Martin Mystère eram duas civilizações mais ou menos como a nossa e que, por puro desejo de expansão e de poder, se tinham defrontado numa guerra que, há cerca de 10.000 anos, tinha culminado com a destruição total de ambas e tinha arrastado na catástrofe o resto do mundo, fazendo os sobreviventes regredir a um nível de semibarbárie. Um acontecimento que uma antiga seita, a dos Homens de Preto, desde sempre busca manter em segredo, destruindo tudo o que poderia provar que aconteceu: sim, porque se hoje nós nos déssemos conta do que ocorreu no passado remoto, provavelmente tentaríamos não cometer os mesmos erros de quem nos antecedeu, e isso abalaria mecanismos de poder consolidados.
Durante um certo período essa tese que, em minha opinião, possui um fascínio ameaçador constituiu a base sobre a qual assentaram cerca de 30% das aventuras de Martin Mystère. Depois a temática começou a tornar-se repetitiva e deixei-a um pouco de lado.
Nos seus trinta anos de vida Martin Mystère ocupou-se de mysteri (mystérios) de todo tipo. A propósito, mistérios em italiano diz-se misteri e mysteri (com y) é um neologismo que eu criei e que se difundiu também fora do âmbito Bonelli, usado para diferenciá-los daqueles de caráter policial ou político (infelizmente muitos, na Itália). Então, mystério é tudo o que é incomum e curioso, que estimula a curiosidade e o desejo de saber mais; não só Atlântida, o Graal ou os OVNIS, mas a História, as artes, a literatura, as ciências exactas (O mystério do último teorema de Fermat).
 
ALP - Qual é a principal diferença entre escrever histórias de Martin Mystère ou de Diabolik?
AC - Escrever histórias de Martin Mystère ou de Diabolik (ou Tex) apresenta dificuldades de carácter oposto.
Ninguém se escandaliza se Diabolik rouba pela enésima vez um diamante exposto no museu ou se Tex caça pela enésima vez uma quadrilha de assaltantes de diligências. A dificuldade para essas duas personagens não é tanto a de encontrar novas ideias, mas a de criar infinitas variações para os mesmos temas.
Com Martin Mystère este problema, graças aos céus, não existe, visto que se pode passear sobre inumeráveis argumentos, mas em compensação, ao contrário de Tex e Diabolik, ele não pode enfrentar duas vezes a mesma situação: se Martin encontra o Graal na Basílica de San Nicola, em Bari, não pode descobri-lo de novo nos subterrâneos do Castelo de São Jorge: a ideia está queimada para sempre.
É evidente que, nos primeiros dez anos de vida, o trabalho do Detetive do Impossível era só escolher o tema, mas hoje, depois de tanto tempo e de tantos mystérios variados, tudo é muito mais difícil, embora eu acredite que as ideias não se esgotarão. Hoje que, depois do sucesso do Código Da Vinci, as histórias mysteriosas estão na moda (na Itália e na Espanha todo mês saem dezenas de romances sobre esses assuntos e, francamente, eu me pergunto como é que vendem), eu gostaria de retomar, de um modo diferente, certos temas usados nos anos 80. Qualquer dia descubro uma forma engenhosa de o fazer.
 
ALP - Quais foram, na sua visão, as mudanças que a série sofreu nesses trinta anos de vida editorial?
AC - Nenhuma mudança traumática como, por exemplo, as dos super-heróis americanos.
Como eu disse, mudaram um pouco os mystérios, o BVTM (Bom Velho Tio Martin) envelheceu um pouquinho (não trinta anos, como o autor: digamos que para as personagens de BD sorte delas só se passa um ano a cada cinco dos nossos), tornou-se mais caseiro, casou-se com Diana e está decididamente mais humano e simpático que o Martin das origens.
Os seus leitores chamam-no afectuosamente de BVZM (Buon Vechio Zio Marty, ou BVTM, Bom Velho Tio Martin, em português), consideram-no um amigo e gostam de acreditar que é uma pessoa real. Sinto um orgulho realmente grande pelo relacionamento de Martin com os seus leitores.
 
ALP - A propósito de relacionamentos, o modelo herói-assistente-noiva eterna (Martin Mystère-Java-Diana) seria o mesmo se Martin Mystère tivesse sido criado actualmente?
AC - Eu diria que sim. Com as adaptações devidas, sempre funciona, desde Platão a Goldoni, e também a Cervantes e aos protagonistas de dois filmes muito mysteriosos: O Tesouro e O Tesouro 2 Livro dos Segredos, da Disney. (N.T.: no Brasil, A Lenda do Tesouro Perdido e A Lenda do Tesouro Perdido Livro dos Segredos).
 
ALP - E se criasse Martin Mystère hoje, modificá-lo-ia? E como?
AC - É uma pergunta à qual é impossível responder, as variáveis são muitas. Se Martin Mystère não existisse, mas o resto do mundo (inclusive e sobretudo o editorial) fosse exatamente o de hoje, eu não tentaria sequer criar Martin Mystère: ele não seria mais uma personagem original como era em 1982 e, principalmente, teria muita concorrência entre livros, filmes, programas de televisão.
 
ALP - A bimestralidade, em nossa opinião, fez bem à serie, mas como é que o público reagiu a essa inovação?
AC - Transformar a série mensal em bimestral foi uma decisão que alguns interpretaram erroneamente como um sinal de que as coisas não iam bem e de que se tentava salvar o salvável. Não foi isso: tratou-se de uma escolha precisa que permitiria publicar edições mais volumosas, verdadeiros livros com 160 páginas, e elaborar histórias completas sem ser preciso comprimi-las em 96 páginas. Eu contava que os leitores entenderiam e assim foi. A mudança de periodicidade aconteceu a partir do n° 279, de junho de 2005, e teve efeitos positivos imediatos nas vendas.
O próprio Sergio Bonelli, que era contrário à operação mesmo após ter permitido que eu a levasse em frente, admitiu publicamente e com muito fair play que estava errado e que ficou contente com seu erro.
 
ALP - Acreditou muitas vezes nas respostas que Martin Mystère obteve?
AC - Geralmente as tramas do Detetive do Impossível têm uma precisa base histórica, literária ou de outro tipo, mas Martin Mystère é uma personagem de fantasia que conta histórias de fantasia. Eu faço questão de destacar esse detalhe e, não por acaso, em cada edição há um artigo que explica o que há de verdadeiro e de inventado nas histórias, porque eu não pretendo fazer que os leitores acreditem em coisas não-verdadeiras.
Estabelecidas estas premissas, posso responder que acredito nas respostas obtidas por Martin em cada caso. Algumas respostas são fantásticas demais para que eu acredite nelas, outras mais ou menos plausíveis embora não comprovadas , o que me faz pensar um pouco na sua veracidade.
Mas se a pergunta é sobre como eu me coloco diante de uma matéria controversa enfrentada por Martin (como fenômenos paranormais, OVNIS, magia e coisas do género), eu digo que sou bastante céptico. E, a seu jeito, o Detetive do Impossível também o é, visto que nunca aceita nada no impulso, documenta-se e investiga do modo mais objectivo possível. É óbvio que Martin vive num mundo que, embora bastante parecido com o nosso, é de fantasia, e nele certos fenômenos podem tranquilamente acontecer.
 
ALP - Há alguma história de Martin Mystère que ainda não conseguiu contar?
AC - Existem histórias que eu gostaria de contar mas que decidi não o fazer, para seguir a filosofia da Editora com a qual, em linhas gerais, eu concordo.
O objectivo das nossas edições de série (as regras podem não valer para os one shot, volumes isolados) é um entretenimento, tanto quanto possível inteligente e, no caso de Martin Mystère, com um fundo educativo.
Os protagonistas podem aliás, devem possuir uma componente política (por exemplo, Martin Mystère é um democrata liberal, o que na Itália nós definiríamos de esquerda, e seus atos mostram isso) mas não um posicionamento de partido, o que descambaria para a propaganda.
Martin admite que não é muito religioso no sentido tradicional do termo, mas respeita todas as escolhas desse campo enquanto isso não tolhe a liberdade de terceiros. Nesse sentido do respeito deve-se enquadrar a escolha de evitar histórias sobre mystérios religiosos ou milagres. As aparições de Fátima, por exemplo, com o sol que dança e o Terceiro Segredo, poderiam ser uma ótima inspiração e ser interpretadas de modos muito interessantes, mas tais interpretações poderiam chocar a sensibilidade de quem acredita.
Nas edições Bonelli também é difícil abordar a actualidade em sentido estrito, visto que, do momento da primeira ideia para uma história até o lançamento da BD, passa-se no mínimo (mínimo mesmo) um ano. Como Martin Mystère actua num mundo real, em alguns casos clamorosos (por exemplo, o derrube das Torres Gêmeas) nós retocámos os diálogos e mudámos algumas vinhetas pouco antes de mandar o material para a impressão, mas é o máximo de actualidade que podemos nos permitir. As histórias ligadas a temas do momento provocariam, justamente, reações positivas ou negativas e, em razão dos prazos de confecção das edições, não seria possível o contraditório, uma explicação, e isso seria pouco correcto.
 
ALP - Como é o seu método de trabalho para escrever as histórias de Martin Mystère?
AC - O pior de todos, que não aconselho a ninguém.
 O método correcto para escrever uma história, seja uma BD, um romance ou um filme, é elaborar um esboço, fazer os ajustes e, quando estiver bom, fazer o argumento ou, de algum modo, elaborar a trama completa. Mas eu muitas vezes começo sem sequer saber qual será o tema central da história, eventualmente porque o desenhador ficou sem argumento e precisa de trabalhar. Depois de enviar algumas páginas boas para qualquer situação, eu vou em frente à base de dez ou quinze páginas de cada vez, quando eu mesmo descubro aos poucos do que estou a falar, e, várias vezes, acabo em situações terrivelmente complicadas.
Até hoje eu consegui fazer funcionar, mas apesar de estar acostumado é um sistema muito trabalhoso, inseguro e gerador de stress.
 
ALP - Foi fácil entregar Martin Mystère a outros autores? Como é o seu relacionamento com eles?
AC – Nem por isso. Saber que eu teria ajuda deu-me mais tranquilidade. Os autores escrevem ou desenham segundo a própria personalidade, assinam as histórias e recebem os direitos de autor assim como eu. Mas confesso que sou um pouco despótico, como as irmãs Giussani eram com Diabolik ou como Sergio era com Zagor ou Tex. Muitas vezes eu refaço os diálogos do modo que me parece mais correcto, e, em caso de discussões inclusive sobre os desenhos se não se chega a uma solução de consenso, a última palavra é minha por ser o criador e, sobretudo, o editor responsável pela série. Apesar disso, espero e acredito que sou bastante querido pelos meus colegas.
 
ALP - Qual a história de Martin Mystère feita por outro autor que gostaria de ter escrito? Qual é o desenhador com quem gostou mais de trabalhar em Martin Mystère?
AC - A essas duas perguntas, sobre os muitos outros bons autores que se alternam em Martin Mystère, eu prefiro não responder. Não sou hipócrita a ponto de fingir que não tenho preferências, como faz um amoroso pai com seus filhos: é óbvio que eu tenho os meus preferidos, mas por respeito com quem não o é, não pretendo revelar quem são. De qualquer forma (isto é verdade), todos contribuíram para que, depois de trinta anos, a série ainda esteja viva e saudável.
 
ALP - Há algum desenhador não-bonelliano que gostaria de ver a ilustrar uma história de Martin Mystère?
AC - Desenhador, eu não faço ideia. Existem vários que são muito bons, eu não saberia escolher. Mas eu gostaria que Neil Gaiman e Alan Moore escrevessem uma história. Ou todas. Escritas e desenhadas de modo completamente não-bonelliano são as aventuras da TV do jovem Martin Mystère (em Portugal, Martin Mystery, desde 2011 no canal Panda Biggs).
Antes falávamos de mudanças, e aqui, com a minha aprovação, a personagem foi radicalmente transformada para uma série de 66 desenhos animados dedicada a um público de 10/12 anos. Eu vejo que muitas vezes a versão animada de histórias aventurosas (como, por exemplo, Diabolik) que não são carne, nem peixe: não são suficientemente semelhantes ao original para contentar os leitores, e nem suficientemente diferentes para contentar outros públicos. Não é o caso de Martin Mystery, que também não é nem carne, nem peixe mas ainda é outra coisa (fruta? doce?) que pode agradar ou não. A mim, particularmente, a série não desagrada, embora eu seja, como é evidente, condicionado pelo original e, ainda mais evidente, não tenho 10 ou 15 anos. Foi como ver um filho crescer e desenvolver-se  sozinho.
 
ALP - Conhece Portugal? Já houve alguma história de Martin Mystère ambientada aqui?
AC - Eu conheço Portugal, já estive aí várias vezes (inclusive de férias, no Algarve) e gosto muito de Lisboa. Mantenho contacto com Leonardo de Sà (eu sei que o a deve ter acento agudo, mas isso não tem no teclado italiano e deve-se procurar o caracter sabe-se lá onde) (N.T.: para comodidade do entrevistado, resolvemos o problema na tradução: Leonardo de Sá :-), grande conhecedor de BD, com quem há anos troco correspondência, e tenho muitos livros e revistas dedicados à produção portuguesa, dentre os quais bastante material sobre o precursor Rafael Bordalo Pinheiro (fiquei positivamente admirado que um jornal de grande circulação como Expresso tenha lhe dedicado um volume colateral).
Há vários anos que planeio ir ao festival da Amadora mas, infelizmente, ele coincide com o de Lucca, no qual sempre tenho algum compromisso. Fico triste que Martin Mystère nunca tenha tido uma edição portuguesa (foi importado do Brasil por algum tempo); Qualquer dia faço-o viver uma aventura em Lisboa, na esperança de que seja descoberto. Leonardo sugeriu-me alguma coisa ligada à reconstrução após o terremoto de 1755, mas depois eu esqueci. Esta entrevista me fez o facto voltar à memória e eu agradeço.
 
Fotos de José Carlos Francisco
 
 
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...