07/07/2010
Gaston – Os arquivos do Lagaffe
ASA + Público (Portugal, Julho de 2010)
294 x 220 mm, 48 p., cor, brochado com badanas
A 28 de Fevereiro de 1957 anos, nas páginas da revista "Spirou" belga, aparecia pela primeira vez uma estranha personagem, então de casaco e lacinho, sem que ninguém - nem ele próprio - soubesse muito bem porquê. Poucas semanas depois, a sua indumentária mudava para uns jeans uma camisola de gola alta e umas alpercatas, que o acompanhariam toda a vida.
Após algum tempo a vaguear (literalmente) pelas páginas da publicação, Gaston Lagaffe protagonizava os seus primeiros disparates, iniciando uma longa e (justamente) celebrada carreira assente numa preguiça sem igual, numa postura física reveladora da mais entranhada moleza e numa invulgar capacidade de se ocupar com tudo e nada para deixar de lado o realmente urgente. Assim, originou um sem número de inenarráveis acidentes, invenções estrambólicas e ideias disparatadas, que fizeram a vida negra aos seus colegas da redacção da revista - com Fantásio em particular destaque - cujo edifício destruiu várias vezes e tornando-o na personagem mais calamitosa e desajeitada da histórias da banda desenhada, que fez da vida monótona num escritório uma surpresa constante. E, claro, num dos (anti)-heróis mais amados da 9ª arte, a pé ou tripulando o seu Fiat 509, inventando o ininventável ou tocando o ensurdecedor broncofone (antepassado das actualmente mal-amadas vuvuzelas...).
Através dele, Franquin, por natureza introvertido e depressivo, deu largas ao seu génio, através de um humor transbordante e contagiante e de um traço personalizado, vivo, dinâmico e extremamente expressivo, muitas vezes copiado mas nunca igualado.
Várias vezes reeditado (inclusivamente em Portugal, onde começou por se chamar Zacarias…!), imortalizado numa estátua em tamanho natural no centro da Bruxelas que ele atormentou, Gaston Lagaffe viu a sua cidade natal assinalar os seus 50 anos com um mural com mais de 3 metros de altura e um dia sem parcómetros, em homenagem à guerra que ele sempre lhes moveu nas suas aventuras, para desespero do abnegado (e infeliz) agente da lei Longtarin.
E se há período que combina bem com Gaston Lagaffe, é a “silly season” do Verão, em que tudo convida a não fazer nada…! Por isso (, também,) se saúda o início da publicação, hoje, da colecção Gaston – os arquivos do Lagaffe, fruto de parceria da ASA com o jornal Público, que se propõe publicar todas as suas aventuras, segundo a ordem da mais recente colecção francesa, num total de 19 volumes, cujas lombadas formarão uma imagem de Lagaffe.
(Versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias de 28 de Fevereiro de 2007, a propósito dos 50 anos de Gaston Lagaffe)
06/07/2010
J. Kendall – O Fim?
05/07/2010
Victor de La Fuente (1927-2010)
Natural das Astúrias, onde nasceu em 1927, De La Fuente possuía um grande domínio da planificação e um traço dinâmico e com uma grande capacidade de transmissão de movimento e foi distinguido em 2006 com o Grande Prémio do Salón del Comic de Barcelona.
Numa carreira com quase 70 anos, iniciada ainda nos anos 40 do século passado, quando ainda alternava a BD com a publicidade, De La Fuente começou por trabalhar de forma anónima para os mercados britânico e norte-americano, como tantos desenhadores do seu tempo.
O encontro com o argumentista Victor Mora, em 1967, levá-los-ia a criar “Sunday”, um dos muitos westerns que desenhou, sendo este, sem dúvida, o seu género preferido, embora tenha desenhado (e nalguns casos também escrito) histórias em muitos outros, como o comprovam séries como “Haxtur”, “Anjos de Aço” ou “Mathai-Dor”, adaptações de episódios da História de França (país onde viveu nas últimas quatro décadas) ou versões de cariz religioso como “Le fils de la vierge”, alguns dos quais editados em Portugal, em revista ou em álbum.
“Los Gringos”, com argumento de Jean-Michel Charlier, e “Aliot, le fils dês ténébres“, escrito por Alejandro Jodorowsky, são mais dois títulos da sua bibliografia, onde constam ainda, desde 1992, diversos episódios de Tex Willer, que De La Fuente foi o primeiro estrangeiro a desenhar.
Uma biografia mais extensa deste autor pode ser consultada no Tex Willer Blog.
(Versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias de 5 de Julho de 2010)
02/07/2010
Entrevista com Nelson Martins
- Como chegaste à banda desenhada?
Nelson Martins - Em miúdo, ler era para mim uma das actividades mais interessantes, em especial ler BD.
Muitos dos meus amigos da altura partilhavam esse gosto. Como tinha também o gosto pelo desenho, isso acabou naturalmente por levar à BD como forma divertida de criar e contar histórias.
- Porquê a opção por um traço humorístico, algo que é raro em Portugal?
Nelson Martins - Isso terá sido influência do tipo de BD que sempre preferi ler. Comecei a ler os “clássicos” Patinhas, Astérix, Spirou e apesar de depois ter conhecido estilos mais afastados do humorístico, como Corto Maltese, Moebius (para dar alguns dos exemplos mais conhecidos) e diversos outros mais recentes, o estilo humorístico diverte-me mais e é esse que desenho com mais frequência. Mesmo que essa possa não ser a corrente predominante em Portugal. O género aventura também me agrada, assim como um mix de aventura com humor.
- Tinhas algo publicado anteriormente?
Nelson Martins - Publiquei durante alguns anos em jornais regionais e suplementos de jornais nacionais, como o DN Jovem e o Correio da Manhã. Na forma de tiras ou de histórias de uma prancha.
Mais recentemente, participei em três séries de tiras de BD semanal para a internet (em co-produção com o Pedro Couto e Santos):
- “Os Especialistas”, para a revista online Digito.pt
- “País dos Sapos”, para o Sapo.pt
- “Os Especialistas”, para o Sapo.pt (canal de tecnologia)
A minha participação em fanzines resume-se a um caso pontual e em termos de álbuns, esta é mesmo a estreia.
- Como surgiu esta oportunidade de editar um álbum em França?
Nelson Martins - Esta oportunidade, na verdade, resultou da decisão de fazer um álbum de BD, quaisquer que fossem as probabilidades de o publicar.
Os testemunhos de alguns autores e de outras pessoas ligadas à BD em Portugal levavam a crer que publicar em Portugal não era tarefa muito fácil.
De qualquer forma, por volta de 2004 comecei a discutir com um amigo meu dos tempos de faculdade (e também sócio co-fundador da Nitrodesign), o Pedro Couto e Santos, a ideia para um álbum intitulado “Lig e Mandu – os Crápulas da Montanha”, uma história de aventuras com humor à mistura.
Divertia-nos a ideia de fazer um álbum e parecia-nos que, pela diferença de estilo, teria hipóteses de ser publicado. Uma ideia a ir desenvolvendo à medida que a nossa actividade profissional permitisse.
Entre 2006 e 2008 o argumento começou a ser desenvolvido, depois esbocei cerca de 60 páginas e finalizámos algumas. Foi esse projecto que levei ao Festival Internacional de BD de Angouléme, um mercado com mais oportunidades do que o nacional.
No festival contactei uma grande quantidade de editoras e houve algumas respostas mais entusiastas, uma em especial por parte das Éditions Joker. Numa primeira abordagem as editoras avaliam quase exclusivamente o aspecto gráfico do trabalho e foi esse o feedback que recebi, ficando a história dos crápulas da montanha à espera de outro desenvolvimento.
De volta a Portugal recebi desta editora Joker o convite para a produção de 3 pranchas a partir de um argumento existente, a título de teste. A experiência correu bem e o projecto foi-me entregue.
O argumento é da autoria de Valéry Der-Sarkissian, um argumentista francês que se estreia também assim neste álbum.
- Em que moldes trabalhaste com o argumentista?
Nelson Martins - O Valéry enviou-me o argumento em texto, com algumas indicações em relação ao layout.
O livro é uma sequência de gags humorísticos de uma prancha. Para cada prancha, o argumentista indica a quantidade de vinhetas e para cada vinheta a descrição da cena e os diálogos correspondentes entre os personagens. São indicações e funcionam apenas como tal, porque é necessário por vezes alterar essa planificação para melhor ilustrar o gag.
Para além disso enviou-me uma série de informações adicionais sobre a arquitectura do edifício do Tribunal Administrativo que serve de inspiração para o cenário onde decorrem a maioria dos gags, para definirmos mais solidamente o espaço da história.
- Como foram definidas as personagens?
Nelson Martins - Em conjunto com o argumento, recebi uma descrição breve dos 6 personagens principais, três homens
(Henri, Philippe e M. Merriot) e 3 mulheres (Océane, Marion e Rani), todos personagens solteiros.
A descrição incluía uma sugestão dos traços físicos e de personalidade de cada um. (Ex: Henri - perdidamente apaixonado pela Marion, trabalha no balcão central de atendimento do Tribunal Administrativo. Lamenta não viver no século XIX.) A interpretação gráfica dos personagens ficou a meu cargo.
À medida que as pranchas vão surgindo, as personalidades de cada personagem vão-se definindo mais um pouco, de forma que desenhar um gag com um ou com outro personagem é diferente.
- Qual a maior dificuldade que tiveste?
Nelson Martins - O projecto correu sempre bastante bem, incluindo a colaboração com o argumentista com quem estive sempre em contacto e foi sempre o primeiro a receber cada nova prancha.
A maior dificuldade foi mesmo conciliar os projectos de webdesign, que já tinha em curso, com a produção do álbum. Mas, com um trabalho redobrado, sobretudo nos 3 meses anteriores à entrega do álbum, pude acabar no prazo previsto.
- Houve pranchas recusadas ou que tiveste de modificar?
Nelson Martins - Praticamente todas as pranchas foram aceites sem reservas, havendo apenas uma ou duas com o final ligeiramente alterado para reforçar a “punch-line”. Da capa é que tive de fazer algumas versões diferentes.
- Quanto tempo demorou a desenhar e colorir o álbum?
Nelson Martins - O álbum teve início em Junho de 2009 e foi terminado em Abril deste ano. No entanto, pelas razões profissionais que referi, só nos últimos 3 meses pude trabalhar a tempo inteiro no álbum.
- Que resumo fazes desta experiência?
Nelson Martins - A minha intenção inicial era recomeçar a fazer BD e progredir como desenhador e autor. Posso dizer que isso aconteceu; aprendi muito com a experiência sobre a criação de um álbum de BD e notei a evolução ao longo dessa experiência. E mesmo quando o trabalho redobrou na fase final do projecto, iniciar uma nova prancha foi sempre aliciante.
Também pude ver que é possível fazer da banda-desenhada uma actividade mais profissional do que inicialmente pensava, desde que haja o apoio de uma editora.
- Há alguma previsão do álbum vir a ser publicado em Portugal? Gostavas que isso acontecesse?
Nelson Martins - Não há ainda previsão, mas com o primeiro exemplar em mãos, conto ir apresentar o álbum a algumas editoras portuguesas.
Gostava que o livro fosse publicado em português, a minha língua de origem. Para além disso seria também uma contribuição para o nosso mercado de BD, que precisa de mais actividade para cativar o interesse do público para este género de leitura.
- E agora, o que se segue?
Nelson Martins - A intenção inicial da Joker é fazer deste livro o primeiro de uma série. No entanto, teremos de esperar para ver a reacção do mercado franco-belga.
- Que ambições tens dentro da BD? Que projectos gostavas de concretizar?
Nelson Martins - Como já antes pensava e agora pude confirmar, é a prática envolvida nestes projectos maiores de BD que trazem experiência ao autor. Por isso gostaria de continuar a ter projectos do género, que apoiados por uma editora me permitam continuar a fazer BD de forma profissional e não apenas como hobbie.
Na BD e noutras formas de expressão artística, acho que o autor quer sempre evoluir e fazer coisas estimulantes. Gostaria de continuar a fazer BD que me divirta e inspire, assim como a quem a lê. Neste momento, enquanto aguardo a continuação da Joker, penso em formas de retomar a ideia original de “Lig e Mandu, os Crápulas da Montanha”.
(Texto integral da entrevista que serviu de base ao artigo publicado no Jornal de Notícias de 19 de Junho de 2010)
01/07/2010
As Melhores Leituras de Junho
10 pãezinhos - Um dia uma noite (edição de autor), de Fábio Moon e Gabriel Bá (argumento e desenho)
Astroboy #1 (ASA), de Osamu Tezuka (argumento e desenho)
As Tiras Clássicas da Turma da Mônica #5 (Panini Comics), de Maurício de Sousa (argumento e desenho)
Bill Baroud (Fluide Glacial), de Manu Larcenet (argumento e desenho)
Bouncer #5 - O Fascínio das Lobas (ASA), de Jodorowsky (argumento) e Boucq (desenho)
Le poilu (Delcourt), de Olivier De Rességuier (argumento e desenho)
L'impertinence d'un été - première et seconde partie (Dupuis), de Lapière (argumento) e Pellejero (desenho)
Tex - Edição em cores #2 e #3 (Mythos Editora), de Gianluigi Bonelli (argumento) e Aurelio Galleppini (desenho)
Un regard par-dessus l'Épaule (paquet), de Pierre Paquet (argumento) e Tony Sandoval (argumento)
30/06/2010
Tout sur les célibataires
Nelson Martins (desenho)
Joker Éditions (França, Junho de 2010)
225 x 297 mm, 48 p., cor, cartonado
Resumo
Henri, Philippe, M. Merriot, Océane, Marion e Rani são solteiros em busca de um objectivo (leia-se parceiro/a) para as suas vidas. Mesmo que na prática pareça mais que se esforçam por afastar todos os pretendentes do que por atraí-los.
Desenvolvimento
Tout sur les celibataires é um álbum que vem na esteira de uma longa tradição da banda desenhada franco-belga, que assenta numa estrutura de pranchas auto-conclusivas, de tom humorístico, que giram em torno de um mesmo tema. No caso, os solteiros, um género cada vez mais presente (e cada vez até mais tarde) nas sociedades ocidentais.
A partir de seis protagonistas, colegas de trabalho e amigos/inimigos de estimação, conforme os casos e as situações, explora muitas das temáticas e das formas de vida que lhe estão associadas: o (difícil) estabelecimento de relações, a sedução, a conquista (ou não), as orientações sexuais, os impeditivos para o sucesso amoroso, o (ainda) viver em casa da mamã, a excessiva idealização dos pretendentes, os jantares solitários, as conversas de amigos, os grupos de encontros, speed-dating, etc.
E o argumentista fá-lo com humor, conseguindo diversificar e inovar apesar de aparentemente ter uma galeria de protagonistas limitada e pouca liberdade temática, o que na prática não se verifica, pois a forma como as vai explorando e as diferentes abordagens conduzem a gags diversos, que com frequência obrigam o leitor a (pelo menos) sorrir. Ao mesmo tempo que permitem reflectir e analisar a forma como a sociedade e o estabelecimento de relações tem mudado com os tempos…
Para nós, portugueses, este álbum tem um atractivo extra: marca a estreia profissional de Nelson Martins como desenhador (profissional) de BD, e o mínimo que se pode dizer é que o resultado é prometedor, pois revela um bom domínio da planificação e da cor, um traço vivo, ágil, expressivo e dinâmico, bem adaptado ao conceito e ao estilo em que assenta o álbum, e mesmo com alguns toques de originalidade, como é o caso dos bigodes de alguns dos intervenientes, graficamente bem definidos e distintos, contribuindo de forma concreta para a leitura agradável do álbum.
A reter
- A forma mordaz como é (re)visitado o celibato (forçado…), tão em voga nos nossos dias…
- O traço humorístico de Nelson Martins, estilo raramente cultivado em Portugal.
- O sucesso de mais um autor nacional que fez o seu trabalho de casa e foi à procura de editor, num país onde eles existem…
28/06/2010
Le Poilu
Delcourt (França, Junho de 2010)
198 x 263 mm, 176 p., pb, cartonado
Esta é uma rocambolesca história, centrada na figura (cuja sombra ameaçadora está 8uase) sempre omnipresente, embora poucas vezes o vejamos na sua forma física) do Poilu (o barbudo), um misterioso assassino, saqueador, violador e ladrão cuja identidade e aspecto ninguém conhece pois aqueles que o viram não sobreviveram para o descrever. Este meliante, à frente de uma horda de guerreiros selvagens e violentos, engajados à força, impõe a lei do terror e do medo, assolando e incendiando todos os lugares habitados por onde passa.
Esta é também a história de dois vagabundos pouco recomendáveis, um gigante e um anão corcunda, que (por mera coincidência?) parecem seguir ou antecipar os passos do Poilu.
Esta é ainda a história de um estranho amor, entre o único sobrevivente – melhor, entre a cabeça (foi a única parte do corpo que escapou) do único sobrevivente - de um dos massacres do Poilu e uma jovem que, pensando o seu amado morto se tornou freira. Apesar das suas limitações –e de aparentemente o destino operar contra ela – a cabeça, que fala demasiado na opinião de muitos com quem se cruza, não desiste da busca pela sua amada.
Com estas personagens e algumas mais, igualmente estranhas e de difícil classificação, Rességuier constrói uma história a um tempo intrigante e divertida, que combina sonho, poesia e humor com cenas de perseguição, combate e acção, num tom que tem algo de teatral, de certa forma herdado da cena (realmente) passada no teatro, quase a abrir o livro, e assente em textos ricos e bem escritos, que muitas vezes obrigam a uma segunda leitura e cujo sentido absoluto só no final – que reserva (mais) algumas surpresas - se percebe.
Para o sustentar, Rességuier utiliza manchas de diferentes tons de cinzento que compõem as vinhetas preenchidas num traço fino, expressivo e envolvente – que por vezes (veja-se a capa) evoca um emaranhado (piloso…) que, se, é certo, nem sempre privilegia a legibilidade – por vezes é difícil distinguir os intervenientes -, contribui decisivamente para definir a atmosfera onírica e surrealista pretendida e para a originalidade deste relato.
26/06/2010
BD nacional cresce à margem das grandes editoras – Machado-Dias*
25/06/2010
BD nacional cresce à margem das grandes editoras – Inquérito a Mário Freitas*
Mário Freitas - As minhas edições surgiram inicialmente como forma de editar o meu projecto pessoal, o Super Pig, mas quis o destino que surgisse na altura outro projecto embrionário interessante, o CAOS. Assim, o que se pretendia ser apenas uma breve incursão editorial começou a tornar-se num projecto estruturado e pensado, independentemente da pequena dimensão que assume agora e que dificilmente deixará de assumir, mesmo depois dum grande êxito como A Fórmula da Felicidade. De qualquer forma, a minha missão e a dos meus colaboradores é de produzirmos BD cada vez melhor e cada vez mais profissional, capaz de ombrear com o melhor que é feito pelas editoras mais profissionais e mais capazes.
- Até onde conseguem chegar/que visibilidade têm estas edições (como as tuas)?
Mário Freitas - Estas edições saem fora da lógica das distribuidoras, a quem interessa apenas editoras maiores com inúmeros títulos em carteira. Nesse sentido, elas chegam às livrarias às quais conseguimos chegar através duma distribuição própria. Mas mesmo esta questão da distribuição, per si, nada resolve. Que interessaria, por exemplo, colocar os livros nas Bertrand, cujas livrarias demonstram um total desinteresse, e mesmo ignorância, na forma como tratam e expõe a BD?
- Nestes moldes, que futuro antevês para a BD nacional?
Mário Freitas - Um futuro em que continuarão a haver e a aparecer excelentes autores, nomeadamente artistas, e em que os melhores ou mais afortunados conseguirão chegar aos mercados realmente relevantes, como o americano ou o francês. De resto, persistirá sempre uma leva de wanna-bes, has beens e never will bes que teimará em não evoluir, em não crescer e a perpetuar a troca entre si de elogios vácuos e palmadinhas nas costas.
* editor da Kingpin Books
24/06/2010
Astroboy 1
ASA (Portugal, Junho de 2010)
127 x 182 mm, 224 p., pb, brochada
Resumo
Astroboy é uma das mais famosas criações de Osamu Tezuka (1928-1989), considerado o pai do manga moderno e, sem dúvida, o mais importante autor do género, sendo esta a primeira vez que o autor é publicado no nosso país.
Astroboy, cuja versão cinematográfica estreou há poucas semanas nos nossos cinemas e cujo sucesso da versão animada, em 1963, estaria na origem do grande boom da animação japonesa, é a designação ocidental de um herói criado em 1951 sob o título de Atomu Taishi e um ano mais tarde alterado para Tetsuwan Atomu.
Manga “shônen” (ou seja, direccionado para o público juvenil masculino), de grande longevidade – foi publicado até 1968 - é uma história de ficção-científica que decorre no (então futuro e distante) ano de 2003, num tempo em que máquinas e humanos vivem lado a lado. O protagonista é um poderoso robot, criado por um cientista para substituir o seu filho falecido num desastre de automóvel, mas depois abandonado por não crescer e se desenvolver. Astroboy acaba por tornar-se o herói de Metro City, usando as suas super-capacidades para combater o mal
Desenvolvimento
Para os nossos dias, o tom – e a forma como são abordadas temáticas como a conquista do mundo a colonização da Lua ou a construção de robots a partir de seres vivos - pode parecer algo ingénuo, mas não deixa de ser um prazer ler Tezuka em português e descobrir (algum)as qualidades que fizeram dele um dos grandes autores aos quadradinhos de sempre: o ritmo, originalidade e imprevisibilidade das histórias, a planificação variada e dinâmica…
Apesar do tom aventuroso de Astroboy, Tezuka fez dele um hino à tolerância e à amizade, o que é de alguma forma visível no segundo (e maior) dos relatos incluídos neste tomo, ou não tenha sido o herói imaginado num Japão ainda sob os efeitos da derrota na II Guerra Mundial.
Curioso também é verificar como o seu traço simples – quase apetece escrever infantil – funciona tão bem num registo de ficção-científica como é este, quanto em histórias de outro cariz, sejam lendas, aventuras de acção, policiais ou de crítica social.
Fica o desejo que o “sucesso” desta “trilogia” permita à ASA posteriormente avançar com outros títulos (mais estimulantes) do autor, de temática mais adulta.
A reter
- A edição de Tezuka em português.
- A estreia da ASA na edição de manga japonês.
- A publicação do livro praticamente em simultâneo com a estreia do filme. Parece (e é) lógico, mas tem sido raro em Portugal.
Curiosidade
- As três histórias (completas) contidas neste volume têm introduções – igualmente aos quadradinhos -, protagonizadas pelo próprio Tezuka –posteriores á data original de publicação, que ajudam a perceber o contexto em que foram criadas.
- Este é o primeiro dos três volumes de Astroboy que a ASA tem agendados, devendo os restantes chegar às livrarias em Julho e Agosto.
- A edição portuguesa, de boa qualidade, respeita o sentido de leitura original, ou seja, da direita para a esquerda e do “fim para o princípio” (em relação à forma como geralmente se manuseiam os livros ocidentais).
(Versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias de 5 de Junho de 2010)
BD nacional cresce à margem das grandes editoras – Inquérito a Osvaldo Medina *
Osvaldo Medina - Publicar numa editora pequena foi simplesmente fruto do acaso, ao desenhar o livro «A tua carne é má» , escrito pelo Pep, despertei a atenção do Nuno Duarte e do Mário Freitas que apostaram em mim para “A Fórmula da Felicidade”. Se isto tivesse acontecido com uma editora grande provavelmente faria o mesmo. Mas a verdade é que numa editora grande há um medo terrível em apostar em novos autores - vai vender? Não vai vender? Vale a pena? Não vale? Mais depressa apostam num nome desconhecido americano, japonês ou de outra qualquer nacionalidade - desde que venha de fora de portas - que num nome nacional. A questão é simplesmente esta, não apostam no “prato” da casa! Isto acontece em todos os ramos, porque não neste ramo também? Claro que isto arrasta um sem número de consequências para a BD nacional.
- Até onde conseguem chegar/que visibilidade têm estas edições?
Osvaldo Medina - A visibilidade é pequena, não vale a pena andarmos com rodeios nesse aspecto. Se a editora é pequena, como é óbvio, não terá os meios para uma grande divulgação. Há as feiras, os salões (quantos, em Portugal, por ano?)e pouco mais. Se conseguirmos um espacito na FNAC não é mau, mas normalmente estas edições ficam num cantito empoeirado sem qualquer destaque, nada que diga “gosta de BD? Venha cá ver isto!!” Não é preciso puxarmos do orgulho nacional e salientar “isto é luso!!” porque na verdade, acho que afasta mais do que chama. Existe um preconceito brutal por parte dos leitores no que diz respeito à BD nacional. A maior parte acha chata e sem piada nenhuma e se calhar não é de todo mentira. Temos que mostrar o produto, sem vergonha, e pedir a opinião das pessoas, dos clientes, dos leitores. Porque se queremos que isto vá a algum lado é assim - temos um produto e queremos passá-lo para as mãos das pessoas - mais nada.
A visibilidade chega, acima de tudo, onde chegam os “carolas” da BD. Quem gosta fala do que gosta a outros “carolas” e a coisa vai passando de boca em boca. Blogues, sites e por aí fora.
- Nestes moldes, que futuro antevês para a BD nacional?
Osvaldo Medina - Temos cada vez mais pessoas a fazer, cada vez mais e cada vez melhor, temos cada vez mais pessoas a serem editadas fora do país. Isto só pode ser bom! Mas no nosso país não há cultura de BD. As pessoas não lêem - a não ser a ”Maria” e “A Bola” - e não estão habituados a gastar dinheiro em livros. A BD será sempre algo de nicho, para especialistas. A não ser que se chegue às pessoas. Temos que ir atrás delas. O que querem ler? Que tipo de histórias?
Se calhar estou a ir contra as ideias de muitos “artistas” mas, na minha opinião, os artistas morrem de fome e só são reconhecidos a título póstumo.
Neste momento temos uma massa crítica em termos de autores muito boa, que abarca todos os géneros, mas quantos vivem da BD? Nenhum? Um? Porquê? Porque não há leitores suficientes! Não há editoras a apostar! Não há mercado de base, logo não há dinheiro de retorno para os autores que preferem deixar a BD ( ocupa muito tempo) e ir trabalhar noutros meios.
* Desenhador de A Fórmula da Felicidade e Mucha
23/06/2010
BD nacional cresce à margem das grandes editoras – Inquérito João Tércio*
- Publicar em pequenas editoras é uma opção pessoal ou a única alternativa face ao desinteresse por parte das “grandes” editoras?
João Tércio - É as duas coisas. No meu caso foi com grande satisfação que vi o meu primeiro álbum editado por um amigo, colega e pessoa ligada à BD portuguesa há mais de 20 anos, Pepedelrey. Alguém que sempre acreditou no meu trabalho. Aliás, estou a trabalhar num novo livro com ele mas de momento não posso adiantar pormenores; top secret!
Por outro lado, não sei se tem a ver com o efeito crise, as grandes editoras não mostram grande interesse em apostar em novos autores e preferem por enquanto dedicarem-se a reedições de clássicos e a continuar a trabalhar com os talentos já confirmados. Este ano em Angoulême não vi grandes novidades.
- Até onde conseguem chegar/que visibilidade têm estas edições?
João Tércio - Tudo depende da capacidade de distribuição... se conseguirmos entrar no mercado brasileiro penso que a BD em língua portuguesa pode crescer muito nos próximos anos. Nos outros mercados temos de pensar em edições bilingues ou trilingues para angariar o máximo número de leitores. Mas mesmo lá fora e em países onde se consome BD como França, Itália, Espanha, o mercado varia muito. E se retirarmos a percentagem maior, que são os comics americanos e a manga japonesa, a fatia que sobra é muito pequena mas muito variável. Hoje quer-se uma BD politicamente correcta, amanhã uma viajem introspectiva de autor, e depois quer-se é erotismo kafkiano, etc...
- Nestes moldes, que futuro antevês para a BD nacional?
João Tércio - O habitual futuro negro de autor de banda desenhada...
Penso que em Portugal é muito devido à determinação e talento dos autores se tenta revolucionar a 9ª arte, que ao longo dos anos tem sido de alguma maneira menosprezada como uma arte menor. Se esta revolução de vários estilos, cores e feitios chegará a bom porto, só a médio prazo o saberemos. Continuo a sublinhar a importância que o mercado brasileiro pode vir a ter para a BD portuguesa, porque vejo aí uma grande vontade de ler projectos novos em português.
* Autor de Março Anormal
22/06/2010
L’impertinence d’un été – première e seconde parties
Rúben Pellejero (desenho)
Dupuis (Bélgica, Abril de 2009 e Maio de 2010)
236 x 306 mm, 56 + 56 p., cor, cartonados
Resumo
México, Janeiro de 1942. É noite. O passageiro de um táxi pede ao motorista para parar no meio da rua. Pede-lhe que espere, sai e deposita no chão empedrado um lenço feminino. Volta ao carro e convida o condutor para beber um copo, enquanto lhe conta uma história. A história do fotógrafo norte-americano Edward Weston e da actriz, modelo e fotógrafa italiana Tina Modotti e da sua relação, ao mesmo tempo forte e distante, num país sacudido pela revolução onde sopram os ventos de (todas as) liberdades.
Desenvolvimento
É uma história – uma biografia ficcionada – que ele conta com exactidão mas também parcialidade, com a emoção só possível a quem conviveu de perto com os biografados. Porque o narrador, que suportará o relato ao longo dos dois tomos, é Théo, amigo dos dois amantes. Porque Weston deixou mulher e filhos na pátria para se juntar a Tina e para procurar um sentido para a fotografia, o meio – a arte - que escolheu para expressar os seus sentimentos e visões do mundo, num México conturbado e em plena efervescência, onde revolução rima com liberdade – todas as liberdades – e com arte (todas as artes, com destaque para as dos “muralistas” como Diego Rivera ou Xavier Gerrero).
Por isso, este relato acaba por se desenvolver a três níveis, que se entrecruzam e são indivisíveis. Por um lado, a relação dos dois, propriamente dita, feita de sensualidade, paixão e ciúme pois Tina, mesmo amando Weston, nunca foi mulher de um homem só, e ele, também, está dividido entre a sensual amante e os filhos que deixou (com a mulher) nos EUA.
Depois, o relato tem uma forte componente política, discutida em rodas de amigos, patente no contexto histórico que suporta a narrativa, entre a repressão conservadora e a (tentativa de) explosão do marxismo, passando pela perseguição e repressão do catolicismo, entre ambições pessoais e esperanças colectivas, num boião explosivo em que certos momentos sugerem a utopia de que tudo é possível. Numa época entre o “fim do mundo” causado pela I Guerra Mundial e a sua reconstrução em curso, que muitos acreditavam possível sem todos os defeitos e perigos do anterior.
Finalmente, L’impertinence d’un été é uma longa dissertação sobre arte, sobre o que a motiva e origina, sobre o momento criativo, sobre a insatisfação (que tantas vezes surge) face ao objecto criado, sobre as motivações, os desejos e os objectivos do artista.
Lapiére, com um texto contido mas profundo, em que as palavras têm o peso exacto, muitas vezes dizendo tanto quanto o que deixam intuir, conduz o relato – belo, poético, sentido - de forma equilibrada, aproveitando os momentos passados no tasco onde Théo e Miguel – o condutor de táxi – bebem e conversam – melhor, onde um conta e o outro escuta -, para os saltos temporais necessários à acção propriamente dita, passada cerca de 20 anos antes, no momento em que tudo acontecia.
Théo, o narrador, aliás Théophille Genet, pintor francês, personagem fictício, tem, apesar disso, uma enorme dimensão humana, expressando nas suas palavras, nos seus olhares, nos gestos e tiques, toda a emoção - todas as emoções: paixão, vibração, nostalgia, melancolia, tristeza, saudade… – que viveu (e agora revive). Sentimentos por vezes opostos, é verdade, mas que têm a sua razão de ser pela forma como acaba a história dos dois amantes – cujo reencontro serve apenas para se voltarem a separar – e como acabam, também, todas as ilusões e utopias (por isso são ilusões e utopias…) que foram sendo construídas... Como se tudo não tivesse sido apenas um imenso sonho de verão, que, no entanto, não durou mais do que os dois, três meses estivais, para depois a vida mergulhar nos mais sombrios Outono e Inverno, sem a esperança de uma Primavera que para Weston e Tina nunca chegou…
Quanto a Pellejero, com a sua habitual linha clara, de traço largo e expressivo, servida por cores planas, neste díptico quase sempre de tons mais sombrios, embora aqui e ali a cor expluda em momentos específicos e bem determinados, consegue passar para o desenho – com o desenho –, de forma notável, a carga sentimental inerente à história; veja-se, por exemplo, a belíssima e expressiva sequência de abertura do primeiro tomo ou a descrição da solidão de Weston no final do mesmo.
A reter
- A força e a emoção do relato.
- O traço de Pellejero (de quem, confesso, sou fã, há muitos anos).
Menos conseguido
- Eu sei que os autores demoram o seu tempo a criar e que, comercialmente, a obra funciona melhor assim, mas esta é uma daquelas historias que devia ser contada num só volume, para ser lida de uma só vez.