14/04/2010

BD e religião

Criada à imagem e semelhança dos autores que nela trabalham e do meio em que estão inseridos, a banda desenhada, naturalmente, tem abordado de forma recorrente questões religiosas.
Essas abordagens têm sido feitas sob os mais variados prismas, da pura ficção à narrativa de episódios históricos, narrando biografias ou ilustrando a própria Bíblia.
Neste último exemplo encaixa-se The Book of Genesis Illustrated (W.W. Norton & Company), de Robert Crumb, pai da BD underground e autor provocador, lançado no final de 2009, que prometia polémica mas que se revelou apenas uma leitura fiel do primeiro livro da Bíblia, tendo por base o texto integral, ilustrado de forma clássica e com muita mestria. Na mesma linha e na mesma época, surgiu “Yeshuah – Assim em cima, assim em baixo” (Devir Livraria), dos brasileiros Laudo Ferreira e Omar Viñole, primeiro tomo de uma trilogia sobre a vida de Cristo.
São dois exemplos recentes de uma linhagem já com algumas décadas, que inclui versões clássicas, próximas do texto original, como a “História do Povo de Deus - Bíblia em Banda Desenhada em 8 Volumes” (Edições Salesianas), de Thivolier e Charpentier, ou “La Bible” (Delcourt), de Camus, Dufranne e Zitko.

Mas também existem versões em manga (banda desenhada japonesa), como “The Manga Bible” (Hodder and Stoughton), uma versão condensada criada pelo britânico Siku em 2007, que tomou como ponto principal “mostrar a humanidade de Cristo", ou "The Manga Bible Story-japanese: Comic Book Style Bible", do japonês Masakazu Higuchi.
A outro nível, a Bíblia serviu de inspiração a Charles Schulz o criador dos "Peanuts", um luterano convicto, que muitas vezes utilizou versículos citados por Charlie Brown ou Snoopy (o que esteve na origem do livro "The Gospel According to Peanuts" (1965) do pastor presbiteriano Robert L. Short), ou a Maurício de Sousa, que ilustrou um álbum intitulado "Passagens Bíblicas com a Turma da Mônica".
Num contexto histórico encontram-se biografias ou relatos como “Don Bosco” (Dupuis), feita em 1949 por Jijé, futuro criador de Spirou e Jerry Spring, “Fátima”, do mestre português Eduardo Teixeira Coelho, ou “Avec Jean-Paul II” (Éditions du Triomphe), por Dominique Bar, Louis-Bernard Koch e Guy Lehideux, este últim editado pouco antes da sua morte. Este papa aliás, esteve no centro de uma outra BD, polémica, do artista plástico colombiano Rodolfo Leon, “El Increible HomoPater”, que o mostrava como super-herói, regressado dos mortos, treinado por Batman e Super-Homem…
Outros papas inspiraram autores de BD, em registos ficcionados. É o caso, para referir edições disponíveis em português, de “Bórgia” (ASA), um retrato virulento e licencioso do ministério papal de Alexandro VI, aliás Rodrigo de Bórgia, no século XV, traçado em função dos seus actos violentos, das suas intrigas e da sua prepotência, ou a série “Escorpião”, que conta as aventuras de um caçador de relíquias sagradas, em busca da verdadeira cruz onde o apóstolo Pedro foi crucificado para, desmascarar o novo papa Trebaldi, ou o mais clássico "Vasco", de Chailet, sobre as lutas pelo poder - ecular e religioso - na Itália do século XIV.

As teorias da conspiração, na sequência do êxito do Código Da Vinci, de Dan Brown tem inspirado muitos autores franco-belgas – embora algumas delas lhe sejam anteriores –, destacando-se, por exemplo “Le Triangle Secret”, escrito por Didier Convard, que já teve diversas sequelas, que tem por base o pressuposto que Jesus teria um irmão gémeo que ocupou o seu lugar após a crucificação, segredo que uma poderosa organização tentou a todo o custo manter até aos nosso dias.
A mesma base preside a “Revelações” (BDMania), de Paul Jenkins e Humberto Ramos, um policial que decorre em pleno Vaticano, onde se confrontam fé e razão. Na mesma linha está “O terceiro Testamento” (Witloof), de Dorison e Alice, que narra uma longa investigação de um inquisidor caído em desgraça.
Bem original é “Dieu en personne” (Delcourt), um verdadeiro ensaio em BD sobre a divindade da autoria de Marc-Antoine Mathieu que tem como ponto de partida o regresso de Deus à Terra que criou, para ver o seu estado, combater a solidão que sente e aprender a faculdade de rir, terminando tudo num mega-processo conta Ele.
Para finalizar esta relação, obrigatoriamente curta e subjectiva, em "Pourquoi j’ai tué Pierre" (Delcourt), embora datado de 2006, Oliver Ka, com o desenhador Alfred, aborda de forma pudica e sensível, num registo autobiográfico que serviu para exorcizar os seus fantasmas, um tema que infelizmente faz a actualidade: a pedofilia na Igreja Católica.
Mas não só do cristianismo se alimenta a banda desenhada. “Mágico Vento”, um western Bonelli, criado por Gianfranco Manfredi, que chega mensalmente aos nossos quiosques na edição brasileira da Mythos, é protagonizado por um branco que é também um xamã sioux, abordando muitos temas relacionados com as crenças dos índios norte-americanos e com o sobrenatural. Sobrenatural, também, é o Hellboy de Mike Mignola, de que a G-Floy Studios acaba de lançar entre nós “Terras Estranhas”, um demónio evocado pelos nazis mas que se torna no seu maior adversário, combatendo também outros seres fantásticos e demoníacos.
Adéle Blanc-Sec, a invulgar heroína de Tardi, cujas aventuras extraordinárias foram parcialmente editadas pela Bertrand e pela Witloof, e cuja adaptação cinematográfica da responsabilidade de Luc Besson chegará em breve aos cinemas, combate uma seita de adoradores do demónio assírio Pazuzu que exigia sacifícios humanos, tal como o culto de Moloch-Baal com que se viu a braços em “O Túmulo Etrusco” (Edições 70) Alix, o jovem herói da antiguidade clássica a que Jacques Martin deu vida
E foi sobre crendices e superstições, cuja fronteira com a religião é muitas vezes ténue, que Goscinny e Uderzo se debruçaram no irresistível “Astérix e o Adivinho” (ASA).

(Versão revista e alargada do texto publicado no Jornal de Notícias de 3 de Abril de 2010)

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