Era uma dos álbuns mais aguardados do ano e será, certamente, um dos mais vendidos, graças ao nome do seu autor - François Schuiten, que tem no argumento a parceria do romancista Thomas Gunzig e do cineasta Jaco Van Dormael - e por se tratar de uma abordagem muito original ao universo de Blake e Mortimer. E por se tratar de uma belíssima obra.
No
entanto, nem todas as expectativas serão cumpridas, como explico mais à frente, num texto que poderá revelar mais do que os leitores querem saber, por isso, prossigam por vossa conta e risco.
O
livro abre com uma citação do próprio Schuiten: “Porque razão
as histórias de E. P. Jacobs se enraizaram de forma tão forte em
nós?”, que pessoalmente partilho. Mais a mais quando Le
Dernier Pharaon
tem como ponto de partida o final de O
Mistério da Grande Pirâmide
- que pela sua temática me marcou especialmente. E também a
Mortimer, desde então vítima de pesadelos constantes e de alguma
forma desacreditado perante a opinião pública e os seus pares
devido a eles, como
descobrimos nas primeiras pranchas desta obra, cuja acção decorre
alguns anos mais tarde.
No
início, a
investigação de alguns hieróglifos, escondidos no interior do
Palácio de Justiça de Bruxelas, acaba por provocar uma situação
limite para Mortimer, no decurso da qual se manifesta um
potente campo magnético, localizado no interior do edifício,
que acabará
por obrigar à evacuação da cidade e ao seu confinamento para
tentar evitar o espalhamento do fenómeno e dos seus efeitos -
auroras boreais, paragem dos circuitos eléctricos e alucinações
naqueles que lhe são expostos...
Algum
tempo depois, perante a ameaça de um bombardeamento iminente para
tentar eliminar o fenómeno mas cujas consequências poderão ser
globalmente desastrosas, Blake solicita
nova intervenção
de Mortimer - ambos envelhecidos em relação à imagem (perene) que
temos deles - que avança para a cidade (agora) interdita e fantasma,
para
investigar
a origem do
pulso magnético e
tentar
contê-lo.
Pelo
caminho, surgirão aliados inesperados e se a temática de
ficção-científica que predomina na maioria dos
títulos de
Jacobs tem presença determinada, a
obra tem
igualmente outros níveis de leitura que nos transportam para a nossa
realidade actual e nos obrigam - deveriam obrigar, pelo menos - a
questionar o que estamos a fazer deste planeta e qual o legado que
vamos deixar (já) aos nossos descendentes directos, perante a cada
vez maior dependência da tecnologia, os problemas da imigração ou
o crescimento do individualismo e da sociedade consumista, em
detrimento da solidariedade e da vida em conjunto.
Com
um arranque de ritmo propositadamente moderado, para permitir
absorver a informação fornecida - e
também
contemplar a beleza do traço de Schuiten! - Le
dernier pharaon
- como era apanágio da obra de Jacobs - assume uma actualidade que
está ausente da maioria das retomas deste universo. E,
contrariamente ao habitual, não abusa demasiado dos textos de apoio
longos
e redundantes,
o que permite a
aceleração crescente
do
ritmo na segunda parte do álbum, com as descobertas e as revelações
a sucederem-se até ao final que, certamente, surpreenderá um bom
número de leitores.
Se
o ponto de partida, como revelou Schuiten, foram algumas anotações
de Jacobs que
vieram ao encontro da vontade
do
desenhador de
centrar a história num edifício que já
apreciava,
uma leitura atenta evocará no leitor, obviamente, diversos momentos
de O
Mistério da Grande Pirâmide,
mas também lhe permitirá descobrir uma série de referências, mais
ou menos evidentes, embora a diversos níveis, a outras obras do
criador
original
da dupla britânica: os engenhos de O
Segredo do Espadão,
os animais pré-históricos de O
Enigma da Atlântida,
as
alterações climáticas
de S.O.S.
Meteoros…
Mas
existem
igualmente
referências
mais pessoais do
próprio Schuiten, como a
participação do seu cão como companhia de Mortimer, uma breve (mas
marcante) utilização
de
A
Doce
no
relato
ou
a utilização
de uma brecha na parede como
passagem para
a área
desconhecida
do Palácio da Justiça, tal como acontecia em Le
Musée des Ombres,
a exposição que Angoulême lhe dedicou em 1999. E,
sobretudo,
neste
álbum, gráfica e tematicamente tudo direcciona para o magnífico
universo das Cidades
Obscuras,
idealizadas
por Schuiten e Peeters, a
que este álbum poderia perfeitamente pertencer, pelo grafismo,
pelo
protagonismo da cidade de Bruxelas, pelas preocupações
levantadas...
Referi
no
arranque deste texto
que Le
Dernier Pharaon,
no
entanto, não
cumprirá todas as expectativas geradas
em seu redor, pois
estou convencido que muitos puristas da série de Jacobs não vão
gostar da enorme volta que Schuiten deu aos seus heróis de eleição,
mas isto não coloca de forma nenhuma em causa a excelência da
abordagem feita - numa óptica de
qualidade intrínseca da obra,
de homenagem ao original e de
transposição dos seus princípios básicos para um relato
plenamente actual apesar das décadas que separam o tempo da acção
dos nossos dias - e que ela fará - sem excepção, atrevo-me a
escrever… - as delícias dos
admiradores de As
Cidades Obscuras,
que facilmente o identificarão como (mais) um título da série.
Nota
1
Última
obra de François Schuiten em BD - segundo revelação do próprio em
entrevista -
Le
Dernier Pharaon
funciona como um belíssimo encerramento de uma carreira notável e
seria difícil ter deixado melhor testemunho do que a BD significou
para ele e do nível a que elevou esta arte.
Nota
2
Em
francês, este álbum está igualmente disponível em formato
italiano, com meia prancha por página. Na prática, significa a
reprodução dos desenhos de Schuiten cerca de 30 % maiores do que na
versão tradicional...
Nota
3
Como já escrevi por aqui,
Le
Dernier Pharaon
foi ‘disputado’ por três editoras portuguesas. A ASA, que acabou
por comprar os direitos - possivelmente por editar já a série
principal - anunciou a sua edição para… Março de 2020?!
Num
mercado pequeno como o nosso, quase um ano de atraso na publicação
da edição em português em relação à original, para mais num
livro que desperta
tantas expectativas, representará a perda de umas centenas de
exemplares de vendas em proveito da edição francófona. Se existe
alguma lógica nisto, francamente não a consigo perceber...
Adenda 1
Considero justificado o comentário do pampam mais abaixo, por isso, para além da inclusão do colorista na ficha técnica, aqui ficam as minhas impressões sobre as cores deste livro.
François Schuiten, para além de um excelente ilustrador, foi sempre também um bom colorista, mas a escolha de Laurent Durieux para este álbum, (re)conhecido pelo seu trabalho como ilustrador, especialmente em cartazes, foi completamente acertada.
A sua contribuição - para alguns o aspecto mais saliente deste álbum - é magnífica pela forma como consegue criar ambientes e sensações através da uma utilização de uma paleta de tons maioritariamente sombrios e frios e com eles dotar o livro de uma grande legibilidade e de uma verdadeira alma, ao mesmo tempo que reforça as texturas e os volumes criados por Schuiten.
Para isso contribui, também, o tipo de papel e de impressão que o ilustrador belga 'exigiu' para o seu último álbum - respectivamente impressão UV e papel Munken - que realçam o trabalho gráfico e de cor dos dois autores. Este tipo de impressão, que teve de ser feito numa pequena tipografia tradicional italiana, é muito mais demorada, o que levou a que a preparação dos álbuns 240 mil álbuns da primeira edição francófona tivesse levado três semanas.
Será que a edição portuguesa terá de seguir o mesmo sistema e isso é (mais?) uma razão para o atraso? Não sei, mas parece-me que este é um daqueles casos em que os leitores mereciam uma explicação. Prévia, de preferência.
Adenda 1
Considero justificado o comentário do pampam mais abaixo, por isso, para além da inclusão do colorista na ficha técnica, aqui ficam as minhas impressões sobre as cores deste livro.
François Schuiten, para além de um excelente ilustrador, foi sempre também um bom colorista, mas a escolha de Laurent Durieux para este álbum, (re)conhecido pelo seu trabalho como ilustrador, especialmente em cartazes, foi completamente acertada.
A sua contribuição - para alguns o aspecto mais saliente deste álbum - é magnífica pela forma como consegue criar ambientes e sensações através da uma utilização de uma paleta de tons maioritariamente sombrios e frios e com eles dotar o livro de uma grande legibilidade e de uma verdadeira alma, ao mesmo tempo que reforça as texturas e os volumes criados por Schuiten.
Para isso contribui, também, o tipo de papel e de impressão que o ilustrador belga 'exigiu' para o seu último álbum - respectivamente impressão UV e papel Munken - que realçam o trabalho gráfico e de cor dos dois autores. Este tipo de impressão, que teve de ser feito numa pequena tipografia tradicional italiana, é muito mais demorada, o que levou a que a preparação dos álbuns 240 mil álbuns da primeira edição francófona tivesse levado três semanas.
Será que a edição portuguesa terá de seguir o mesmo sistema e isso é (mais?) uma razão para o atraso? Não sei, mas parece-me que este é um daqueles casos em que os leitores mereciam uma explicação. Prévia, de preferência.
Le
Dernier Pharaon
Colecção
Autour
de Blake & Mortimer, tome
11
François
Schuiten, Thomas
Gunzig e
Jaco
Van Dormael (argumento)
François
Schuiten (desenho)
Laurent Durieux (cor)
Laurent Durieux (cor)
Blake
et Mortimer
França,
29 de Maio de 2019
237
x 310 mm,
92
p.,
cor, capa dura
EAN
9782870972809
17,95
€
307
x 243
mm,
176
p.,
cor, capa dura
EAN
9782870972830
29,95
€
De facto, a decisão da ASA de só publicar o livro um ano depois não tem qualificação! Obviamente vai vender menos do que o que devia e depois virá a justificação ah e tal, temos de repensar se continuamos ou não a publicar este álbuns novos...enfim!
ResponderEliminarNa verdade, e como editor, tenho de concordar completamente com a decisão da ASA. Sendo uma editora que se rege por métodos de comercialização diferentes dos nossos - G.Floy - e que tem um tipo de comercialização com mais exigências do que as nossas, seria difícil à ASA lançar em simultâneo DOIS álbuns do Blake e Mortimer. Na prática, eles são suficientemente distintos (e possivelmente mesmo controversos juntos dos fãs normais) para exigirem um marketing e uma comercialização diferentes. As tiragens e as vendas do B&M também serão provavelmente de molde a não causar preocupações específicas sobre a perda de vendas para a edição francesa. Mas são livros que a ASA não pode lançar ao mesmo tempo, e a segunda metade do Vale dos Imortais tem data de lançamento em França já marcada, e a ASA quer lançar ao mesmo tempo (Novembro).
ResponderEliminarDe acrescentar que o Último Faraó não foi editado em simultâneo em lado nenhum e que os ficheiros de edição ainda não estavam prontos para tradução. Ou seja, a ASA não pode adiantar o Livro 2 dos Imortais, quer lançá-lo ao mesmo tempo, e não se pode dar ao luxo de lançar o Faraó simultaneamente. A única solução era portanto adiar para inícios de 2019.
Muito bem Freitas, bem argumentado!
EliminarEstranho!
ResponderEliminarNão referes o Laurent Durieux, nem no texto nem na ficha técnica final.
Ele que até tem o nome na capa, coisa rara (ou nunca vista) num colorista.
Além de ser também autor (da cor!), leva o desenho do Schuiten e da série para sítios nunca visitados.
Pelas imagens vistas parece-me um trabalho notável e que deve ser destacado.
Acho o comentário justo, por isso fiz uma adenda ao meu texto. Caso raro aqui no blog.
EliminarBoas leituras!
Para isso contribui, também, o tipo de papel e de impressão que o ilustrador belga 'exigiu' para o seu último álbum - respectivamente impressão UV e papel Munken - que realçam o trabalho gráfico e de cor dos dois autores. Este tipo de impressão, que teve de ser feito numa pequena tipografia tradicional italiana, é muito mais demorada, o que levou a que a preparação dos álbuns 240 mil álbuns da primeira edição francófona tivesse levado três semanas.
ResponderEliminarSerá que a edição portuguesa terá de seguir o mesmo sistema e isso é (mais?) uma razão para o atraso? Não sei, mas parece-me que este é um daqueles casos em que os leitores mereciam uma explicação. Prévia, de preferência.
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Já se sabe se é assim? se tem papel especial na edição da ASA? senão vou considerar a edição francófona.
cumps
Sim, a edição portuguesa segue as especificações da francesa.
EliminarObrigado.
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