Marcello Fontana (argumento)
André Leal, António Cedraz e Naara Nascimento (desenho)
RV Cultura e Arte (Brasil, 2011)
2220 x 165 mm, 56 p, cor e pb, brochado
R$ 15,00
Resumo
Passada na cidade da Bahia (como Jorge Amado escreveu), esta
é a enésima versão do eterno triângulo amoroso, formado por Bárbara, Jorge e
Jarcisley, que cresceram juntos mas a quem o destino separará.
Desenvolvimento
Mas é uma versão com algumas variantes originais o que, a
par da forma intensa como está narrada aos quadradinhos, a tornam interessante
e justificam plenamente a sua leitura.
Desde logo pelos sentimentos – por vezes antagónicos – que predominam
ao longo de toda a narrativa. E que unem os três protagonistas, que se conhecem
desde a infância. Ou que os separam.
Porque se entre eles há amor, paixão e desejo, há também
ódio e aversão. E tudo isto, combinado com interesses e ambições, acaba por
resultar numa mistura explosiva, numa história (bem) ambientada numa zona
problemática da cidade da Baía, o bairro da Mata Escura (que o
título do livro evoca), desejado por gangs e traficantes (de droga, de gente…) e que
funciona bem como estereótipo de um certo Brasil, tantas vezes presente nas
notícias, em que o belo e o sombrio se confundem.
Desde criança, a bela Bárbara sempre preferiu Jorge, humilde,
sincero e correcto, a Jarcisley, menos vistoso mas mais ambicioso e empreendedor,
embora nem sempre dentro da legalidade. É isso que nos mostram as duas páginas
inicias, as únicas coloridas, onde António Cedraz, com o seu traço agradável,
traça o retrato de um paraíso que o tempo se encarregará de destruir.
Porque, com o crescimento, a chegada à vida adulta, recheada
de problemas e complicações, de desemprego, sonhos adiados e contas para pagar,
os sentimentos são postos à prova. E a ambição acaba por prevalecer sobre o
amor e a paixão. Mesmo que o preço a pagar seja alto. Porque, se são muitos os
sentimentos em jogo, prevalece em São Jorge da Mata Escura a história de vidas difíceis
de se viverem. Como Jorge, primeiro, e Bárbara, (logo) depois, vão comprovar,
numa espiral decadente, orquestrada por Jarcisley, numa narrativa sem heróis nem
vencedores - quase apetece escrever só com vencidos… - só com seres humanos…
Sem avançar mais no enredo, que tem ainda mais algumas variações
e surpresas, para não retirar o prazer da leitura que eu já experimentei, quero
ainda adiantar que a par da história deste trio, Marcello Fontana entremeia páginas
– desenhadas em estilo mais realista e sujo por Naara Nascimento – em que evoca
a lenda do mártir São Jorge combinada com as crenças e religiosidade local,
cuja história – a espaços, em momentos – se irá cruzar, enquanto inspiração (e
protector?) com a de Jorge, dando-lhe um toque irreal e fantástico, combinando
sagrado e profano, identificando cada um dos protagonistas com divindades
locais, de forma bem conseguida.
Como bem conseguida está toda a narrativa gráfica, com os
diálogos bem medidos contrabalançados com sequências mudas mas expressivas, que
ajudam a realçar o traço fino e semi-realista de André Leal, bem apoiado numa
planificação diversificada em que destaca os momentos mais fortes e no uso de manchas
cinzentas que definem volumes e ambientes, e onde se distingue o bom tratamento
dado à figura humana, em especial à bela Bárbara.
A reter
- Se é verdade que esta é mais uma versão do eterno triângulo
amoroso, esta é uma versão forte, original e cativante, bem escrita e
desenhada. Pode-se pedir mais?
- Apoiada pela Fundação Cultural Estado da Bahia e pelo
governo da Bahia, entre outras instituições (Fomento à Cultura, Secretaria da
Cultura, Secretaria da Fazenda) esta edição ilustra algo que há muito defendo:
uma BD ambientada numa cidade real, para cativar apoios institucionais, pode –
e deve – ir muito além da simples evocação da história dessa cidade. Algo que
em Portugal raramente tem sido feito. Por falta de visão dos responsáveis
(geralmente) autárquicos que têm subsidiado tantos álbuns nacionais ou porque a
oferta não vai além dos temas históricos?