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06/06/2012

Furioso













Lorenzo Chiavini
Futuropolis (França, 15 de Maio de 2012)
210 x 290 mm, 136 p., cor, cartonado
20,00 €



Resumo
No tempo das cruzadas, perto do Mediterrâneo, muçulmanos e cristãos procuram os heróis que os hão-de guiar à vitória no confronto que se avizinha.
Os primeiros, vasculham a floresta profunda na busca por Ferragus, antigo guerreiro, hoje eremita em busca de perdão para acontecimentos terríveis do seu passado.
Os segundos, encontrarão inadvertidamente o seu, Berto, um carpinteiro acidentalmente trespassado por uma relíquia sagrada, pouco predisposto para as coisas da fé e da guerra, mais sensível ao bem comer e bem beber e às belas mulheres.

Desenvolvimento
O resumo adivinha-o e realmente este é um relato onde Leonardo Chiavini, natural de Milão, antigo desenhador Disney e actualmente a viver na casa dos autores de Angoulême, lança um olhar profundamente irónico sobre a fé dos contendores – as “feses” deles, diria alguém que conheci – e os artifícios religiosos.
Essa ironia revela-se no texto recheado de segundos sentidos, nas situações repletas de picares de olho e de provocações, na caracterização e motivação das personagens.
Como o cruzado descrente da sua santa missão. Ou o herói infiel, antigo combatente sanguinário, avesso agora à violência e transformado em penitente. Ou a “santa pecadora” – o que por si só é já um soberbo conceito – que para complicar as coisas, vai intrometer-se e escolher Berto para acasalar e lhe dar um filho abençoado… Ou ainda o chefe espiritual dos cristãos (o seu “papa”), um abade senil, puro joguete nas mãos dos seus seguidores (ou serão eles os senhores?) mais próximos.
Aliás, o acidente que “revelará” o novo herói, deve-se à sua fraqueza de mãos, pois deixa cair da varanda sob a qual o povo se apinha, a santa relíquia do lugar, a “verdadeira” lança com que Cristo foi trespassado na cruz (igual a umas tantas espalhadas por outros lugares santificados…?). Acontecimento do qual Chiavini parte para discorrer sobre a facilidade com que se criam santos e santinhos, mártires e heróis de fé, a necessidade que as multidões – pobres e ignorantes, conduzidas por quem delas se quer aproveitar – busca – e encontra – nos acontecimentos mais banais “sinais” e “milagres” em que acreditam (mesmo que à força), pois isso é mais fácil do que tomar decisões ou perpetrar acções, o oportunismo com que os líderes religiosos manobram e distorcem para ajustar a realidade aos seus interesses.
Porque, voltando atrás, o infeliz Berto, o “indicado pela vontade divina”, com tanta sorte – ou será na verdade azar? – não morre com o golpe do artefacto sagrado! “Milagre” gritam de imediato alguns – alguns dos que teriam que tomar esse lugar na batalha…? – temos um “santo”! Santo esse que, revelando de imediato os seus de pés – e veremos depois, algo mais – de barro, reage de forma bem humana com bem colorida expressão, ao golpe recebido. Aliás, as suas reacções bem humanas – bem pouco santificadas – multiplicar-se-ão, para desespero dos acólitos que tentam à força – não foi quase sempre assim na história do catolicismo? – convertê-lo.
Por isso, o “acontecimento único” original, há-de ser recriado para criar (à pressão) um paladino manobrável e mais predisposto ao cumprimento da sua nobre missão.

Não quero adiantar mais sobre esta história – que tem muito mais do que atrás deixei exposto. Uma história que assenta em traições, segredos esconsos, mentiras e equívocos. Uma história que vai desvelando em paralelo o que se passa entre mouros e entre cristãos, num crescendo paulatino que há-de conduzir ao embate inevitável (ou não?). Uma história longa, consistente, bem construída e explanada, coerente que, para lá do divertimento que o seu tom irónico proporciona, faz pensar na forma como tantas vezes fomos/ainda somos manobrados pelo poder religioso, até pela inevitável comparação com o tempo presente, no qual o confronto (religioso) ocidente/oriente se perpetua.
Mas não termino sem destacar igualmente que Chiavini, para lá de um excelente argumentista, se revela também um soberbo desenhador. O seu traço esguio, expressivo e caricatural q.b. para reforçar o tom geral sem o deixar descair para a provocação simples e vazia, revela-se perfeitamente adequado para dotar a narrativa gráfica de um assinalável dinamismo, ao mesmo tempo que o autor revela uma grande facilidade em utilizar as imagens como único veículo narrativo em diversas sequências mudas mas bastante eloquentes e perfeitamente legíveis.

A reter
- O grafismo de Chiavini, que me conquistou enquanto autor completo.
- A forma demolidora como retrata ambas as facções religiosas em oposição, realçando as imensas semelhanças entre os seus discursos, acções e propósitos, mostrando claramente que se as palavras “Alá” e “Deus” fossem trocadas de sítio (de boca) nada de substancial se alteraria.
- O toque de génio, como que (se) decide a batalha final, à revelia de santos e heróis - numa verdadeira demonstração da vontade divina?


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