21/06/2011

Le Photographe – Tomes 1 e 2


Collection Aire Libre
Emmanuel Guibert (argumento e desenho)
Didier Lefèvre (fotografias)
Frédéric Lemercier (montagem e cor)
Dupuis (Bélgica, Outubro de 2003)
240 x 320 mm, 80 p., cor, cartonado
15,95 €

Resumo
No fim de Julho de 1986, Didier Lefèvre parte para a sua primeira grande missão fotográfica: acompanhar uma equipa dos Médecins Sans Frontières ao interior do Afeganistão, em plena guerra entre soviéticos e afegãos.
Guibert e Lemercier transformaram o seu relato, utilizando o desenho do primeiro e as fotos de Lefèvre, numa banda desenhada em três tomos que é a um tempo autobiográfica, documental e um relato de viagem.

Desenvolvimento
Após “La guerre d’Alan – d’après les souvenirs d’Alan Ingram Cope” (editada pela L’Association), Emmanuel Guibert “adoptou” uma outra história alheia, relatada em BD em “Le Photographe”. E tal como fizera com “La guerre d’Alan”, Guibert, mais uma vez, despe a sua pele, desaparece, para dar voz a um outro alguém.
No caso presente a Lefévre, deixando que seja este a fazer as despesas da narrativa que é feita na primeira pessoa. E mais uma vez, Guibert conta a experiência de alguém que se sente deslocado, fora do seu mundo. Alain, afastado do seu país natal, os Estados Unidos, para uma Europa desconhecida, por uma guerra que não pretendia, não sentia como sua. Lefèvre, voluntariamente afastado do seu cosmopolitismo, por uma missão humanitária (necessária, também por causa de uma guerra).
Isto porque “Le Photographe” narra uma missão de uma equipa dos Médicos sem Fronteiras (MSF), ao coração do Afeganistão, em Julho de 1986, em plena guerra entre Soviéticos e Talibãs. Com eles, seguiu Didier Lefèvre, na sua primeira grande missão fotográfica, com o objectivo de eternizar em película este perigoso périplo por um território em guerra.
Mas deixemos o autor esclarecer-nos sobre a génese desta obra: “Quando um repórter fotográfico regressa de uma missão num país em guerra, traz consigo centenas de fotos e outras tantas anedotas. Dessas centenas de fotos, algumas dezenas são reveladas, quatro ou cinco são vendidas à imprensa, e o resto, sob a forma de provas de contacto, ficam esquecidas nas caixas do fotógrafo. Este, se gosta de contar, conta as anedotas aos que lhe são próximos. Depois, com o passar do tempo, outras missões, outras fotos e outras anedotas empurram as primeiras, e a memória, ela também, guarda-as numa caixa. O número de belas histórias no bosque adormecido é infinito.
A banda desenhada é um dos meios de as despertar. Tenho cem razões para gostar de Didier Lefèvre. Uma delas é que ele é um bom fotógrafo. Uma outra é que ele é um bom contador de histórias. As primeiras vezes que o ouvi, apoiado nas suas provas de contacto, a recontar uma das suas reportagens, tive vontade que fizéssemos um livro juntos. A banda desenhada interveio para fazer ouvir a voz de Didier, preencher os espaços entre as fotos e contar o que se passou quando Didier, por uma razão ou por outra, não pode fotografar.”
Talvez por isso, Guibert, com a colaboração de Lemercier na planificação optou por integrar, juntamente com o texto e o desenho que são a base tradicional da BD, a fotografia - um outro tipo de imagem - que substitui (complementa) parte substancial dos desenhos. Isto, sem que o ritmo narrativo e a consistência e coerência da obra, sejam afectadas, pelo contrário, a sua inclusão permite um outro tipo de registo e de controle do tempo de narração e de leitura, sendo um dos melhores exemplos disto a prancha que abre o segundo tomo. Mas se a utilização de fotografia, numa primeira impressão, confere um aspecto estranho, melhor, invulgar, ao livro, dá-lhe também uma maior veracidade, aproximando-o do registo de reportagem, pesem embora os 20 anos de intervalo entre os acontecimentos narrados e a publicação da obra, porque a realidade do país e o quotidiano dos seus habitantes são mostrados (e tantas vezes explicados pelas circunstâncias que os rodeiam e influenciam) e ficamos a conhecer melhor objectivos, motivação e missão dos Médicos Sem Fronteiras.
Mas a par do aspecto reportagem, “Le Photographe” assume também um carácter biográfico (quase apetece escrever auto-biográfico, pela forma como Guibert assume a história como sua), mas deve ser considerado também um (belíssimo) documentário – género raramente explorado aos quadradinhos - porque Guibert, através dos olhos (das fotos) de Lefévre, e dos seus próprios desenhos, desenvolve uma narrativa que conta, aquela viagem desde o seu início, os preparativos, o empacotar das bagagens, a partida, os percalços do caminho, a chegada ao local onde a missão dos MSF vai estabelecer o seu hospital de campanha, a estadia (e o regresso, no terceiro volume, a publicar).
E tem ainda uma componente etnográfica porque Guibert e Lefèvre dão-nos numerosas informações sobre costumes, hábitos, formas de cumprimentar, de negociar, rituais de sedução, hábitos higiénicos, forma de viver e pensar dos afegãos. Tudo descrito de forma simples, em conversas informais entre protagonistas, ou em concisos textos de apoio, narrados quase sempre na primeira pessoa.
E é na conjugação destes aspectos, narrados, por vezes, com uma pormeno-rização quase exaustiva, mas sem ser maçadora, pela diversidade temática que vai trabalhando, introduzindo apontamentos humanos e/ou divertidos ou piscadelas de olhos, como a evocação de “Tintin no Tibete”, durante a travessia de um cume coberto de neve, com algumas das fotos a parecerem decalcadas do álbum de Hergé, que Guibert consegue o aspecto mais forte deste livro: apresentar o lado humano do conflito e da missão dos MSF. Por isso revela (mais uma vez) as realidades brutais que tantas vezes querem(os) esquecer: as crianças-soldados, os mutilados, a pobreza extrema que a guerra acentua, os campos por cultivar porque todos os braços válidos estão a combater, a dureza das crianças a quem as circunstâncias expurgaram da sua inocência e ingenuidade…
E se o primeiro tomo se debruça mais sobre a viagem desde o Paquistão até ao local de instalação do hospital de campanha dos MSF (em condições inimagináveis, num local sem o mínimo de condições de conforto ou higiene), uma viagem dura, fatigante, extenuante, física e mentalmente falando, que reduz homens bem constituídos a corpos com músculos e ossos à vista, que coloca gente equilibrada à beira de um ataque de nervos, que leva a questionar missão e propósitos, mas que leva cada um a conhecer-se melhor, a saber até onde é capaz de ir, a dar o melhor de si mesmo, é no segundo que Guibert mais aprofunda este lado humano, ao debruçar-se sobre a actuação dos MSF no interior do Afeganistão.
Nele, mostra como é possível fazer maravilhas (médicas), valorizando o factor humano, pondo em prática uma medicina de urgência, que mais não é que uma minúscula gota de água num oceano de necessidades só parcamente satisfeitas pelos homens e mulheres que decidiram arriscar as suas vidas para fazer bem aos outros, mas mesmo assim uma gota de água, preciosa e insubstituível, sim,mas que percebemos claramente insuficiente para estancar o muito sangue das muitas e arrepiantes feridas que nos vão sendo apresentadas: uma criança com a face destruída por um obus, um homem que se baleou acidentalmente no próprio olho, um bebé que morre com uma hemorragia interna, uma adolescente para sempre paralítica...
Aqui, são as fotografias que se multiplicam, em sequências a um tempo chocantes e reveladoras das maravilhas que os MSF operam, mostrando de forma crua, mas tão mais real, uma realidade incontornável que o desenho – qualquer tipo de desenho – só poderia suavizar, pelo distanciamento do real que a imagem desenhada sempre implica.
No final do segundo tomo, o fotógrafo está de regresso ao Paquistão, só, após deixar os Médicos Sem Fronteiras, regresso longo e atribulado, que é narrado em Le Photographe – Tome 3.

A reter
- A força do relato, real, realista, sentido, vivido, emocionante. Como poucas vezes uma BD conseguiu ser.
- A forma harmoniosa como texto, desenho e fotos se conjugam. Numa verdadeira Banda desenhada, embora seja atípica na sua forma.
Curiosidades
- Para saber mais sobre a obra e os autores recomendo uma visita ao site Le Photographe.
- Os três tomos originais desta obra podem ser encontrados em versão integral francesa da Dupuis ou inglesa da First Second Books.
- Um texto mais completo e aprofundado sobre estes dois volumes pode ser lido no catálogo do Salão Lisboa 2005

(Versão revista do texto publicado no BDJornal #2, de Maio de 2005)

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