Mais olhos...
Passei
a infância e a adolescência e… a ler (e a re-re-re-reler) muitos
dos álbuns de Astérix de Goscinny e Uderzo. Sou capaz de resumir
pormenorizadamente alguns deles, há sequências que posso recitar de
memória, vinhetas que podia descrever de olhos fechados.
Por
isso, para além da sua inquestionável qualidade intrínseca, eles
têm para mim uma enorme carga nostálgica e um belíssimo peso na
memória que guindam muitos deles aos píncaros. Como já escrevi
aqui em tempos, foram lidos na altura certa - ou, no caso, em várias
alturas certas.
Saltando
o período de Uderzo a solo, quando Ferri e Conrad foram anunciados
como os novos autores da série, tentei aproximar-me do(s) seu(s)
Astérix(s) de cabeça limpa, como que pela primeira vez, mesmo
sabendo que isso era impossível. Mesmo assim, consegui desfrutar da
sua leitura e divertir-me - mais com uns do que com outros, como
é natural - e a sua releitura como antecâmara desta novidade
comprovou as suas qualidades.
Senti-o
menos em “Astérix e o Grifo”.
Vou
explicar porquê, mas reconheço que aqui e ali posso dizer mais do
que querem saber. Avancem por vossa conta e risco…
Se esta última parte nos é desvendada no arranque de Astérix e o Grifo, curiosamente, quando encontramos os três gauleses - Astérix, Obélix e Panoramix, com Ideiafix, claro - eles já estão a chegar ao seu destino. As semanas ou meses que demoraram a percorrer a enorme distância desde a sua Gália natal - e as peripécias daí decorrentes - foram obliteradas, havendo apenas uma ligeira referência a um sonho do druida - aquele que se viu na prancha promocional mostrada no início da campanha de lançamento do álbum.
[Na verdade, algumas das peripécias dessa viagem foram mostradas nas tiras promocionais divulgadas em França antes da publicação do álbum, que podem ser vistas aqui, bem como a prancha referida atrás, para que desfrutem delas.]
À
estranheza desse facto - incomum face ao historial da série, mas
não mais do que isso
- vão-se juntando outros factores: o quase total desaparecimento do
relato de Panoramix e Ideiafix (apesar da intervenção final
decisiva deste), a ausência de poção mágica, até o pouco
protagonismo (real) de Astérix e Obélix. Se a isto se acrescentar
uma linha condutora ténue e pouco estimulante - os romanos que
perseguem o grifo; os gauleses e sármatas que perseguem os romanos…
- percebe-se o porquê da minha desilusão, pois nos álbuns
anteriores de Ferri e Conrad isso não acontecia.
Para além disso - ou por causa disso - falta ritmo ao álbum, sendo difícil compreender - e aceitar - que ele tenha sido apresentado como um ‘western à gaulesa’… Algum excesso de texto, os nomes longos e exóticos dos sármatas e o facto deles ‘terem dificuldade na pronúncia dos ee’ (que assim surgem invertidos nos balões, condicionando um pouco a leitura), são outros dos elementos responsáveis pelo arrastar da história.
História que, tal como o anterior álbum - A Filha de Vercingétorix - tem uma forte componente feminina, embora não em protagonismo mas em número, uma vez que nas paragens que os gauleses desta vez visitam, são os homens que ficam em casa e as mulheres que guerreiam. Uma e outra situação, que poderiam ser base para bons momentos de humor, são desaproveitadas e o grande número de mulheres nas páginas acaba por ter pouca importância no todo. A própria refém inicial, visualmente vistosa e com indiscutível potencial, não passa disso mesmo: de uma mulher em perigo - objecto de paixão platónica de todos os legionários que a vigiam - sem mais.
A principal inovação do álbum, a visita a um território imaginário e não a um lugar conhecido como a Gália, a Germânia ou a Bretanha, não foi devidamente aproveitada. Ferri não explorou devidamente as características que imprimiu aos sármatas e ao local onde residem; os leitores não têm quaisquer referências daquela terra, sentindo-se assim um pouco perdidos.
Em contraponto com estes aspectos, Ferri e Conrad conseguem referências divertidas a temas actuais, como a questão da terra plana, evocam graficamente algumas cenas - daquelas que eu tinha na memória! - de outros álbuns (mantendo uma das mais-valias dos seus álbuns anteriores, a forte ligação aos de Goscinny e Uderzo), que constituem saudáveis auto-citações da série, e esmiúçam com sucesso a discussão entre o geógrafo Desorientadus (caricatura do escritor Michel Houellebecq) e o caçador Suprassumus, em torno das caçadas frustradas em que ambos participaram, pondo em prática uma das formas de humor a que Goscinny recorria com frequência: o running gag.
Como aspecto conseguido final, fica a ausência do grifo nas páginas do álbum, o que é de realçar pois a presença de um animal mitológico deste tipo iria contra aquele que é o espírito da série...
Graficamente, é notório o completo à-vontade de Conrad com as personagens, que surgem já completamente personalizadas, com as influências de Uderzo completamente assimiladas e amalgamadas no seu traço que, assim, nervoso, ágil, dinâmico, se aproxima cada vez mais do que identificamos como sendo da Escola de Marcinelle.
Uma nota final para a capa que, entre a versão inicial (em que Obélix e Astérix trepavam à escultura do grifo para ir buscar Ideiafix) e a definitiva, perdeu em dinamismo e no protagonismo concedido aos dois gauleses, actuantes na primeira, apenas contemplativos nesta. Afinal, mais de acordo com a sua (pouca) relevância no avançar da história...
Astérix
e o Grifo
Jean-Yves
Ferri
(argumento)
Didier
Conrad (desenho)
ASA
Portugal,
21
de Outubro de 2021
229
x 297
mm, 48
p.,
cor, capa dura
10,90
€
(imagens disponibilizadas pela ASA; clicar nesta ligação para ler mais informação sobre o álbum ou nas imagens aqui mostradas para as aproveitar em toda a sua extensão)
Natal a quanto obrigas...
ResponderEliminarboa noite concordo com tudo, no caso do meu livro algo mais estranho é que as cenas previamente publicadas do jogo de xadrez , a chegada da mensagem, a preparação da poção magica e a partida nunca aparecem. A primeira imagem dos nossos heróis é só pagina 7(o meu livro tem 48) já no meio da estepe, algo falta neste livro, tem conhecimento de algum problema editorial?
ResponderEliminarCaro JMC,
EliminarOs livros são todos iguais. Desta vez os autores optaram por uma fórmula narrativa diferente, como o Ferri explica aqui: https://outrasleiturasdopedro.blogspot.com/2021/10/jean-yves-ferri-eu-e-conrad-somos.html
A página que origina a viagem, bem como as tiras sobre a viagem, publicadas em jornais franceses, foram apenas material promocional, que não é incluído no álbum, como aliás já aconteceu em álbuns anteriores de Ferri e Conrad. Mas pode lê-las aqui: https://outrasleiturasdopedro.blogspot.com/2021/10/lancamento-asterix-e-o-grifo_01689833349.html
Boas leituras!
Sendo leitor de Astérix há mais de 50 anos, tendo todos os seus álbuns, é sempre com elevada expectativa que aguardo um novo livro. E este encheu-me as medidas por completo.
ResponderEliminarNa minha opinião, está muito bem desenhado e com uma história rica, divertida, acutilante e que prende de início ao fim. Muito bom!
Também sou seguidor desde sempre e Conrad já me conquistou.
Eliminar"Teletransportando" os nossos amigos para a Barbaricum...a história parece imcompleta...
As piadas estão presente (ainda muito longe de Goscinny), só não entendi aquele quadrinho "perdido" com os piratas...e o dinossauro: um triceratops? c'um raios! que tivessem escolhido um pterossauro que no menos, é parecido com um Grifo! ;-) :-D
Pergunta não relacionada.
ResponderEliminarSempre vai aver em portugal uma serie de ideiafix em livros/desenhos-animados ou isso foi so pro mercado frances??
Ainda não há qualquer informação nesse sentido.
EliminarBoas leituras!
"Confere"!?
ResponderEliminarEstes tradutores estão loucos!
Boa noite Pedro Cleto
ResponderEliminarApesar de ter lido o a https://outrasleiturasdopedro.blogspot.com/2021/10/lancamento-asterix-e-o-grifo_01689833349.html, continuo a achar que para os leitores não assíduos do blogs e mesmo para a minha pessoa, as pagina promocionais deviam ter sido incluídas no álbum pois dão um seguimento á historia e explicam como apareceram na estepe e o barril da poção magica a ligação mental do druida, as peripécias da viagem com o druida a entrar em zen. Quem no futuro comprar o álbum vai notar sempre um vazio na logica da ligação dos bravos gauleses ao povo do grifo. Durante o livro todo estava á espera que o animal que eles encontravam era um Archaeopteryx vivo pois é parecido com o grifo, quando aparece um triceratops foi uma reviravolta.
Quando vi o Obelix em transe esperava um maior desenvolvimento.
Não deixa de ser um álbum interessante, bem desenhado e com as pequenas historias interiores na história central.
Agradecido pela resposta
É uma opção editorial na origem e não tem volta a dar. Sei que esse material foi incluído na edição de luxo que saiu em França, na categoria de extras...
EliminarBoas leituras!