Quem espera...
‘...desespera’,
diz a sabedoria popular - seja lá o
que for esse mito
de
antanho, porque quando olhamos em volta hoje em dia, de sabedoria
vemos nada ou muito pouco…
Sabedoria
popular que,
para ter sempre razão, tem o
dito
precisamente oposto: ‘...sempre alcança’.
Mas,
no entanto, é possível combinar ambos os
quesitos,
como o prova o
presente
regresso
de Blacksad:
se os leitores desesperaram ao longo de 8 longos anos, agora
finalmente alcançaram o que desejavam: um novo álbum. E que álbum!
[Mais
um dos ‘álbuns do ano’ em que 2021 se está a revelar tão
fértil, ao ponto de quase
esvaziar
este
chavão…]
E a verdade é que Então, tudo cai - belíssimo título depressivo e com sabor a inquietude e derrotismo - comprova, mais uma vez, tudo que tornou esta série digna de todos os encómios.
Desde logo, o que primeiro salta à vista: a arte soberba de Juanjo Garnido. Soberba no dinamismo para um traço tão apurado; soberba nas cores com que o desenhador a pinta; soberba no domínio pleno da anatomia dos intervenientes; soberba no retrato realista e fictício da urbe que reconhecemos sem ser citada; soberba na representação da natureza e dos seus caprichos climatéricos; soberba na caracterização de ambientes e na transmissão de emoções e sentimentos; soberba na composição de vinhetas com dezenas de figurantes e igualmente competente nas cenas a solo. Soberba, acima de tudo, na perfeita antropomorfização de todas as personagens, transformando mamíferos, aves, répteis… à imagem dos seres humanos, mantendo intactas as suas características animais mais salientes e convencendo-nos que todos eles nasceram assim: sobre duas pernas, com dois braços, falando e agindo à nossa imagem e semelhança.
Protagonistas, personagens, simples figurantes para quem, não inocentemente, Juan Díaz Canales escolheu o género (animal) em função das qualidades e, principalmente, dos defeitos geralmente associados ao ser humano, facilitando a sua identificação pelos leitores, sim, sem dúvida, mas usando também este belo artifício para melhor os caracterizar.A par disto, a escrita de Canales tem o melhor do registo policial negro, que impera em Blacksad, com um tom global depressivo e derrotista, que assenta e suporta às mil maravilhas relatos duros sobre os podres sociais, os compadrios entre a máfia e a política, a opressão dos mais pobres e desfavorecidos em nome dos interesses instalados. No caso presente, se o foco parece estar na (bela lama) Íris Allen e na sua cruzada em prol do teatro e da sua difusão junto de todas as classes através de espectáculos em locais públicos, a verdade é que tudo se joga mais acima, mais na sombra, nos gabinetes dos políticos, nos escritórios dos engenheiros e projectistas, quando o famoso ‘mestre construtor’ Solomon pretende deixar a sua última marca indelével na cidade, através da edificação de uma imponente ponte com o seu nome que irá colocar em causa os empregos e o futuro de centenas de trabalhadores ‘subterrâneos’ do metro.
Desta forma, Canales combina o tom policial - porque a contagem de cadáveres vai subindo ao longo das páginas - com o relato social, a intriga política e a mensagem cultural, num relato que se vai adensando num crescendo, que ilude várias vezes as expectativas dos leitores, surpreendendo-os, e continua a aprofundar a caracterização dos seus intérpretes recorrentes, John Blacksad, o detective felino que dá nome à série, e Weekly o eterno aspirante a grande jornalista e conquistador (falhado) inveterado. À sua volta, pululam personagens fortes e marcantes, com destaque para Solomon e Íris, independentemente do que na realidade são, e outras que, com menor expressão mas não menor preponderância se vão atravessando no caminho dos protagonistas. Que, mais uma vez, parecem sempre sê-lo menos, do que simples joguetes nas mãos do acaso ou do destino, mesmo quando as suas decisões e acções parecem importar e fazer a diferença.
E se tudo isto ainda fosse pouco, posso ainda referir mais dois pontos fundamentais. Por um lado, a escrita de Canales, assertiva e sempre no tom justo, eficiente e perfeitamente legível, mas também culta nas múltiplas referências que espalha e espelha, sejam os textos das dissertações íntimas que permitem entrar na cabeça - e no coração e na… - dos protagonistas, sejam os dos diálogos, vivos, credíveis, realistas; uns e outros exalando um perfume e um humor que merecem uma leitura atenta e mais cuidada do que aquela que ‘simplesmente’ se faz para desfrutar da história.
Por outro lado, se desenho e escrita por si só justificam tantos elogios, o que dizer da perfeita simbiose entre ambos para nos oferecerem uma verdadeira narrativa em banda desenhada, cadenciada, com o(s) ritmo(s) adequado(s) aos diferentes momentos, sem quebras, sequencial, como não muitas obras se podem gabar.
Completamente seduzido pela leitura, com este texto ‘disparado’ de uma só vez à velocidade que os dedos conseguiram imprimir ao teclado, surge então o ‘mas’, o ‘senão’, aquilo que eu não queria escrever...
Porque, infelizmente, este regresso pleno, inebriante, arrebatador, uma daquelas leituras que satisfaz a mente e o coração, foi - é! - de ‘curto alcance’ - sim, é piscar de olho ao que escrevi no início deste texto… - porque Então, tudo cai é apenas uma primeira parte de um díptico e até que possamos ter nas mãos a sua conclusão, vamos ter pelo menos mais alguns meses de ‘desespero’.
Blacksad
#6: Então, tudo cai, primeira parte
Juan
Díaz Canales
(argumento)
Juanjo
Guarnido (desenho
e
cor)
Ala
dos Livros
Portugal,
Outubro
de
2021
235
x 310
mm,
60
p.,
cor, capa dura
16,95
€
(imagens disponibilizadas pela Ala dos Livros; clicar nesta ligação para desfrutar de mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as apreciar em toda a sua extensão)
Comprei-o hoje na FNAC e depois de ler este belíssimo texto e sendo apreciador da série vou imediatamente devorá-lo
ResponderEliminarSe uma editora decide apostar em um determinado título então deveria re-editar esse mesmo título, isto acontece com os livros de texto.
ResponderEliminarEstão planeados 7 volumes do Blacksad mas a ASA tem os 4 primeiros esgotados.
Mais sorte teria em comprar as edições da Dark Horse.
Nem todos têm posses para comprar os livros à medida que aparecem nas livrarias.
Sem contar que os livros se estragam, perdem, são coisas.
Cada vez aposto mais numa solução digital permanente.
Mais...
ResponderEliminarA editora Dark Horse vende uma edição com os 3 primeiros volumes por 30€.
A editora Norma vende uma edição com os 5 primeiros volumes por 50€.
Já sei, é o panorama editorial tuga que é complicado...
Ainda se as histórias fossem isoladas mas não é o caso, existe um fio condutor e referência partilhadas entre os volumes, a personagem principal evolui, entendemos melhor as motivações se tivermos lido o que aconteceu antes.
ResponderEliminarBD europeia em formato digital ??? Vá de retro satanás!!! Quando compro um livro de BD é uma imensidade de sensações que eu adoro sentir: o apalpar o livro, sentir a textura da capa e das folhas, o cheiro, visualizar a qualidade da cor ou o jogo de sombras quando a preto e branco. E depois sentar-me a ler, virando folha a folha, descobrindo e desenrolando todo o argumento. Para mim nada irá substituir isso, nem mesmo o posterior olhar para aquele pequeno tesouro perfilado na estante à espera que outras mãos o escolham e descubram os seus segredos. Digital? Então qualquer dia estamos todos no sofá a olhar para a bonecada da Netflix. Livrai-me Deus desse mal. Ámen
ResponderEliminarEstá bem.
EliminarFalo no âmbito de que se não existir em papel acabamos por não chegar à obra, ao contrário do digital.
Hoje em dia muitos artistas já nem usam papel, trabalham directamente sobre o computador.
É mais ecológico e não têm de lidar com o desperdício e imperfeições do papel.
Compreendo algum fetchismo à volta do papel mas essas coisas de apalpar, cheirar e lamber deixo para outros aspectos da minha vida.
Mas deixe-me perguntar, seria preciso tocar e cheirar a pintura da Mona Lisa para a poder apreciar?
Para quê ir ao Louvre se posso ver a Mona na tela lisa do tablet ?
ResponderEliminarPara quê o real se posso usufruir do virtual ?
Se até o apalpar, cheirar e lamber pode ser feito no insuflável ?
O papel é representação do real? vou ali e já venho.
EliminarNão passa de um suporte.
Aquilo de que me fala não passa de hábitos e vícios adquiridos ao longo da vida.
Se for ao Louvre terá de ver a Mona Lisa através de um vidro.
Num mundo ideal, todos os volumes de todas as séries estariam sempre disponíveis, em edições actualizadas segundo as novas tecnologias de impressão.
ResponderEliminarNo mundo real da edição portuguesa, ter as novidades em português é bom, mesmo que os anteriores estejam esgotados. Garante aos leitores que compraram todos até agora, poderem continuar a seguir a série.
A Ala dos Livros tem intenção de editar os anteriores? Parece que sim. Deveria ter editado os 5 volumes inicias antes deste? É uma utopia.
Papel ou digital? Papel, sempre! Ou sempre que possível, pois mais uma vez vivemos no mundo real e não no digital...
Acima de tudo, boas leituras!
Então temos de nos aguentar com o que existe e ficar agradecidos, é isso? porque o panorama editorial português é coiso...
ResponderEliminarMas como se pode confundir a banda desenhada em papel com o mundo real? não passa de uma representação, o que se cheira e toca é e sempre será o papel, não transporta os cheiros dos ambientes e as texturas que descreve para o mundo real.
Por essa ordem de ideias ainda estaríamos dependentes das salas de cinema para ver filmes e perderíamos uma riqueza global de cultura.
Eu acredito que o coleccionismo e o completismo estão relacionados com o nosso passado como caçadores-recolectores e que o mesmo ainda está muito entranhado nos nossos genes mas é preciso entender que o papel é um suporte perecível, a arte devia sobreviver a este suporte.
Temos de ficar agradecidos até certo ponto; até ao ponto de equilíbrio entre o possível e o desejável... Temos de perceber o que o mercado nacional é, a dimensão que tem, e tentar que ele cresça para se aproximar do que gostaríamos que fosse...
EliminarAceito a leitura digital, quando não tenho hipótese (ou dinheiro, ou espaço) de ler em papel, mas prefiro o papel. Assim como prefiro ver um filme no cinema do que em casa, mas vejo muitos em casa...
Possivelmente ambos - o digital e o cinema em casa - serão o futuro, o único futuro. Até lá, quero continuar a desfrutar tanto quanto possível da leitura em papel e dos filmes no cinema... Se tem a ver com genes, (maus) hábitos ou outra coisa qualquer não sei, sei o que me dá mais prazer...
Boas leituras!
"Alguém" não tomou as gotas, ò Rob Zombie... :D :D :D
EliminarIsso 'tá agreste :D :D :D
Não temos de ficar satisfeitos. Mas podemos antes de tirar conclusões e tecer comentários procurar estar informados ou até mesmo perguntar.
ResponderEliminarOs primeiros volumes serão novamente editados, por ordem, em breve, e com algo que achamos que esta série merece.
Será apresentada a coleção Blacksad da Ala dos Livros muito em breve.
Perdão a todos, cometi um erro.
ResponderEliminarDigitais à parte percebi que o Blacksad #6 era uma edição da ASA, aquilo que referi sempre se prendeu à postura editorial da ASA, num acumular de más experiências sobre outros títulos.
Obrigado.
Só me apetece dizer que Juanjo Garnido é um GÉNIO
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