27/10/2023

Alcimar Frazão: “Lovistori é uma história sobre querer viver”




Autor do catálogo da Polvo, Alcimar Frazão estará este fim-de-semana no Amadora BD 2023 para apresentação e autógrafos da sua mais recente edição portuguesa, Lovistori.
Esta narrativa dura e crua, sobre aceitação, amor e preconceitos, serviu de pretexto para uma entrevista via correio eletrónico, intermediada por Rui Brito, editor da Polvo, a quem fica o justo agradecimento, entrevista essa que Alcimar Frazão entendeu estender ao argumentista da obra, Lobo.


As Leituras do Pedro - Como nasceu esta parceria?

Lobo - Pois é, na última entrevista que demos, descobri que existe grande chance da minha versão da história ser fantasiosa. A gente fica com a versão do Alcimar.

Alcimar - Essa história é engraçada. No início de 2014 Lobo me procurou com um roteiro (a primeira versão de Lovistori) para saber minha opinião. Eu gostei de cara. Gosto, em especial, do elemento dessa vida clandestina, de certa impossibilidade e da imposição de uma vida de aparência que o texto tem. Almoçamos juntos num bar na Vila Mariana, em São Paulo e depois de ler o roteiro, Lobo me perguntou se eu achava que a Laerte poderia desenhar a história. Aquilo foi um pouco frustrante porque eu tinha ficado interessado no texto e achava que ele queria que eu desenhasse. Hahahaha. Eu disse que não sabia mas que ele deveria tentar falar com ela, mas mencionei que se ela não quisesse, que eu estava interessado. Talvez ele não esperasse a resposta franca e me ofereceu o texto ali mesmo. Daí começamos a pensar em como materializar a história.


As Leituras do Pedro - Que parte da história é verdadeira?

Lobo - Parte desta história me foi contada por uma travesti na noite de Copacabana. Ela entrou num carro enquanto passava por ela. Deu a volta no quarteirão e saltou do mesmo carro uma quadra adiante, também na minha frente. Fiquei intrigado e puxei assunto. Durante os não mais de quinze minutos em que conversamos ela me contou toda a sua vida e parte fundamental de Lovistori. A outra parte vem de uma junção de observações e anotações que fazia na praia. E por fim, tudo colado com ficção pelo Alcimar e por mim.


As Leituras do Pedro - Lovistori é um relato muito duro e violento. Reflecte a realidade brasileira?

Lobo - O Brasil é o país que mais mata a sua população trans. Infelizmente é um fato.

Alcimar - É como o Lobo mencionou. Os números da violência de género no Brasil são alarmantes e foram muito agravados durante o último governo... Outro dado importante é que todo mundo que tem ascendência negra e/ou mora nas periferias das grandes cidades brasileiras, sabe o quanto a polícia é corrupta, racista e violenta. Os números de negros mortos pela polícia diariamente são absurdos. Pensar esse cenário, de uma relação entre um policial negro casado com uma travesti, inseridos nesse contexto de uma sociedade preconceituosa e uma corporação racista e machista, nos instigou a pensar as subtilezas de uma vida assim. A história fala sobre isso, de alguma forma. Sobre como a gente dribla as violências diárias.


As Leituras do Pedro - Foi fácil colocar a história no papel? Fazer o traço transmitir as emoções que estão na sua base?

Alcimar - Nem um pouco. Hahahahaha. A primeira dificuldade foi lidar com o fato de que normalmente eu não trabalho com textos de outras pessoas. Quando faço isso, em geral, altero muito o texto. Veja, contar histórias em quadrinhos é, na minha opinião, um exercício muito cuidadoso entre o que você mostra e o que você faz o público intuir. Essa dança tem a ver com a relação entre texto e imagem e, mais importante, no modo como as imagens constroem os significados apontados no texto. Desenhar é um exercício muito particular. Eu sempre preciso elaborar qual a abordagem que terei, como vou enquadrar as cenas e mais importante, que cenas mostrar. O que mostrar é uma decisão central que não necessariamente está no roteiro.

Uma segunda dificuldade foi elaborar como entrar no universo do história. Eu não sou do Rio de Janeiro e nem conheço o Rio de Janeiro a fundo, como o Lobo, que morou lá. Minha companheira morou no Rio no período em que estava iniciando as pesquisas para a história. Mas existe uma grande distância entre colher referências e definir o partido visual. Lembro de ter feito muitos testes e de ficar insatisfeito em quase todos. Como a história é muito pesada, precisava fazer isso aparecer de forma forte mas não explícita. E Queria mostrar que a cidade era uma personagem importante naquilo tudo... No fim, aconteceu o que quase sempre acontece quando estou trabalhando. Uma música do Caetano Veloso me deu a pista. O Rio de Janeiro é uma cidade que, para mim, que não sou de lá, sempre se apresentou como imagem, como aparência até, antes de qualquer coisa. Essa condição meio que definiu como eu ia abordar o roteiro, que conta essa história de vida de aparência também, essa vida clandestina. Depois disso, a coisa toda ficou mais fácil. A história foi se desenhando sozinha. Hahahahaha.


As Leituras do Pedro - Podemos dizer que, antes de mais, é uma história sobre aceitação versus preconceito? Qual foi o objectivo ao contá-la?

Lobo - Um dos meus primeiros objetivos, tanto em Copacabana, meu primeiro livro, e neste, é desmistificar o trabalho sexual. Mostrar que as prostitutas são trabalhadoras que, devido ao preconceito, exercem a sua função de forma precária e expostas à violência das pessoas e instituições.

Alcimar - Acho que é uma história sobre querer viver. Sobre pessoas que querem seguir com suas vidas e tem todo o mundo trabalhando para que isso não aconteça em plenitude. Nossa intenção era de denunciar o absurdo dessas violências, mas também de anunciar que essa vida plena está aí, está acontecendo, e que todas as pessoas tem direito a viver das formas que elas são. Como diz o Milton Nascimento, “Qualquer maneira de amor vale a pena”.


As Leituras do Pedro - Como foi recebida pelos leitores?
Lobo -
Tivemos óptima recepção no Brasil e no Perú, onde foi lançada. Aqui faturamos um HQMIX pela Arte Final do álbum e um Prémio Minuano de Literatura. Lovistori é leitura importante para sensibilizar os homens brancos hétero cis.

Alcimar - É muito comum recebermos mensagens de pessoas que ficaram muito sensibilizadas pela história. Isso nos toca profundamente. Quando de seu lançamento, o álbum figurou entre os 5 primeiros em todas as principais listas de melhores do ano no Brasil.


As Leituras do Pedro - Que expectativas tem quanto à sua publicação em Portugal?

Alcimar - O Diabo e Eu e Cadafalso [outros livros de Alcimar Frazão lançados pela Polvo}foram muito bem recebidos em Portugal, assim como o Copacabana. O Cadafalso, inclusive, entrou para o Plano Nacional de Leitura de 2019-2020, o que foi um reconhecimento importante dos méritos do livro, que é difícil de ler, é um livro cabeçudo, truncado. Espero que Lovistori siga nessa mesma toada de sucesso. Mas além da questão de mais pessoas lendo, tenho muita curiosidade de saber como o livro vai ecoar no público português. Digo isso por que não é um livro fácil por sua violência gráfica, mas também por conta dessa narrativa da vida pequena, quotidiana, que me interessa muito e que é talvez o traço mais brasileiro dos meus trabalhos. No Peru, que tem uma realidade parecida com a do Brasil mas diversa em pontos importantes, o livro tem sido muito bem aceito. Filosoficamente fico curioso para saber das reações portuguesas ao livro por conta dessa ideia de Brasil “tipo exportação”que está contida nessa fetichização da ficção que é o Rio de Janeiro mas, também, da relação com a figura policial e essa violência com o diverso na história. As principais características da nossa polícia foram herdadas do violento passado colonial brasileiro.


(imagens disponibilizadas pela Polvo; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)


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