22/05/2025

Madeleine Pereira: "Não sabia nada de Portugal"

 


Chama-se Madeleine Pereira, é luso-descendente e uma das convidadas do Maia BD, que decorre no Fórum da Maia a partir de amanhã e até domingo.
Passou por Portugal há algumas semanas para participar no festival "A Arte de ser Migrante" e para promover o seu livro Borboleta (ASA).
Já a seguir encontram a versão integral da entrevista que serviu de base ao texto publicado no Jornal de Notícias a 27 de Abril último e também disponível online.


As Leituras do Pedro - Como é que nasceu este projeto?

Madeleine Pereira - Foi em 2019, candidatei-me para uma residência em Epinal, no Nordeste da França, e tinha que fazer um projeto de banda desenhada. Fiz três propostas e essa sobre Portugal foi aceite.

Mas, no início, também queria saber mais sobre a minha família, porque o meu pai foi para França em 1973, tinha 13 anos. Então, era um bom projeto para aprofundar essas questões e para fazer uma história sobre Portugal, porque na França, por exemplo, as pessoas não conhecem a história da ditadura em Portugal. Eu também não sabia nada. Sabia que tinha havido uma ditadura, mas não sabia qual e o que aconteceu.

Por isso, fiz o projeto para sensibilizar também os franceses sobre essas questões e, de um modo egoísta, para saber mais sobre a minha família.


As Leituras do Pedro - A escolha de uma banda desenhada foi sua?

Madeleine Pereira - Sim, sim, eu faço banda desenhada desde criança. Contar histórias do que me acontecia em banda desenhada, para mim era mais fácil.


As Leituras do Pedro - Foi fácil encontrar a sua imagem para se mostrar no livro? Desenhares-se a si própria?

Madeleine Pereira - Sim, porque há alguns anos que gosto de fazer banda desenhada sobre anedotas que me acontecem. Sou muito fácil a desenhar, porque eu tenho um grande nariz, sobrancelhas com pequeno espaço entre elas e o cabelo. Sou fácil de desenhar.

A minha personagem sou realmente eu. Tenho amigos que, quando leram o livro disseram: "Ah, eu ouço a tua voz na banda desenhada". Para mim é normal, também acontece quando leio as bandas desenhadas dos meus amigos.


As Leituras do Pedro - Entrevistou várias pessoas para contar a história delas. Quanto do que está no livro é verdadeiro e quanto é que foi ficcionado para a narrativa funcionar bem?

Madeleine Pereira - No início, eu queria fazer exatamente como as pessoas me contaram as suas histórias. Mas, por exemplo, o Nuno é a terceira personagem da história. No fim, quando ele passa a fronteira com a mãe e as irmãs, ele bebe água das vacas.


As Leituras do Pedro - Sim, sim. A água que as vacas que pisavam, sim.

Madeleine Pereira - Isso, por exemplo é é outras histórias que outras pessoas me contaram.

Também há uma história sobre uma mulher que foi presa, é ficção. Acrescentei porque queria que cada personagem contasse um ponto da ditadura. Com essa personagem, queria que falasse mais da PIDE e das torturas. Fui ao Museu do Aljube para recolher informações e depois fiz a mistura. Mas, enfim, as pessoas que estão na banda desenhada são quase o que me contaram. Não misturei tanto assim, só detalhes. A minha tia, por exemplo, é 100% verdadeira.


As Leituras do Pedro - Ao fazer as entrevistas, ao procurar informação no Museu do Aljube, o que é que a impressionou mais? Era um Portugal que desconhecia completamente, ou quase completamente. O que é que a marcou mais?

Madeleine Pereira - Muitas coisas. Lembro-me que quando eu estava a trabalhar sobre a história da minha tia, o livro era mais orientado para abordar as mulheres durante a ditadura. E quando fui para o Museu do Aljube, havia uma exposição temporária sobre as mulheres durante a resistência. Falava das Três Marias. E eu aprendi muito. O pior, acho que é quando as pessoas contam a história delas, porque é muito emocionante, mas também há muito sofrimento. Era complicado. Aprendi que as mulheres estavam dependentes do pai, e depois dos irmãos, e depois do marido. Então, não tinham direitos nenhuns.

Também aprendi muito sobre as guerras coloniais. Fiquei muitas horas no Arquivo RTP, para ter imagens e informações. E a minha irmã também me deu aulas, porque ela é professora de português. Sabe muitas coisas sobre a história.

Gostei de muitas coisas, mas o que eu prefiro, acho, é a Revolução, porque é música com pacifismo. Não se vê em mais lado nenhum. É muito bonito.


As Leituras do Pedro - Ouvi uma entrevista sua a dizer que o livro se chama Borboleta por causa daquele episódio do Ronaldo no Euro 2016.

Madeleine Pereira - Sim, no início fiz quatro ou cinco páginas sobre o Euro 2016. Fui assistir à final com as minhas irmãs e o meu pai. O meu pai desde sempre gostou muito de futebol. Estávamos na zona portuguesa do Stade de France. Éramos uma parte pequena, muito pequena. O resto estava cheio de franceses. Lembro-me que nunca nos sentámos, toda a gente estava sempre de pé, mas os franceses estavam todos sentados. Acho que estavam nervosos. E então o Cristiano Ronaldo foi lesionado. E as borboletas pousaram na sua cara. E eu estava a chorar, a pensar, Portugal vai perder. Toda a gente estava a chorar. E um homem bateu-me no ombro e disse: "Não, vai ver. As borboletas trazem sorte". E depois Portugal ganhou.

No início, na banda desenhada, tinha esse episódio, mas acabei por tirar porque não gosto de desenhar futebol, desenhar todos os espectadores ia dar muito trabalho!

Mas o título ficou.


As Leituras do Pedro - Ficou. Eu achei curioso. Quando li o livro e vi o título Borboleta, pensei que tivesse a ver com o facto de a borboleta nascer de uma crisálida, pensei que tivesse de alguma forma a ver consigo e com a forma como este livro a ajudou a crescer quanto ao conhecimento de Portugal, da sua família, das suas raízes. Acha esta interpretação possível também?

Madeleine Pereira - Sim, todas as pessoas que são um pouco poetas pensam nisso. Eu também. Quando tirei aquele episódio, pensei: agora já não tem ligação com o título. Mas depois, lembrei-me, uma borboleta transforma-se. Então é como alguém que vai para outro país, tem que se transformar também. É por isso que no livro há duas borboletas. Acho que eu desenhei, tipo, ah, tenho que fazer uma ligação... [e fica o desafio aos leitores para as descobrirem.]


As Leituras do Pedro - A vitória de Portugal no Euro foi importante para a comunidade portuguesa?

Madeleine Pereira - Acho que sim, mas também me lembro que houve muito racismo depois, porque foi o Éder que marcou. E houve muitos franceses que disseram que Portugal não mereceu aquela essa vitória... Havia uma grande rivalidade entre franceses e portugueses.

Quando fomos para o estádio, nós pintamos a cara metade com a bandeira francesa e metade com a portuguesa, porque somos ambos... Acho que havia muita gente que estava assim também. Não conseguimos escolher.


As Leituras do Pedro - Enquanto cresceu, sentiu muito o facto de ser portuguesa em França? Foi algo de racismo, de discriminação?

Madeleine Pereira - Acho que quando eu era pequena, havia mais do que agora.

Na banda desenhada conto que na escola, eu ficava com crianças portuguesas, nas aulas de português. E eu sentia uma diferença, porque eles falavam mais português do que eu e eu não entendia porquê.


As Leituras do Pedro - Uma das coisas que mais me impressionou no livro, é a forma como o seu pai sempre recusou falar, sempre fugiu ao tema, sempre sentiu alguma vergonha. Isso mudou com o livro?

Madeleine Pereira - Não mudou muito, mas, por exemplo, no fim do livro, eu desenhei-o a mostrar-me fotografias e a explicar quem era cada pessoa. Isso aconteceu, foi uma pequena abertura. E quando eu estava a fazer o livro, ele trouxe-me até à casa onde tinha vivido antes, para a mostrar e há 30 anos que ele não voltava, desde que saiu daquela casa, nunca tinha voltado ali. Sentiu algo muito forte; graças a mim, ele pôde viver aquilo, porque se eu não fizesse esta banda desenhada, penso que ele nunca lá voltaria...

Às vezes, também falamos sobre pontos do livro, algumas coisas ele dizia que não se passaram assim, mas só isso, não muito.


As Leituras do Pedro - Mas foi mostrando o livro ao seu pai, conforme o ia fazendo? Ou só no final?


Madeleine Pereira - Sim, no início fiz o storyboard, mostrei-lhe os testemunhos... E no fim, quando acabei o livro, mandei-hhe o pdf, para que estivesse ao corrente do livro antes que ele saísse. Depois, ele mandou o livro para todos os amigos dele. E fez uma boa promoção também na França, com toda a comunidade portuguesa. Acho que ficou um bocadinho orgulhoso, porque fala dele a toda a gente.


As Leituras do Pedro - Eu vi uma reportagem passada na Embaixada Portuguesa, numa apresentação do Borboleta, no YouTube. O modo como o seu pai fala, parece uma pessoa muito orgulhosa e muito contente com o livro, mas a imagem que a Madeleine passa dele é de alguém que...

Madeleine Pereira - Que está bloqueado.


As Leituras do Pedro - Sim, bloqueado em relação àquele tema, e nunca lhe contou nada por isso.

Madeleine Pereira - Para mim, se ele está bloqueado é por ser algo muito emocionante para ele. Eu não quero contrariar isso, respeito que haja pessoas que não queiram falar, porque é algo muito intenso e muito pessoal.


As Leituras do Pedro - Qual foi a reação das pessoas à publicação do livro em França?

Madeleine Pereira - Houve muita gente que me disse: "Ah, havia uma ditadura em Portugal, não sabia". E eu pensava, mas como é possível? Enfim, é possível, porque na história, na escola, nós não falávamos de Portugal.

Havia pessoas de 50, 60 anos que não sabiam.

Mas acho que o livro foi bem recebido. Eu queria sensibilizar um pouquinho e acho que funciona. E outros dizem tipo: "Obrigado, porque agora eu conheço um pouquinho mais sobre a história de Portugal e sobre os portugueses que vieram para França". Porque toda a gente conhece pelo menos um português em França, há muitos.


As Leituras do Pedro - Por que é que manteve o título português na edição francesa?


Madeleine Pereira - Porque para mim era importante que quando o leitor passasse em frente do livro, percebesse que era português. Era para ganhar o leitor português. Se desse o título Papillon, acho que não funcionava.


As Leituras do Pedro - Qual foi a maior dificuldade que teve ao fazer o livro?

Em termos gráficos já tinha uma certa bagagem, uma certa experiência e portanto seguiu o seu traço normal...

Madeleine Pereira - Acho que foi representar uma casa por dentro, o interior da casa, no campo, no Norte, em 1978, por exemplo. Porque as pessoas só tiram fotografias no exterior, vê-se a casa, por fora, e as pessoas. Mas ninguém tira fotografias na sala, na casa de banho, etc. Então, depois, peguei no meu telemóvel e tirei fotografias dentro da minha casa para ter uma recordação.

Mas acho que tudo o que era visual, foi difícil, porque eu não vivi nesse período, era complicado imaginar também.

Por isso li livros, mas sobretudo, vi vídeos do Arquivo RTP. É interessante porque enquanto estava a fazer o livro, eu preferia ver imagens do que ler. Dessa forma, podia desenhar e ver também as imagens.


As Leituras do Pedro - Vai haver um segundo Borboleta?

Madeleine Pereira - Ah, não. Agora vou fazer outra coisa. Sobre outros temas, outras temáticas.


As Leituras do Pedro - Outras temáticas que não têm nada a ver com Portugal?

Madeleine Pereira - Não, nada a ver com Portugal. Acho que o livro está fechado.


(um agradecimento especial a Luís Saraiva, editor da ASA, pela possibilidade de efectuar esta entrevista; imagens disponibilizadas pela ASA; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)

Sem comentários:

Enviar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...