Entre a vida e a vocação messiânica
Terra. Futuro indefinido. Com o planeta ameaçado por um enorme asteróide que se dirige para ele, a solução possível é enviar ao seu encontro uma nave não tripulada carregada de explosivos para o destruir.
Em paralelo, como plano B, começa a ser construída uma colónia lunar que possa albergar o maior número possível de habitantes - de habitantes muito ricos, como rapidamente se percebe - e assim assegurar o futuro da humanidade. Para a colocar em prática é designado Alexander Yorba, um arquitecto de meia-idade, conhecido por ter sucesso onde todos falharam e por criar projectos que ultrapassam as expectativas.
Sob esta capa de ficção-científica, O Fogo, do galego David Rubín, com edição portuguesa recente da Ala dos Livros, esconde uma reflexão dura e amarga sobre a forma como tantas vezes pensamos de nós mais do que aquilo que somos e como desperdiçamos em vivências ocas o melhor dos nossos dias.
O momento de viragem na vida de Yorba surge quando lhe é diagnosticado um cancro terminal e poucos meses de vida; mais exactamente, os necessários para concluir o seu projecto. Afastado da mulher e da filha que ama mas que sempre colocou atrás da sua carreira, dos seus sonhos, da sua vocação messiânica, o arquitecto decide desta vez deixar tudo para aproveitar os dias que lhe restam. Essa opção, a primeira que faz pensando, pelo menos de alguma forma, nos outros e não em si, vai no entanto desencadear uma série de acontecimentos que o irão arruinar pessoal e profissionalmente, numa espiral decadente que Rubín traça com assumida crueza. A odisseia que Yorba enceta por diversos lugares, revendo pessoas que em tempos amou ou de quem foi próximo, assume também um carácter profundamente introspectivo, num mergulho visceral em si próprio que chega a raiar a loucura, arrastando o leitor
Ao álbum, que aqui e ali apresenta algumas referências, maioritariamente críticas ou mordazes a momentos da nossa atualidade, poderia apor-se o dito de que "Quanto mais se sobe, maior é a queda", mas isso seria apenas uma leitura simplista de uma obra que questiona opções de vida e é um duro libelo acusatório ao egoísmo que norteia a vida humana.
Rubín, com a espectacularidade que lhe é reconhecida - eque a Ala dos Livros já nos tinha mostrado em Beowulf, traça páginas fantásticas na composição e na cor, muitas vezes de vinheta única para as quais o formato generoso da edição portuguesa parece mesmo assim pequeno, num contraste com o tom derrotista que O Fogo assume e cujo final representa um último e violento soco no estômago já muito dorido do leitor.
O
Fogo
David
Rubín
Ala
dos Livros
Portugal,
Março de 2025
220
x 310 mm, 256
p., cor,
capa dura
44,00
€
(versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias online a 25 de Abril de 2025 e na edição em papel do dia seguinte; imagens disponibilizadas pela Ala dos Livros; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)
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