15/10/2010

Little Nemo in Slumberland - Há 105 anos, na terra em que os sonhos eram a realidade



Com que sonhavam os homens há 105 anos?
Alguns que desejavam voar como os pássaros, sonho acalentado pelo ser humano quase desde que o Homem é Homem, punham no ar os primeiros verdadeiros engenhos voadores a que mais tarde se chamaria aviões. Em muitos países - chamavam-se então colónias - sonhava-se com a liberdade e a independência, mas, nalguns deles, muito tempo teve que passar e muito sangue teve que ser derramado para que esses sonhos se concretizassem. Em Portugal, como também noutras nações, havia quem sonhasse com o fim da monarquia e a implantação da república, o que se tornaria uma realidade entre nós a 5 de Outubro de 1910. Uma outra revolução, a russa, que mergulharia o país na ditadura e num banho de sangue, sabemo-lo hoje, estaria também já na mente de alguns.

Muitas mulheres aspiravam a ser iguais aos homens, no que toca a direitos, deveres, oportunidades e responsabilidades, mas esta é uma luta que hoje ainda tem que continuar em muitas latitudes e não só aos países ditos islâmicos…
Nalguns países, especialmente africanos, ainda havia escravos a sonhar com a liberdade; chegaria oficialmente para todos em 1915, após a assinatura, em St. Germain, de um tratado internacional de abolição da escravatura. Que não impede que continue a existir hoje, umas vezes mais claramente, outras à socapa, sob diferentes nomes…
A outro nível, Júlio Verne morria deixando (d)escritos sonhos sem fim, de viagens por todo o planeta, ao centro da Terra e também à Lua, em engenhos novos e mirabolantes que hoje nos são comuns. E talvez Edgar Rice Burroughs já tivesse na cabeça as bases da história de um homem branco que cresceria entre os macacos - que hoje conhecemos como Tarzan, um dos mitos do século XX - e sonhasse já, também, com viagens espaciais e a descoberta de outros mundos.
Todos estes sonhos, e tantos mais, como todos os sonhos, tinham - e têm - o valor que lhes queiramos dar. O valor que lhes dá quem os sonha; o valor que lhes dá quem os ouve contar, sonhando-os, por isso, também. Entre todos estes sonhos e entre tantos sonhadores, um distinguia-se pela forma como os explanava. Os seus sonhos, que hoje, ainda, podemos também fazer nossos, como tantos puderam, ao longo de 105 anos, mais de um século - um século de mudanças intensas, vividas a uma velocidade cada vez maior - foram transmitidos para o papel, para as enormes folhas de um jornal, o "New York Herald", onde, pela primeira vez, um miúdo, de quem quase nada sabemos, para além do seu nome, Little Nemo - literalmente o Pequeno Ninguém, talvez para que cada leitor melhor se pudesse identificar com ele - sonhou fantásticos sonhos passados na terra deles, Slumberland. Sonhos (re)vividos através duma arte - que ainda não se sabia tal - que dava os primeiros passos, ainda trémulos e inseguros, à procura de suportes, técnicas, estilos e temáticas e que via surgir no seu seio uma obra tão notável.
Uma arte que descobria - viria a descobrir mais tarde - neste fabuloso "Little Nemo in Slumberland", tudo aquilo que ela podia/queria/aspirava ser: um desenho fabuloso, uma planificação variada e dinâmica, uma deslumbrante paleta cromática, uma narrativa onírica, fantástica e absorvente.
O seu criador - soa melhor o seu sonhador? - era Zenas Winsor McCay, nascido nos Estados Unidos, em Spring Lake, no Michigan, a 26 de Setembro de 1867. Filho de emigrantes escoceses que tinham chegado à terra de todos os sonhos, uma outra Slumberland, que para tantos foi de pesadelo, ainda hoje é, ainda é mais hoje, até - McCay, aos 19 anos, foi enviado pelo pai para Ypsilanti, Michigan, para estudar comércio num colégio. Foi lá que conheceu um inglês chamado John Goodison, que decidiu experimentar o método de aprendizagem que criara, com diversos alunos, entre os quais aquele McCay que herdara os nomes próprios do patrão do pai. O professor forneceu-lhe todas as ferramentas necessárias para representar objectos no espaço de forma tridimensional. As lições incluíam o desenho de sólidos geométricos e outros objectos, as suas sombras e reflexos, texturas e perspectivas, ensinamentos que McCay utilizaria mais tarde na sua obra gráfica, onde sempre procurou as perspectivas mais originais e os efeitos mais surpreendentes.
Como surpreendente era a forma como ocupava o seu tempo após as lições, no Wonderland de Detroit, um dime museum, uma espécie de circo sedentário que combinava atracções exóticas com espectáculos cómicos e onde, pela primeira vez, ganharia dinheiro com os seus desenhos, pois entretinha-se a retratar os actores, vendendo essas obras a 25 cents.
No princípio da última década do século XIX, McCay mudou-se para Cincinnati onde conheceu, nas escadas do dime museum de Vine Street, a pequena Maud Leonore Dufour, por quem se apaixonou de imediato, apesar dos seus apenas 14 anos. O que não foi impedimento para que, poucas semanas depois, fossem casados por um juiz de paz.
Ela seria a mãe dos seus filhos Robert Winsor, nascido em 1896, e Marion Elizabeth, em 1897. A estabilidade era palavra desconhecida então e o casal mudava de residência pelo menos duas vezes por ano, o que não impedia McCay de, após sair do emprego, frequentar o mundo muito especial do circo e do espectáculo. A partir de 1886 e durante cerca de uma década, Winsor McCay produziu milhares de desenhos publicitários e cartazes, alguns dos quais painéis gigantes desenhados ao vivo, ao mesmo tempo que, a partir de 1887, colaborava pela primeira vez em jornais, tendo-se estreado no "Commercial Tribune", de Cincinnati. Neste e noutros títulos como a "Life" ou o "Cincinnati Enquirer", deixou magníficas ilustrações de acontecimentos do quotidiano como paradas do exército, engarrafamentos no centro da cidade e outros em que podia dar largas ao seu virtuosismo, ao seu gosto pela espectacularidade e aos seus excepcionais sentidos de perspectiva e de observação. O "Cincinnati Enquirer", no qual também assinou ilustrações humorísticas, viu nascer a sua primeira banda desenhada, "The tales of the Jungle Imps of Félix Fiddle", em 1903. Pouco tempo depois partia para Nova Iorque, onde continuou a ilustrar editoriais, cartoons e caricaturas políticas e também banda desenhada. Assim, a partir de 1904, encontrámos "Mr. Goodenough" e "Dream of the Rarebit Friend", no "Evening telegram", "Sister's Little Sister's Beau", "Phurious Phinish of Phoolish Philipe's Phunny Phrolics" e "Little Sammy Sneeze", no "New York Herald", e, no ano seguinte, "A Pilgrim's Progress by Mister Bunion", no "Evening telegram" e "Story of Hungry Henrietta", de novo no "New York Herald". Destas destacam-se duas protagonizadas já por crianças, antevendo aquele que seria o seu maior sucesso, "Little Sammy Sneeze", as desventuras de um miúdo possuidor de um espirro com uma invulgar potência destruidora que, por isso, acaba invariavelmente expulso, muitas vezes a pontapé, do local das suas devastações, e "Story of Hungry Henrietta", uma menina insaciável que por isso espalha à sua volta o terror, e ainda " Dream of the Rarebit Friend", que tem por base não sonhos mas intensos e estranhos pesadelos, causados pelo recorrente abuso de um fondue de queijo por parte do protagonista.Finalmente, a 15 de Outubro de 1905, os leitores do "New York Herald" descobriam pela primeira vez "Little Nemo in Slumberland", aparentemente uma série tematicamente bastante limitada porque, em cada prancha, encontramos Nemo, numa situação que muitas vezes não sabemos se corresponde à realidade ou ao sonho, para no final o descobrirmos a acordar da fantasia que vivera no seu sono, quase sempre caindo abaixo da cama - muitas nódoas negras deve o pequenote ter coleccionado…!
Assim, na prancha inaugural de 15 de Outubro, vemos Omp, um emissário do rei Morfeus, a acordar Nemo para solicitar a sua presença perante o soberano. Apresenta-lhe um cavalo que Nemo monta de imediato, enquanto é avisado que não o deve forçar a correr demasiado.Começando a cruzar-se com estranhas parelhas, um canguru montado por um macaco, um porco por um coelho ou um cão por um sapo, Nemo entusiasma-se perante o desafio de uma corrida, acabando derrubado pela sua montada numa queda sem fim que termina… no chão do seu quarto, pois tudo não passara de um sonho, concluído com uma queda da cama. Na semana seguinte, o emissário regressa, fazendo a cama de Nemo afundar-se no chão, descobrindo-se este perante um palhaço que o leva po
r uma densa floresta de cogumelos de empilhar que desabam quando Nemo se descuida e se encosta a um deles, desatando aos gritos com medo de ficar soterrado e… acordando mais uma vez na sua cama. Esta situação repetir-se-ia semana após semana, terminando cada sonho com o regresso à realidade palpável da cama ou do chão onde esta assentava.
Mas aquela aparente limitação temática revelar-se-ia enganadora e, convidado primeiro pelo Rei Morfeus e mais tarde pela sua filha a princesa, Nemo, só seis meses e muitas aventuras e desventuras - muitos sonos e bruscos despertares - mais tarde, transpõe os portões de Slumberland, tendo, no entanto, de esperar até 8 de Julho de 1906 para conhecer a princesa. No entretanto, travara conhecimento com o pérfido anão Flip, que por todos os meios o tentara impedir de conseguir os seus objectivos, mas que mais tarde se tornará seu amigo e companheiro inseparável, dele e da princesa, constituindo com o canibal (!) Imp os protagonistas da onírica prancha dominical. As sucessivas visitas do pequeno Nemo à terra dos sonhos revelam-se fonte inesgotável de aventuras e descobertas, recheadas dos mais estranhos e deslumbrantes cenários, seres e personagens. Gigantes e anões, palhaços e saltimbancos, animais falantes, outros mais reais, encarnações de lendas e superstições, dragões, sereias e tudo o mais que poderia encher os sonhos de um miúdo de então. Cenários, seres e personagens de sonho, de puro sonho, apetece escrever. Para começar as histórias - cada sonho - o início é o mais diverso e inaudito possível: pode ser o aparecimento de um emissário de Morfeus, a cama de Nemo a afundar-se no chão ou boiar num mar caseiro, elevar-se a casa no ar engolida por um gigantesco peru, ser soterrada por uma tempestade de neve, aparecer como refúgio de um leão ou de um interminável bando de Nemos, etc., etc.. E, com o passar do tempo, cada vez mais McCay faz da última vinheta de cada prancha apenas uma espécie de "(continua)", porque, se nos primeiros tempos, em cada semana Nemo vive um sonho mais ou menos isolado de todos os outros, progressivamente o leitor aprende que na semana seguinte o sonho de Nemo continuará onde foi deixado - não é com isto que sonhamos todos nós, quando acordamos a meio dos nossos melhores sonhos? Com isto, também, McCay dava ao mundo dos sonhos existência própria, porque este não desaparecia com o final de uma prancha - de um sonho - ficava apenas suspenso até à primeira vinheta da página seguinte, uma semana depois… Um aspecto - as histórias em continuação - em que McCay também foi pioneiro, pois este foi um sistema que levaria muitos anos a estabelecer-se como hábito nas histórias em quadradinhos.
Graficamente, "Little Nemo in Slumberland" é difícil de descrever, pois todos os adjectivos parecem limitados para o qualificarem. Deslumbrante, fabuloso, inovador, único, moderno, são os que primeiro me ocorrem. Mais a mais se considerarmos que a banda desenhada, enquanto forma de expressão não contava ainda dez anos (pela data oficial, estabelecida quase um século depois!), embora as suas primeiras manifestações, com o sentido que hoje lhe atribuímos, tivessem ocorrido há já mais de meio século. Em termos gráficos, no Little Nemo de McCay encontrámos do mais inovador, arrojado e surpreendente que a banda desenhada já nos deu. Artisticamente pode ser considerado exemplo acabado de Art Nouveau. Em termos de banda desenhada pura e dura, é verdade que nos primeiros tempos, McCay parece algo hesitante em relação ao funcionamento da forma de expressão que escolhera. Numera (desnecessariamente) vinhetas para estabelecer o sentido de leitura, explica em cartuchos de texto por baixo das imagens o que estas descrevem na perfeição, mostra alguma dificuldade em gerir os balões de fala. Questões que virão a revelar-se menores e que desaparecerão progressivamente para dar lugar a um autor que demonstra um invulgar à-vontade com a planificação.
Em Little Nemo a disposição das vinhetas pela prancha é sempre imprevisível, sendo poucas as pranchas que surgem divididas da mesma forma. McCay tanto segue um esquema mais tradicional, com sucessivas vinhetas regulares, como utiliza vinhetas horizontais e/ou verticais para dar dimensão aos seus mundos de sonho ou situar as personagens - e com elas o leitor - em relação aos elementos do sonho que se deslocam, utiliza vinhetas adjacentes com uma única imagem de fundo, através das quais as personagens se vão deslocando para dar sensação de movimento. Tem pranchas com duas dezenas de vinhetas enquanto outras explodem em meia dúzia ou menos, transforma as letras do título em alimento para Nemo e os seus amigos, faz de vinhetas caleidoscópios ou desenha-as como se os seus heróis fossem vistos em vulgares espelhos deformadores dos que é comum encontrar nas feiras ou parques de diversões (que tanto o atraíam), representa um palácio de lado e depois de pernas para o ar, obrigando as personagens, tão espantadas quanto o leitor, a escolherem novos "pisos" para colocarem os seus pés, sejam eles janelas, paredes ou o que antes era tecto, usa e abusa (no bom sentido) de perspectivas invulgares, apresentando as suas personagens de quase todos os ângulos possíveis e imaginários, brinca até com os próprios ícones que criou, sendo o exemplo mais evidente a famosa prancha de 26 de Julho de 1908 em que a cama de Nemo ganha vida, levando-o em passeio com as suas longas pernas."Little Nemo in Slumberland" teria diversas vidas. A primeira, iria até 1911, quando terminou o contrato de McCay com o "New York Herald", transferindo-se então o autor com armas, bagagens e heróis para o "New York American", onde a série prosseguiria até 1914, rebaptizada "In the land of Wonderful Dreams". McCay retomá-la-ia entre 1924 e 1926, ficando, pelo meio, um musical inspirado nela, em 1908, e um filme de animação de três minutos, em 1909, outra arte em que Winsor McCay foi pioneiro e mestre - havendo mesmo quem compare a sua importância à de Disney - destacando-se nesta sua faceta artística a curta-metragem "Gertie, the (trained) dinosaur". Nos anos 30, o filho de McCay tentou, sem sucesso público nem capacidade artística, retomar a série, numa experiência de curta duração, já o seu pai falecera, inesperadamente, a 26 de Julho de 1934. As histórias de McCay seriam . pontualmente, recuperados por alguns jornais ao longo dos anos, ou compilados das mais diversas formas e tamanhos, em edições mais ou menos dignas.
Surpreendentemente, "Little Nemo in Slmberland" chegou também a Portugal. Estávamos no princípio dos anos 90 e os Livros Horizonte participaram na co-impressão que reuniu uma dúzia de países, de uma edição organizada e prefaciada por Richard Marschall.
Porque não éramos merecedores de tanto, porque a edição em capa dura, com sobrecapa colorida e bom papel tinha um preço demasiado elevado para os bolsos lusos ou por qualquer uma das outras razões misteriosas que abundam no mundo da edição de banda desenhada em Portugal, a verdade é que dos quatro volumes previstos, apenas dois, correspondentes às pranchas publicadas originalmente entre 15 de Outubro de 1905 e 30 de Agosto de 1908, viram a luz do dia (e se encontram ainda, com alguma facilidade, em algumas livrarias ou em feiras de saldos).
Agora, tantos anos passados, "Little Nemo in Slumberland", umas tantas páginas aos quadradinhos, velhas de 105 anos, fará ainda sentido? Não na obrigatória evocação do clássico, não na defesa e apresentação de uma obra que é intemporal (passe o paradoxo que se segue), mas na actualidade dessa mesma obra, na sua legibilidade, hoje, em 2010? O primeiro impulso é responder sim, claro, qual é a dúvida. Pelo pouco que atrás ficou escrito, por tudo aquilo que a sua leitura revela. Mas, tematicamente, serão os sonhos de Nemo - de McCay - ainda sonhados hoje? Sonharão os mais novos, ainda, com mundos encantados e princesas encantadoras, anões e gigantes, palhaços mil, com mundos maravilhosos, palácios faustosos, com o inenarrável e prodigioso universo com que McCay deslumbrou Nemo e os seus muitos leitores? Serão estes sonhos ainda capazes de encantar as novas gerações? A resposta custa a escrever, mas penso que é não.
Infelizmente - por nossa culpa, também por nossa culpa - o imaginário infanto-juvenil de hoje em dia perdeu muito - tudo? - da pureza, sensibilidade e encanto que tinha há um século e que McCay tão bem soube captar e expor no papel. A violência, a falta de valores humanos, éticos e morais, o orgulho, o preconceito, a omnipresença do sexo pelo sexo, o elogio da imbecilidade, ocupam-no hoje (quase?) na totalidade. Fazem de pesadelo aquele que devia ser um mundo de sonho, na idade dos sonhos. Definitivamente? Não sei. A resposta caberá a cada um de nós, pais, tios, professores, adultos, "escrevinhadores" de jornais e blogs e tantos outros…
Mas acredito que a leitura de "Little Nemo in Slumberland" poderá contribuir para o modificar. Bons sonhos!

(Versão revista do texto publicado originalmente no BDJornal #6, de Outubro de 2005)

1 comentário:

  1. Carlos Rico15/10/10 17:05

    Um belo texto, Pedro! Cheio de informação e com uma mensagem final bem interessante!
    Parabéns!

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