O texto que se segue serviu de base à
apresentação de dois álbuns de Andy Capp – aliás Zé do Boné – que fiz em 2007,
a convite do jornal O Primeiro de Janeiro, na sessão comemorativa dos 140 anos
daquele jornal.
Quero começar por agradecer ao Primeiro de
Janeiro e à Fólio Edições este convite para vir aqui falar do Zé do Boné.
Um convite que me levou num duplo regresso ao
passado.
Primeiro, por que me fez relembrar os anos em
que colaborei com o Primeiro de Janeiro, onde comecei a escrever a sério sobre
BD.
Depois, porque foi a oportunidade de recordar
uma das bandas desenhadas da minha infância e juventude.
Conheço Andy Capp, ou melhor, o nosso Zé do Boné,
desde pequenino, das páginas do Primeiro de Janeiro, que o meu avô materno
comprava diariamente.
Nesse jornal, descobri, também as bandas
desenhadas do Caderno Dominical - que foi uma referência para todos os que
gostam de BD em Portugal. Relembro em especial as aventuras do Príncipe Valente
e as peripécias mudas do Reizinho.
Mas, falando do Zé do Boné, para começar, deixem-me
dizer que é preciso uma grande dose de coragem para publicar as suas tiras nos
nossos dias.
Desde logo porque é precisa coragem para
publicar livros em Portugal, mais a mais de BD.
Depois, porque é precisa muita coragem para
publicar uma personagem tão politicamente incorrecto como o Zé do Boné.
Num tempo em que o lobo mau já não come
porquinhos nem se pode atirar o pau ao gato, é preciso coragem para promover um
herói preguiçoso, desempregado por opção, que bebe até cair para o lado, fumou
até aos anos 80, é machista, bate na mulher, namorisca todas as raparigas que
vê, faz apostas, pratica a violência no desporto, é implicativo e conflituoso.
Foi a 5 de Agosto de 1957 que o Zé do Boné
apareceu pela primeira vez. Há 50 anos, portanto. Não ainda como tira diária
mas como cartoon. E ao contrário do que é normal neste género de banda desenhada,
não teve origem norte-americana, mas sim britânica, pois foi publicado pela
primeira vez nas páginas da edição regional do "Daily Mirror".
Na origem, recuperava um estereótipo habitualmente
associado aos habitantes de Hartlepool, uma cidade operária do nordeste da
Inglaterra, onde o seu autor residia. Mas, apesar dos seus muitos defeitos e do
retrato negativo transmitido, foi rapidamente adoptado pelos seus concidadãos.
Em cerca de seis meses passou a tira diária e prancha
dominical, e trocou a distribuição regional pela circulação nacional.
Aos Estados Unidos, país pai das tiras diárias
de imprensa, chegaria em 1963, com igual sucesso. No seu auge chegou a ser
publicado diariamente em 13 línguas, 50 países e 1400 jornais. Entre os quais o
Primeiro de Janeiro, onde há quase meio século é uma referência
Na sua primeira aparição, o seu aspecto era
substancialmente diferente, o traço era menos estilizado, mais pormenorizado e
trabalhado, era mais alto e a sua mulher mais baixa, menos imponente. Mas já
considerava o trabalho sagrado, não lhe tocando por isso.
Com o tempo o Zé assumiu o aspecto que lhe
conhecemos hoje. Nariz e orelhas grandes, quase sempre encostado ao balcão do
pub ou a dormir no sofá da sala, sempre com o seu velho chapéu aos quadrados,
amarrotado, enterrado até aos olhos, e o cachecol ao pescoço. Muitas vezes de
costas porque o autor, no início não tinha muito jeito para desenhar rostos,
como admitiu numa entrevista.
O seu criador foi o britânico Reginald ou Reg Smythe,
nascido a 10 de Julho de 1917.
Com uma infância e adolescência sem história,
Smythe chegou tarde à banda desenhada, já com 30 anos, após mais de uma década
no exército e nos correios.
O Zé do Boné, a que se dedicou toda a vida foi a
sua única criação digna de registo. O seu traço era simples, mas eficiente e
expressivo, mesmo escondendo quase sempre os olhos do Zé.
Reduziu os cenários ao mínimo indispensável e
utilizou-os de forma repetida e exaustiva. Isso, permitiu-lhe assegurar durante
décadas a tira diária e a prancha dominical, e fizeram do Zé do Boné um exemplo
a seguir para os aspirantes a cartoonistas, no que toca à simplificação de
processos.
Senhor de um humor directo, cínico e irónico,
Reg Smythe limitou-se a reproduzir aquilo que o rodeava, exagerando nos podres,
como que reflectidos por um espelho deformador.
Distinguido em 1974 como cartoonista do ano, Reg
Smythe faleceu a 13 de Junho de 1998, vítima de cancro, deixando material para
quase ano e meio de publicação.
Como sempre acontece nas tiras diárias de
sucesso, o Zé do Boné sobreviveu ao seu criador, sendo hoje assinado por Roger
Mahoney e Roger Kettle, que têm mantido a série dentro dos parâmetros gráficos
e narrativos estabelecidos por Smythe.
Ao lado do Zé do Boné está quase sempre a sua
mulher, Florrie, diminutivo de Florence, ou Flora/Flo, na versão portuguesa.
Trabalhadora esforçada, divide o tempo entre a lida da casa, o trabalho, os
mexericos com as vizinhas ou a mãe e os constantes conflitos com o Zé. Mas
arranja sempre tempo para passar pelo pub e beber o seu copito e controlar o marido.
Em torno deles gravitam ainda Chalky, o melhor
amigo do Zé, igualmente um inútil; Rube White, a confidente de Flo; Jack, o
fleumático dono do bar; as diversas empregadas deste; o vigário que não perde a
oportunidade de dar um sermão ao protagonista, embora no fundo saiba que é
tempo perdido; o senhorio, que tenta ingloriamente receber as rendas atrasadas;
diversos cobradores de dívidas, igualmente mal sucedidos; a sogra do Zé, que
nunca é visível nas tiras, ouvindo-se apenas em off os seus comentários mordazes
sobre o genro; o conselheiro matrimonial do Zé e Flora, incapaz de dar uma
sugestão útil para o casamento; os muitos desgraçados anónimos a quem o Zé crava
um copo ou deixa estendidos no campo de futebol ou râguebi.
O dia a dia do Zé do Boné é pouco diversificado:
dorme, bebe, joga, discute com Flo, critica tudo e todos, inventa desculpas
para a hora tardia a que chega a casa e pouco mais.
Tudo isto se passa na sua sala, no pub, na rua
ou no campo de jogo.
Apesar disso, é espantosa a quantidade de situações
diferentes que Smythe e os seus continuadores recriaram neste microcosmos ou os
múltiplos desfechos diferentes para as muitas situações recorrentes na tira, explorando
ao limite o cómico das situações.
Esta aparente limitação de espaços, personagens
e situações, ajuda, no entanto, a ganhar o leitor, que rapidamente se
familiariza com o herói, se assim se pode chamar, e se sente como que em casa
em cada um daqueles locais que vai aprendendo a conhecer. O que o leva a
aguardar, com interesse crescente, de que forma vão sendo renovadas as piadas,
muitas vezes desconcertantes, quase sempre mordazes.
E que nos fazem sorrir de um dia-a-dia miserável
que representa muito daquilo que nenhum de nós quer para si próprio.
É esta desconstrução de um quotidiano
inquietante, possivelmente, o principal segredo do sucesso de uma personagem inconveniente,
que dá pelo nome do Zé de Boné. E que eu vos convido a descobrir - ou
redescobrir, como aconteceu comigo - nos álbuns da Fólio Edições que prometem,
para o próximo ano, mais seis títulos, entre tiras diárias e pranchas
dominicais coloridas [mas que infelizmente se ficaram por dois tomos,
curiosamente o I e o III].
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