O tema – a subpolítica francesa desde os anos 1970 – e a
dimensão do livro, levou-me a hesitar quanto a lê-lo, durante algum tempo, mas
finalmente decidi-me. Teria feito mal se assim não fosse.
Verdadeiro documentário em banda desenhada – como refere
aliás um dos entrevistados – Cher pays de
notre enfance é o relato de um inquérito levado a cabo por Étienne Davodeau
e o jornalista Benoît Collombat, em torno dos assassinatos do juiz Renaud, a
tiro, em Lyon, em 1975, e do ministro Roberto Boulin, em 1979, disfarçado de suicídio
por afogamento num curso de água com 50 centímetros de profundidade…
A eles, surge associado o nome de uma organização
apropriadamente intitulada Le Sac (o saco ou Service d’Action Civique),
alegadamente também relacionada com o ‘assalto do século’ em França bem como de
outros assaltos, que teriam como objectivo angariar fundos.
Numa França ainda marcada – e dividida – pela II Guerra
Mundial e recém-saída da Guerra da Argélia, cujas reminiscências foram bem mais
marcantes do que a nossa Guerra Colonial, aquela que começou por ser uma
organização com o intuito de apoiar o general De Gaulle, rapidamente ganhou
contornos mafiosos, misturando política, influências e crime, surgindo por isso
associada não só aos assassinatos referidos, bem como aos principais
acontecimentos políticos do último meio século em França, desde o apoio a
candidatos de direita até à oposição às lutas sindicais, passando pelo jogo de
influências que levou ao branqueamento, ao abafar e ao esquecimento de muitas investigações
– da polícia e do parlamento francês – como aconteceu com os dois casos
referidos – e em boa parte dos outros 45 assassinatos políticos ocorridos em
França sob as presidências de Georges Pompidou e Giscard d’Estaing.
Se a temática parece algo desinteressante, em especial para
não franceses, Davodeau encarrega-se de lhe dar uma roupagem adequada, começando
por se incluir a ele e a Collombat como co-protagoonistas – a par de todos os
inquiridos - o que confere um tom de credibilidade acrescido. Depois, faz de
cada entrevista um momento dinâmico, pela forma como vai mudando os
enquadramentos, como se de um baile de câmaras se tratasse, e adiciona-lhes uma
série de pequenos apontamentos humanos – risos espontâneos, reacção dos
inquiridos ao facto de serem desenhados (autorizando-o ou não), as modificações
sugeridas/impostas às versões desenhadas…
Desta forma, consegue captar a atenção do leitor, prendê-lo
ao relato e transformar um temática que poderia revelar-se algo árida, maçadora
e vazia, quase num relato policial - apaixonado e apaixonante - em que Davodeau
e Collombat expõem o que vão ouvindo e lendo – de forma subjectiva, claro, pois
a sua opinião é conhecida desde o início – mas com margem de manobra suficiente
para o leitor poder formar a sua própria opinião.
Partindo da (excelente) ficção nos seus primeiros álbuns, embora
já com um fundo social, autor militante, divulgador de causas, defensor de
paixões, Étienne Davodeau dá mais uma lição de narração aos quadradinhos, explorando
todas as potencialidades do género (também) na exploração do género documental,
e, por isso, Cher pays de notre enfance
surge perante nós como (mais) uma obra notável.
Cher pays de notre enfance
Benoît Collombat e Étienne
Davodeau (argumento)
Étienne Davodeau (desenho)
Posfácio de Roberto Scarpinato,
procurador-geral de Palermo
Futuropolis
França, Outubro de 2015
195 x 265 mm, 224 p., pb, capa dura
Impresso em papel Munken Pure 130 g
ISBN : 978-2-7548-1085-2
24,00 €
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