Leituras
(introdução publicada na edição da colecção Novela Gráfica 2017)
Tu viste e ouviste o mesmo que eu, mas só que interpretamos os
acontecimentos de modo diferente.
S.S. Van Dine, The Kidnap Murder Case, citado por Miguelanxo Prado in
Traço de Giz
Quantas histórias tem um livro?
A resposta simplista é: uma, a que o autor escreveu (e
desenhou, no caso de uma BD).
A mais extensa, preconiza que são “tantas quantas os
leitores que o lerem”.
A resposta verdadeira - se num caso destes há verdade -
ficará inevitavelmente entre as duas, mais próxima da quantidade do que da
unidade.
O que somos, o que fazemos, o que pensamos, a forma como
crescemos, a função que exercemos, as relações que estabelecemos, o local onde
vivemos (mesmo no mundo global que é o de hoje), condicionam-nos enquanto
leitores.
A nossa capacidade de interpretação, as influências
exteriores a que damos - ou não - ouvidos, o treino do nosso olhar, as nossas
capacidades de síntese e de análise, são filtros - inúmeros filtros… - através
dos quais passa o que o autor expôs e, inevitavelmente, condicionam o que - e
como - nós o lemos.
Traço de Giz, já na
altura da sua publicação era uma obra inusitada na bibliografia de Prado, e
continua a sê-lo, na companhia de uns poucos títulos mais: O Manancial da Noite, De Profundis,
Ardálen…
As premissas que até aí - e depois também - imperavam nos
livros do autor galego, uma profunda crítica social, um olhar implacável sobre
a idiotice humana, um sentido de humor satírico e mordaz e também algum
desencanto, estão praticamente ausentes de Traço
de Giz. E se os seres humanos – e o desencanto… - continuam a ser vistos à
lupa pelo autor, agora primam a ternura, a poesia e, quase, o romantismo, a par
da teimosia, da prepotência e da (in)capacidade de relacionamento, assumidos -
ou não - pelos poucos protagonistas que o acaso reúne simultaneamente numa ilha
minúscula no meio da imensidão atlântica - o tal ‘traço de giz’ sobre o azul
oceânico…
Voltei a (re)ler Traço
de Giz, agora, para a escrita destes linhas. Regressei a um livro que me
marcou profundamente aquando da sua edição original - em 1993, há já quase 25
anos - e a que regressei com alguma regularidade.
Vez após vez, leitura após leitura, sempre com algumas diferenças
- motivadas pelo momento, pelo avanço do tempo, pelas (novas) circunstâncias
pessoais… - (re)encontrei um drama trágico, uma história profundamente humana
de sucessivos desencontros, em que os protagonistas parecem nunca estar em
sintonia - apesar do que parece atraí-los. Uma história centrada num triângulo (não)
amoroso (mas de desejo), em que se podem contar curiosas cinco pontas.
Esta última frase soa estranha, surpreendente, enigmática, eu
sei, mas serão essas (algum)as (das) sensações que perseguirão muitos dos
leitores de Traço de Giz após a (sua)
leitura do livro.
Sensações que, terminada a quase centena de páginas, lido o posfácio
do autor, obrigarão muitos a regressar ao início, a nova leitura - mais atenta?
mais cirúrgica? mais esmiuçada? - à procura das incongruências que Prado
(conscientemente) introduziu, dos delírios (?) que as personagens sofreram, dos
pormenores que faltaram na primeira vez, das pistas baralhadas que passaram
despercebidas - que foram distorcidas pelos (seus) filtros…
Não me atrevo a escrever mais, não quero apontar caminhos, quero
que os leitores desfrutem, descobrindo-os por si, encontrando os seus.
O livro foi concebido assim - dúbio? fantástico?
inquietante? - e seria abusivo da minha parte, de alguma forma querer limitar o
que Prado deixou tão em aberto…
… como desafio e estímulo à capacidade de leitura de cada
leitor.
Traço de Giz
Miguelanxo Prado
Levoir/Público
Portugal, 7 de Julho de 2017
104 p., cor, capa dura
9,99 €
(imagens disponibilizadas pela editora; clicar nelas para as
aproveitar em toda a sua extensão)
Nunca tinha lido Pedro e gostei muito, e não fosse o post sobre a curiosidade do muro não tinha voltado ao inicio para ver a mensagem do muro...Uma ilha estranha, personagens quase hitchcockianas, lebrei-me do Parque Chas também em estilo "twilight zone". É daqueles para reler. Parabéns pela introdução :)
ResponderEliminarObrigado Homem do Leme.
EliminarÉ um dos 'meus' livros...
E depois diz o que achaste do Davodeau!
Boas leituras!
Pedro, esta edição não contém posfácio do autor, a não ser a nota sobre o epílogo e a homenagem ao Pratt. Onde é que o posso encontrar?
ResponderEliminarBoa noite Pedro, demorei muito tempo para ler este livro li agora e reli de seguida passado alguns segundos de reler uma coisa na parede da ilhota caiu a ficha do que se tratava! Excelente, que livro.
ResponderEliminarExcelente livro sem dúvida, Eduardo.
Eliminar(Mais) boas leituras!