(introdução publicada na edição da colecção Novela Gráfica 2017)
“… nós procuramos ambos uma coisa difícil: uma forma de evocar a vida
das pessoas, mantendo a nossa liberdade de autor…”
Emmanuel Guibert, em Os Ignorantes
Há duas características fundamentais na obra de Étienne Davodeau.
Por um lado, a forma como utiliza - como experimenta, como
arrisca, como ousa - a linguagem própria da BD em géneros menos associados a
este tipo de narrativa, “porque o campo da banda desenhada é vasto e não vejo
razão para o limitar à ficção” [Esta e outras citações são de uma entrevista concedida ao Jornal de Notícias de 10 de Julho de 2001].
Como a reportagem, em Rural! (2001),
sobre os atropelos ambientais cometidos pelo traçado surrealista de uma
auto-estrada para servir os caciques locais, ou em Cher pays de notre enfance (2015), que investiga os crimes e a
corrupção na subpolítica francesa desde os anos 1970.
Temas fortes, actuais, fracturantes, sensíveis porque
Davodeau é (também) um autor de causas. Abordadas do seu ponto de vista:
“Contar é enquadrar. Enquadrar é iludir. Iludir é mentir.” Logo, “nenhum livro
é objectivo”. Por isso, o autor é também co-protagonista e portanto personagem,
para que “o leitor não se esqueça que entre ele e o que lê está um individuo
que organizou o todo.”
Nestes casos - como em toda a bibliografia do autor - o que
mais surpreende é o modo como a sua escrita desenhada - e não há outra forma de
a descrever - faz o relato fluir, natural e serenamente, e transporta o leitor
para a realidade - a realidade real, desculpem o pleonasmo consciente - que
está a explorar, mesmo quando a temática possa ser menos interessante para ele.
O segundo aspecto que distingue as suas obras, é a sua forte
componente social e humana. Se os livros acima referidos já o reflectiam – são
reportagens reais no mundo real - mesmo a sua obra ficcional ancora solidamente
na nossa vida de todos os dias: La Gloired’Albert (1999), aborda a subida da extrema-direita em França; o magnífico Alguns dias com um mentiroso, centra-se na passagem
para a idade adulta e na (consequente) morte dos sonhos (edição portuguesa da
Mundo Fantasma, 1999); Anticyclone (2000)
tem o desemprego como tema central; Aqueles que te amam (edição portuguesa da MaisBD, 2002), foca o lado mercantilista
do futebol; Lule Femme Nue
(2008/2010) assenta na condição da mulher…
Os Ignorantes, este
livro que têm agora nas mãos, datado originalmente de 2011, reflecte os dois
aspectos. Desde logo porque é um relato documental - e autobiográfico - mais
uma vez narrado na primeira pessoa, e que acompanha uma iniciação cruzada em
dois mundos - só aparentemente… - díspares.
O lado humano dos dois protagonistas - e já vamos falar
deles - seres humanos reais e com sentimentos, perpassa por toda a narrativa e
revela-se nos seus estados de espírito, nas suas emoções e dúvidas, nas suas
acções e reacções. E na sua ignorância!
Porque Étienne Davodeau e Richard Leroy são dois ignorantes.
O primeiro, autor de banda desenhada - como já sabemos… -
ignorava tudo sobre vinhos.
Amigos, decidiram suprir a ignorância um do outro sobre o
tema em que se sentiam à vontade - a profissão que abraçaram como sua e pela
qual são apaixonados - abrindo-se mutuamente mundos novos a descobrir.
Mesmo se Étienne tem dificuldade em diferenciar os vinhos
que prova, mesmo se Richard adormece quando tenta ler BD. Porque este é um mergulho,
longo e profundo, em dois universos, que se revelam menos afastados do que à
primeira vista poderia parecer, pois ambos se revelam igualmente sedutores nas
suas características intrínsecas, são vividos solitariamente à excepção dos
momentos ocasionais de partilha com os pares, potenciados pela paixão comum de
um e outro pelo (seu) trabalho bem feito.
Se a escrita gráfica de Davodeau revela mais uma vez todo o
seu potencial narrativo, desta vez o registo é mais ligeiro, sem perder o tom
humano, com diálogos credíveis, verdadeiros e sinceros como só ele sabe,
pontuados aqui com humor, ali com fúria, depois com dúvida, mais à frente com
surpresa. Através deles, juntamente com o seu traço mais funcional do que
plasticamente belo e uma planificação sóbria - como os protagonistas - somos
iniciados naqueles dois mundos, aprendemos com as dúvidas de cada um que, em
muitos casos, podem ser também as nossas.
Por isso, ao longo das páginas, perto de três centenas, que
voltamos sucessivamente, quase sem dar pela passagem do tempo, vamos descobrir
os segredos do vinicultor e do autor de BD. Saber da poda (literalmente!) e do
desenvolvimento do argumento; das especificidades das pipas e do papel; do uso -
ou não - de químicos e de questões de impressão; visitar provas de vinho e
festivais de BD; contactar com outros autores e com outros produtores. E, com
Davodeau, vamos degustar vinhos. E, de Leroy, vamos ouvir impressões sobre
bandas desenhadas que (re)conhecemos.
No final, muitos copos bebidos, muitas páginas voltadas,
ganha o leitor - apreciador de vinhos, amante de BD, ambos ou nenhum - que
aprende sobre duas ocupações artesanais que impõem dedicação apaixonada - criar
BD, fabricar vinho - e (re)descobre (outr)as potencialidades narrativas da
banda desenhada.
Os Ignorantes
Relato de uma iniciação cruzada
Étienne Davodeau
Étienne Davodeau
Levoir/Público
Portugal, 14 de Julho de 2017
195 x 265 mm, 272 p., pb+cinza, capa dura
9,99 €
(imagens disponibilizadas pela editora; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)
Isto estará na Fnac ou Wook à venda?
ResponderEliminarSe acontecer como nas colecções de 2015 e 2016, será vendido em livrarias, embora com um preço superior ao actual.
EliminarArrisco dizer que na melhor das hipóteses só para o final do ano...
Boas leituras!
Para a maior parte das pessoas o seu conhecimento é o que verdadeiramente conta………… o único que possui valor. A nossa ignorância perante certos temas e situações é completamente desvalorizado……………………. Tudo isto para abordar o tema do álbum Os Ignorantes – Relato de uma Iniciação Cruzada…………………………argumento bem original …………. O que têm em comum um produtor de vinho biológico e um autor de BD?........traço muito acima da média……..excelente investimento para quem é “fanático” de qualidade no campo desta refinada 9ª arte
ResponderEliminarUm excelente investimento para qualquer leitor, sem dúvida Pedro.
EliminarObrigado pela partilha.
Boas leituras!