29/08/2019

António Variações, herói de BD










Cantor, performer, barbeiro, António Variações foi também participante numa banda desenhada, já lá vão quase 35 anos.
Corria o ano de 1985. Nas livrarias portuguesas aparecia “La Chavalita” (Caminho), álbum de estreia de Pitanga, que viria a ser um dos raros heróis recorrentes da BD nacional.
O autor, Arlindo Fagundes, conhecido como ilustrador da série juvenil “Uma Aventura”, abordava uma temática então actual, o tráfico sexual entre o Minho e a Galiza.
Ao JN, Fagundes recordou a génese do seu herói: “Ao longo da história da literatura, da ópera, das artes, o barbeiro surge muitas vezes como personagem de ficção. Era cirurgião, conselheiro, confidente, um faz-tudo”. Foi por isso, também, “que o Pitanga acabou barbeiro, mas a domicílio, para ter a mobilidade necessária” para se deslocar pelos cenários da acção.

Logo a abrir, no prefácio, os leitores eram informados da aparição de António Variações na obra. Fagundes explica: “Na altura gostava da sua música, achava piada à sua figura, à sua atitude, mas ainda hoje me admiro como tive coragem para o fazer”. Se o Pitanga era barbeiro, “achei que ele podia perfeitamente conhecer o António Variações, da profissão”. E prossegue: “Incluir uma referência viva, era quase um atestado de autenticidade ao Pitanga; dava solidez e verosimilhança à minha história”.
Daí a escrever-lhe foi um passo. “Já tinha o argumento escrito, meti no envelope fotocópias das primeiras pranchas da história para lhe apresentar o Pitanga e cerimoniosamente perguntei-lhe se se importaria de ser seu amigo e entrar com ele na aventura”.
A resposta tardou mas, confessa agora pela primeira vez, a obra não parou: “arrisquei avançar e desenhá-lo. Já tinha as pranchas prontas quando recebi a amável resposta dele”. Nessa carta, que ainda conserva, Variações anuía ao “curioso pedido” uma vez que ia fazer parte de uma “história inteligente e de bom gosto”.
Mas, “se a carta não tivesse chegado”, afirma Fagundes, “teria voltado à carga; nunca publicaria sem autorização”.
Como consequência, António Variações surge como “artista convidado”, com Pitanga, numa discoteca, numa sequência bem-humorada de três páginas, nas pranchas 33 a 35.

Fagundes ficou à espera de ter “um exemplar para lhe entregar”, como o cantor pedia na carta, “mas isso nunca aconteceu”. Menos de dois meses após recepcionar a resposta de Variações, “li no jornal que tinha falecido”. Reconhece que “gostava de o ter conhecido pessoalmente”, o que até teria sido fácil pois “eram quase vizinhos”: Variações era de Amares e Fagundes tinha o atelier em Vila Verde.
No prefácio do álbum, afirma que “de todos os personagens desta história, era este [António Variações] o único que eu não tinha inventado, o único que estava por sua conta e risco e que eu nunca me atreveria a matar, o único cuja morte me deixou estuporado”, numa “história em quadradinhos em que morre muita, muita gente”.
A mágoa e a dívida de gratidão que “La Chavalita” deixou, foi de alguma maneira paga no álbum seguinte, “A Rapariga do Poço da Morte” (Caminho, 2003), que abre no cemitério de Amares, com Pitanga junto à campa de António Variações, desenhada a partir de fotos tiradas no local. “Foi algo poético, sentido e respeitoso, para reforçar a ideia de que ele e Pitanga eram amigos e para fazer a ligação ao álbum anterior”. E conclui Fagundes: “Foi uma homenagem, para dizer que não o tinha esquecido”.

(versão revista do texto publicado no Jornal de Notícias de 26 de Agosto de 2019; imagens disponibilizadas por Arlindo Fagundes; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

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