O livro da selva

Um livro, várias selvas

Eu - como tantos da minha geração - descobri (alguns d)os clássicos da literatura, nas versões - animadas e/ou em BD - da Disney (com as segundas a adaptarem as primeiras). Delas, passei, algumas vezes, ao longo dos anos, a adaptações mais realistas, a versões romanceadas juvenis ou mesmo aos romances originais.

Em termos de banda desenhada, estes 'encontros' com os clássicos da literatura aconteceram numa revista brasileira intitulada Clássicos Walt Disney, da Abril Jovem, que reproduzia, num formato próximo do A4, as edições norte-americanas da Gold Key. Originalmente lançadas no Brasil entre Dezembro de 1968 e Junho de 1970, ainda possuo a totalidade dos 19 números publicados, que os meus pais me foram comprando aquando - quando? - da sua distribuição em Portugal. Não sei qual o atraso entre o lançamento no Brasil e a posterior chegada a Portugal, mas são revistas que me lembro de ter desde sempre, que foram relidas muitas vezes - e o seu estado actual (infelizmente) demonstra-o bem.

Foi nesta colecção que descobri, por exemplo, Peter Pan, Robin Hood, Alice no País das Maravilhas, 20000 Léguas submarinas ou A Ilha do Tesouro. [Esta última, curiosamente, numa versão bem próxima daquela que a Levoir editou agora.]

E, também, este O Livro da Selva, uma história ambientada na Índia colonial inglesa, protagonizada por uma criança criada por lobos, com o auxílio de um urso e uma pantera, e que tem por principais inimigos um tigre e os grandes macacos. A lei da sobrevivência entre os animais e o constante sentimento de não pertencer a nenhuma comunidade - nem à dos lobos, com quem cresceu, nem à dos humanos, a cuja raça pertence - marcam igualmente o trajecto e o crescimento de Mogli.

Tendo tido oportunidade de traduzir a edição da Levoir, fui somando - mentalmente - as sucessivas diferenças entre a versão da minha infância e a que tinha à minha frente e, não sendo caso para afirmar perentoriamente que são histórias diferentes - a base é afinal a mesma - não deixa de ser curioso como uma e outra surgem tão desencontradas em termos de opções narrativas, registos gráficos e tom geral, embora igualmente válidas no contexto das respectivas publicações.

A primeira - cronologicamente na minha vida e também na sua criação - a da Disney, surge no óbvio tom delicodoce esperado e - diríamos hoje - mais politicamente correcta, enquanto que a segunda espelha com maior fidelidade o tom mais duro dos contos originais - a que agora voltei - dos quais desfruta sem dúvida de maior proximidade.

Se o estilo 'animado' da Disney casa melhor com esta versão mais leve da responsabilidade de Carl Falberg, convém destacar como a banda desenhada neste caso funciona tão bem narrativamente, em bom ritmo, com bastante humor (gráfico), sem tempos mortos nem necessidade de recurso a textos explicativos ou de apoio, num trabalho competente de Al Hubbard.

Em contraste, a versão da Levoir de Djian e TieKo, abusa um pouco deles a espaços, aproximando algumas (poucas) pranchas mais de texto ilustrado, embora geralmente sejam as imagens e os diálogos, funcionando como um todo, que fazem avançar o relato.

Em conformidade com o tom adoptado, por vezes sombrio e com alguns apontamentos de certa violência - natural entre criaturas selvagens - o traço realista utilizado surge aos olhos do leitor muito mais detalhado e perfeccionista, em especial na representação dos animais, muito pormenorizada - como é visível, por exemplo nos grandes planos. O conjunto revela-se bastante coerente e equilibrado, surgindo este volume como um dos mais conseguidos da actual colecção.

Clássicos de Walt Disney
#2 Mogli, O Livro da Selva
Carl Falberg (argumento)
Allan 'Al' Hubbard (desenho)
Abril Jovem
Brasil, Janeiro de 1969
205 x 275 mm, 64 p., cor, capa fina

Clássicos da Literatura em BD
#7 O Livro da Selva
Baseado na obra original de Rudyard Kipling
Djian (argumento)
TieKo (desenho)
Levoir/RTP
Portugal, 4 de Março de 2021
210 x 285 mm, 64 p., cor, capa dura
10,90 €

(imagens disponibilizadas pela Levoir; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)