Les dernières années 1877-1903
Christian Perrissin (argumento)
Mathieu Blanchin (desenho)
Futuropolis (França, 13 de Abril de 2012)
215 x 29o mm, 112 p., branco e sépia, cartonado
22,50 €
Este álbum, último de uma trilogia, pode ser encarado de
duas formas: a destruição ou a humanização de um mito.
Porque, disso não duvido, Martha Jane Cannary, aliás
Calamity Jane, é uma daquelas figuras do Velho Oeste que o tempo, a tradição e
as artes –a literatura, o cinema, a BD – se encarregaram de mitificar. Mesmo
para aqueles que com ela puderam conviver. Um dos muitos mitos - e um dos mais
fortes - que a sua época e o local (enquanto conceito alargado) em que viveu se
encarregaram de desenvolver.
A intenção de Perrissin e Blanchin, no entanto, não é
endeusá-la, mas sim mostrá-la na sua profunda humanidade. O que é mais evidente
neste tomo da trilogia que lhe dedicaram (e que está também disponível num
único tomo integral) que encerra a biografia romanceada aos quadradinhos de
Martha Jane, porque corresponde aos seus anos finais, à época do seu declínio
(acentuado) provocado pela solidão, o alcoolismo, a velhice e as doenças que o
seu estilo de vida propiciou.
Por isso, longe da exploradora audaz e da atiradora ímpar
que, possivelmente a nossa memória associava à sua imagem e que os tomos
anteriores de certa forma privilegiaram, encontramos uma mulher a lutar pela
sua vida – que no entanto preza pouco – como cozinheira, dona de uma
lavandaria, enfermeira, artista de feira ou de circo, ou pouco mais (menos),
minada pelas suas dúvidas, com saudades da filha que um dia abandonou,
arrependida dessa atitude que a marcou e à qual foi incapaz de se declarar como
mãe (embora por razões nobres e que vão além da sua vergonha…).
Não que não seja, mesmo assim, apesar de tudo isto, uma
mulher à frente do seu tempo – com um pouco do “pêlo na venta” que Goscinny tãobem traduziu na caricatura de Calamity com que Lucky Luke se cruzou – com uma
inextinguível sede de liberdade e de independência, emancipada e autónoma num
mundo de homens – dos quais precisa e aos quais se entrega, aos quais se
submete e com quem tem filhos que o seu abuso de álcool matou ou de quem mais
cedo ou mais tarde se desligou – uma mulher de força, de vontade, de uma
vivência única e marcante. Mas também uma mulher, profundamente humana, com
muitas dúvidas e incertezas, em busca de reconhecimento e aceitação – em especial
de si própria - minada, destruída pela vida que levou.
Combinando a narrativa directa com as cartas que escreveu à
filha mas nunca enviou e com apontamentos – estranhos no tom geral do relato –
do endeusamento que os escritores de folhetins então promoveram, Perrissin
propõe-nos uma obra ritmada, bem documentada e credível. Para isso contribui de
forma decisiva o traço semi-realista de Blanchin, com uma boa reconstrução de
época, embora as personagens enquanto centro da narrativa se sobreponham aos
cenários, traçada em sombrios tons de sépia, em que o realismo sobrepuja (logicamente)
algumas passagens ficcionadas-
O conjunto, propicia uma leitura forte e emotiva, que
assenta principalmente na dualidade – inerente a todo o ser humano – entre a
realidade de cada um – e a ideia que cada um faz de si - e a impressão que
provoca nos outros, aqui toldada, distorcida pela dimensão do mito face à
pequenez do ser humano.