06/03/2018

O Legado de Júpiter: Luta de poderes


Sem expectativas





Uma das coisas que mais aprecio - enquanto leitor - é ser surpreendido por obras sobre as quais não tinha expectativas.
Isso aconteceu - mais uma vez, embora seja cada vez mais raro, num tempo em que a informação circula velozmente e nos chega mesmo sem queremos - com este primeiro volume de O Legado de Júpiter.

Sejamos desde já claros: trata-se de uma obra-prima, daquelas que daqui a 10, 20, 50 anos ainda será citada, lembrada e relida? Penso que não. Tem uma temática tão profunda que nos deixa a pensar e nos acompanha ao longo de dias? Não, também.
O que tem então de especial (mais) esta obra de Mark Millar? A resposta é simples, atingi-lo muito difícil: O Legado de Júpiter é uma obra muito bem escrita - e também muito bem desenhada. Que mais se pode pedir a uma BD?
Na sua essência é uma história de super-heróis - não, não desistam já, leiam mais um pouco… - daqueles que fazem o bem e combatem vilões apenas porque sim, porque receberam - o livro diz-nos como - poderes e decidiram utilizá-los para o bem da Humanidade, desde os conturbados anos 30 que após a queda da Bolsa transformaram a América - e possivelmente permitiram fazer dela o que é hoje.
Mas não é nessa primeira geração que a história de Millar se centra, embora também a explore. Partindo dela - da imagem que sobre si próprios criaram e projectaram Utopian e a sua esposa - o argumentista escocês desconstrói a partir do interior o conceito tradicional das narrativas de super-heróis - e o próprio conceito de super-seres - e coloca em questão tudo o que são e representam.
Porque - e escrevo sem querer adiantar demasiado da história mas levantando um pouco o véu sobre ela - aquela bela imagem projectada para o exterior, para a sociedade que servem, esconde (mais uma) família disfuncional, com uns patriarcas não tão ‘puros’ e ‘intocáveis’ e uma geração seguinte desejosa de sair da sua sombra e seguir o seu próprio caminho, seja ele apenas uma vida normal ou o aproveitamento egoísta das capacidades que herdaram.
Desta forma, O Legado de Júpiter, em paralelo com a tal história de super-heróis - onde, num registo puro e duro, ainda é possível inovar e ser original! - é também uma saga familiar - com tudo o que tradicionalmente possamos imaginar e o ‘extra’ das capacidades extraordinárias - centrada na luta pelo poder e no confronto de gerações.
A extensão do tempo da acção desde os anos 30 até um futuro distópico, em lugar de dispersar a atenção, como por vezes acontece, contribui para o adensar da trama e para a tornar mais coerente e diversificada. Tudo, como acima escrevi, muito bem escrito, de forma consistente, de forma surpreendente e de forma estimulante, com Millar a encontrar, uma e outra vez, caminhos - inesperados ou expectáveis - que vão dando corpo e estruturando um universo novo, sobre o qual queremos saber mais e mais.
Se a narrativa seria igualmente boa em qualquer registo que se possa considerar - e podemos imaginá-la com outros aspectoa em função das várias capas variantes incluídas nos extras da edição - Franq Quitely mostra-se a escolha ideal e eleva-a ainda mais com um registo - que há uns anos eu talvez classificasse como ‘mais europeu que americano’ - baseado num traço fino e elegante, muito realista e servido por belíssimas cores, cujos tons vão variando em função das exigências do relato e que o formato deluxe da G. Floy intensifica. Sem pôr de lado a importância dos cenários - tão pormenorizados ou despojados quanto é necessário - Quitely centra a força narrativa do seu desenho nas personagens - nos grandes planos, na força das expressões faciais ou na expressividade da postura corporal - num exercício gráfico que é bem mais complicado do que parece, mas cujos resultados práticos estão bem à vista do leitor.
Único senão nisto tudo - ironicamente, claro - é que se parti para este primeiro tomo de O Legado de Júpiter (praticamente) sem expectativas, elas estarão num patamar (muito) elevado quando, previsivelmente ainda antes - só? - do Verão, abrir o segundo tomo…

O Legado de Júpiter
Livro Um: Luta de poderes
Mark Millar (argumento)
Franq Quitely (desenho)
Peter Doherty (cor, design)
G. Floy
Portugal, Janeiro de 2018
168 x 260 mm, 136 p., cor, capa dura
14,00 €

(imagens disponibilizadas pela editora; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

7 comentários:

  1. Estive a ler a wikipedia e não fiquei a saber o que queria.
    Isto termina no volume 2 ou a coisa fica completamente aberta para continuar "indefenidamente"?

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    Respostas
    1. Neste momento já saiu o segundo volume da série, mas não está definido ainda quantos volumes serão no total. Até agora, estava planeado para um volume por ano, mas esteve longe dessa regularidade, mas com a compra da Millarworld pela Netflix acredita-se que haverá mais meios para "regularizar" os prazos de lançamento.

      Existe também uma série paralela, de que já saíram também dois volumes - Jupiter's Circle - que conta as histórias das personagens da primeira geração nos anos 50 e 60. Planeamos lançar o primeiro volume dessa série no final do ano.

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    2. Obrigado JoseFreitas. É sempre bom quando os editores respondem a questões, mais a mais num local não oficial como é o blog do Pedro Mouta.

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    3. Pedro Mouta?!?
      Queres ver que me compraram o blog e eu não sabia...
      Boas leituras, mas com melhorias no que diz respeito aos nomes!

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    4. sorry :-(

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  2. Aguçou minha curiosidade para ler!

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  3. "não, não desistam já, leiam mais um pouco"
    Lamento Pedro, parei mesmo aí.

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