Por vezes, quando abrimos um álbum ou (cada vez menos…) uma revista de BD, esquecemos todo o trabalho editorial que esteve por detrás do que nos chega às mãos, quase nos parecendo que ela surgiu de geração espontânea ou por obra de um qualquer génio - e alguns até o são, mas…
Mas... mas o argumentista teve de escrever/riscar/corrigir/reescrever/ajustar e o desenhador teve de procurar referências, fazer esboços, apropriar o traço, mudar cenários, enquadramentos, poses, o colorista teve de...
Um dos artigos da Revista do Clube Tex Portugal deste semestre - já o décimo-quarto desta publicação que explora o mundo de Tex em particular e o universo do western em geral - possivelmente aquele que mais despertou a minha atenção, intitula-se Os Tesouros da Via Bunarroti (onde fica a sede da Sergio Bonelli Editore) e refere uma série de originais lá existentes - ou perdidos ao longo dos tempos - cuja publicação, por uma razão ou por outra, foi recusada pela editora.
E, onde escrevi ‘uma razão ou outra’, leia-se maioritariamente dois motivos: o desvio às normas instituídas para as aventuras do ranger ou a falta de qualidade dos artistas. Ou, no mínimo, a inadequação do seu traço para o género em causa.
[Numa revista que é um bom exemplo de tentativa/erro/melhoria em curso de publicação, que para mais, recentemente sofreu alteração de grafista - e de grafismo - os passos dados têm contribuído para a tornar mais legível e arejada, sendo de referir a utilização de cor(es) nos fundos das páginas como forma de identificar os diversos artigos. E já que esta referência à revista se tronou mais longa do que tinha pensado, fica a nota de que este número volta a incluir a secção A minha prancha de Tex (desta vez com a escolha de Fabio Civitelli) e, entre outros, os artigos Stefano Andreucci, destinado a Tex! (sobre o percurso do autor das duas capas), Até sempre mestre Ennio Morricone e As memórias de Giorgio (sobre o seu pai, Sergio Bonelli).]
Finda esta variante ao tema, inicialmente inexistente, retomo a ideia acima expressa para referir que uma das histórias que não deveria ter passado no crivo da editora Bonelli é A Voz do matador, um dos cinco relatos incluídos no Tex Edição Especial Colorida #16, pois nela o traço clássico e sujo do veterano George Trevisan, surge estático, pouco expressivo, demasiado rígido e com claras dificuldades no tratamento da figura humana, especialmente ao nível dos rostos que por vezes parecem ‘colados’ nos pescoços, acabando por tornar penosa a leitura de uma ideia base que também está longe de ser original.
Isto reforça a ideia que aqui já expressei outras vezes, de que esta publicação - a italiana Tex Color - é como um laboratório experimental para testar argumentistas e desenhadores que eventualmente aspirarão a entrar nos ‘quadros’ do ranger, pois nela, a par de criadores de créditos firmados - como até é o caso de Trevisan ou de Boseli e Font que abrem este número com Teton Pass, mais um relato (quase) sem Tex, com Kit Carson a assumir as rédeas dos acontecimentos - surgem nomes novos na bibliografia do ranger, claramente para (de)mo(n)strarem a sua arte e a sua capacidade de trabalho - factores fundamentais para uma série de ritmo mensal, onde apesar da sucessão de artistas, não se admite baixar o elevado nível de qualidade gráfica que, note-se, sempre foi uma nota distintiva nas edições Bonelli.
O experimentalismo que caracteriza esta publicação revela-se - a níveis diferentes - em duas das outras histórias para ela seleccionadas. A primeira, Cuidado com o lobo!, assinada por Serra e Mandanici (mais uma desenhadora a trabalhar em Tex), é uma das raras narrativas mudas nos mais de 70 anos de vida do herói - embora em ternos de argumento, tal como no caso já citado atrás, recupere uma premissa recorrente na BD (e não só): o auxílio a um animal selvagem que posteriormente devolve a ajuda, bem servida por um traço expressivo e uma planificação que parece cristalizar momentos: um gesto, um olhar, um movimento brusco... Quanto à segunda, é também uma raridade na cronologia texiana, mas por motivos díspares, pois é obra de autor único (!), no caso Majo que, no que diz respeito ao argumento consegue dar corpo a uma narrativa típica das histórias do ranger, encorpada e com bastante consistência, que até ‘soa’ maior do que a trintena de páginas disponíveis; no entanto, a nível gráfico mostra-se uns furos abaixo do que as aventuras do ranger (normalmente) exigem, quase me atrevendo a escrever que só foi publicado porque a cor ajudou a disfarçar as (evidentes) limitações de um traço ‘indeciso’ entre o realista e o semi-caricatural.
Para o fim - sem motivo específico - ficou a história que melhor assume o espírito tradicional do ranger: um herói solitário, decidido e imbatível, que não hesita em fazer justiça pelas próprias mãos - afinal o que a maioria dos seus leitores procura. Tal como na BD de abertura,Uma armadilha para Kit é também uma narrativa (quase) sem Tex, uma vez que o protagonismo está entregue a Kit Willer, que aqui passa bem pelo progenitor! Sem grandes originalidades - Kit é capturado por bandidos que decidem usá-lo para atrair o ranger - está escrita de forma sólida por Burattini, que inclui dois pormenores atípicos mas bem imaginados no seu desenvolvimento, que contribuem para dotar Kit daquela aura quase irreal que orna o seu pai. No desenho, o traço seguro e dinâmico de Della Monica, bem servido por um colorido vivo, sem descaracterizar os tons típicos do velho Oeste, realça o tom acelerado do relato e deixa a certeza que se a história fosse publicada a preto e branco brilharia de igual forma.
Revista
do Clube Tex Portugal #14
Fabio
Civitelli, Giorgio Bonelli, Hernâni Portovedo, Jesus Nabor Ferreira,
João Marin, José Carlos Francisco, Mário João Marques, Moreno
Burattini, Pedro Pereira, Rui Cunha e Sandro Palmas
Clube Tex Portugal
Portugal, Junho de 2021
210 x 290 mm, 52 p., cor, capa mole,
semestral
Exclusiva
para sócios do Clube Tex Portugal
(condições de assinatura disponíveis aqui)
Tex
Edição Especial Colorida #14
Mauro
Boselli, Antonio Serra, Moreno Burattini, Fabrizio Accatino e Mario
Rossi (Majo)
(argumento)
Alfonso
Font, Patrizia Mandanici, Raffaele Della Monica, Giorgio Trevisan e
Mario Rossi (Majo)
(desenho)
Oscar
Celestini (cor)
Alessandro
Piccinelli
(capa)
Mythos
Editora
Brasil,
Fevereiro de 2020
160
x 210 mm, 160 p., cor, capa mole
R$
29,90
(capas disponibilizadas pelas editoras; pranchas disponibilizadas pela Sergio Bonelli Editore; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)
Sem comentários:
Enviar um comentário