Os múltiplos sons do silêncio
Já
abordei aqui, sob vários prismas, a série Armazém
Central
- uma das grandes séries de BD deste século, sobre a vivência
quotidiana numa pequena aldeia do Quebeque, no início do século XX,
e sob os efeitos da chegada da dita civilização moderna - mas
perante a sua reedição pela Arte de Autor, sinto-me na obrigação
de fazer
nova chamada de atenção, para que o máximo de autores a possam
conhecer.
Mesmo
sabendo que já atempadamente escrevi aqui no blog sobre o volume #2
Serge e sobre o volume #3 Os
homens,
a
recente chegada às livrarias do díptico que os contém leva-me,
desta
vez, a
escrever
sobre silêncios.
O que até poderá parecer estranho, quando há em Armazém Central páginas com mais de 20 balões de texto - quase sempre diálogos. E que diálogos! Vivos, credíveis, directos, capazes de exprimir muito em poucas palavras. É uma das notas distintivas desta obra-prima de Loisel e Tripp, mas não são deles que me ocupo hoje.
Prefiro, desta vez, abordar os silêncios. Porque, ao longo dos volumes, surgem de forma recorrente uma, duas, três pranchas, completamente mudas ou quase que, no entanto são muito mais eloquentes do que todas as conversas que os autores pudessem fazer as suas personagens manter ou do que longos textos descritivos.
Vejamos um exemplo: nas páginas 18/19 deste livro (aqui ao lado), Serge vai matar um porco. A prancha abre com uma cena bucólica: no meio de uma rua da aldeia, um cavalo atrelado a um pequeno trenó, um pato e uma galinha a procurarem restos de vegetação por entre a neve… De repente, sai um porco disparado de um barracão. Montado nele, apavorado, está o padre da aldeia e a reboque, a segurar a corda que devia prender o porco - arrastado por ele, na verdade - vem o pobre Serge. O padre mergulha na neve, o porco afocinha por cima dele, Serge aterra logo a seguir. O que aqui necessitou de todas estas linhas, para uma descrição sumária que se absteve de sinalizar expressões, gritos e reacções, a Tripp e Loisel levou apenas 5 singelas vinhetas, extremamente poderosas na sua capacidade narrativa. A situação prolonga-se depois pela página seguinte, com cuidados redobrados por parte dos aldeões e a matança tem finalmente lugar. E o seu efeito iniciador para Serge cumpre-se. Em silêncio. Eloquente.
Se aqui impera o humor, com um fait-divers divertido que faz avançar a acção e a inclusão de Serge na aldeia, mais à frente, nas páginas 130/131, a intenção é outra. Face à previsível próxima partida de Serge, Marie quer a todo o custo retê-lo. Para isso, vai usar as ancestrais armas femininas: a sedução, o seu corpo. Vêmo-la ao espelho, a avaliar-se, indecisa em dar um passo que há 100 anos era extremo, hesitante no abrir da sua porta, mais ainda no bater à de Serge. Esta abre-se, aquele fica surpreendido, o decote de Marie parece abrir-se convidativo, a vergonha natural dá lugar ao olhar ansioso pela resposta alheia. Depois de um curto diálogo, Serge fecha a porta, a custo, acabrunhado, curvado pelo peso da sua decisão - pelo seu efeito devastador em Marie, pelo peso do passo que teve de dar.
Mais uma vez, duas páginas, 17 vinhetas, disseram imenso, transmitiram sucessivas emoções, foram de uma intensidade dramática que muitos parágrafos dificilmente atingiriam. E prolongam-se, ao longo de mais cinco páginas, igualmente quase mudas, que retratam o alargar do fosso entre Marie e Serge e a aparente inevitabilidade da tomada de algumas decisões difíceis.
Estes dois exemplos - entre muitos que a série tem - aqui emocionalmente de efeitos contrários, noutros casos para realçar acções, ilustrar a passagem do tempo ou revelar sentimentos - ao mais diversos - são outro dos aspectos distintivos da qualidade de Armazém Central e algo que justifica plenamente uma segunda leitura dos livros, concentrada nesses silêncios.
Nota final
Em cerca de 10 meses, a Arte de Autor publicou os primeiros 5 volumes de Armazém Central. Começou pelos primeiros inéditos - o #4 Confissões e o #5 Montreal, (muito bem) reunidos num volume duplo - e reeditou entretanto os três tomos iniciais - que a ASA já tinha publicado há quase 20 anos. Porque os leitores pediram, porque a editora sentiu a falta deles no mercado, porque… Seja como for, já não há desculpas ou medos de que a série fique incompleta, para não apostar em Armazém Central.
...e com o díptico #6/#7 a sair no último trimestre deste ano, tudo indica que até à próxima Primavera teremos a totalidade dos 9 volumes da série para ler em português. Por favor, não percam a oportunidade…
Armazém
Central #2
Serge
/ #3 Os homens
Régis
Loisel e Jean-Louis Tripp (argumento e desenho)
François
Lapierre (cores)
Arte
de Autor
Portugal,
Julho
de 2021
227
x 302 mm, 152
p., cor,
capa dura
29,00€
(capa disponibilizada pela Arte de Autor; clicar neste link para ver algumas pranchas ou nas imagens aqui mostradas para as aproveitar em toda a sua extensão)
Sem comentários:
Enviar um comentário