Destruir o seu próprio universo
Para um autor - ou vários, como geralmente acontece na banda desenhada - no âmbito de uma série, uma das coisas mais difíceis é construir um universo que, a um tempo, faça sentido, seja coerente e crie habituação no leitor para que, a cada novo regresso, saiba o que esperar.
Em Reckless, série policial e sociológica, ambientada na década de 1980, numa Los Angeles solarenga mas muito negra, criada pelo argumentista Ed Brubaker e o desenhador Sean Phillips, esse universo é até muito curto, cingindo-se a duas personagens, Ethan, um detective privado, e Anna, a sua ajudante e amiga, que têm como localização - e paixão - uma velha sala de cinema onde projectam filmes antigos.
Por isso, quando o terceiro livro, Destruir todos os monstros, recém-lançado pela G. Floy, abre com o cinema a ser pasto das chamas e os protagonistas em risco de vida e, de seguida, dando um salto temporal ao passado, Ethan refere que vai contar como o vínculo entre os dois, feito de cumplicidade e gostos comuns, se quebrou, a primeira sensação do leitor é que os autores o convidam a assistir à destruição do seu próprio universo. Sensação que se torna mais próxima e premente, quando Ethan aproveita para narrar como os dois se conheceram, numa estratégia de consolidação do universo que aparentemente choca com o rumo inicial de Destruir todos os monstros.
Como habitualmente conduzida pela narração em off de Ethan, a narrativa vai avançando com a separação em pano de fundo, enquanto decorre uma investigação sensível, que aparentemente tem por base também questões raciais e que envolve ambições políticas, investimentos imobiliários pouco claros, negócios à margem da lei e uma imensa teia de corrupção, chantagem e vícios à solta.
Brubaker, com a escrita assertiva que lhe é reconhecida, faz avançar pausadamente a trama, acentuando a fragilidade psicológica em que Ethan se encontra devido ao novo rumo que Anna decidiu imprimir à sua vida, o que cria uma dualidade que enriquece e humaniza a narrativa e mostra como, por vezes, sem saber, estamos tão dependentes de algo ou de alguém.
Obviamente, com a mente ocupada pela sua situação pessoal, falta-lhe a clareza necessária para tomar as decisões que vão levar ao retomar da situação-limite com que o volume abre.
E, quando no final, parece que o universo de Reckless reentrou nos eixos, os autores decidem lançar nova bomba, anunciando para um futuro indefinido a história de como a vida de Anna ‘não foi tão longa quanto devia ter sido’...
Reckless:
Destruir todos os monstros
Ed
Brubaker (argumento)
Sean
Phillips (desenho)
G. Floy
Portugal,
Outubro
de 2023
180 x
275 mm, 144 p., cor, capa dura
20,00 €
(versão revista do texto publicado no Jornal de Notícias online a 27 de Outubro de 2023 e na edição em papel do dia seguinte; imagens disponibilizadas pela G. Floy; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as apreciar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre o tema destacado)
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