Depois
de Como Antes
(edição portuguesa da Devir, 2022), em que recordava uma pungente
viagem entre França e Itália para levar as cinzas do pai à sua
terra natal, Alfred está de volta
ao nosso mercado
com Maltempo,
o segundo tomo da sua "trilogia italiana", de novo com o
mesmo selo editorial.
Giovanni e Fábio são irmãos. Não se vêem há uma década, desde
que o segundo partiu - fugiu? - de Itália, deixando para trás
família, namorada, amigos e problemas. Quando
abrimos o livro, no início dos anos 1960, reencontram-se após um
combate de boxe de Fábio. Sem emoções visíveis, sem alegria nem
conforto; apenas dois homens - dois irmãos… - que guardam mágoas
e rancores que o tempo não apagou nem fez esquecer e que rapidamente
vêm ao de cima.
Oliver Ka (argumento) Alfred (desenho) Delcourt (França, Setembro de 2006) 204 x 264 mm, 112 p., cor, cartonado com sobrecapa com badanas
Olivier Ka viveu a infância e adolescência entre uns pais libertários e permissivos, defensores do sexo livre, e uns avós católicos praticantes conservadores, dividido, assim, entre dois mundos - e em temas como Deus, religião, igreja ou sexo. Aos 12 anos vai para um acampamento de férias dirigido por Pierre, um padre de esquerda, amigo dos pais - e seu amigo - que o levará (forçará…) a tocar o seu corpo. Apenas. Apenas ou tudo isso, o ponto de vista pode divergir. O nome apropriado é pedofilia e a actualidade, infelizmente, mostra que este esteve longe de ser um caso isolado. Aquela experiência, embora breve, será profundamente traumatizante, embora só se aperceba quanto muitos anos depois. Para a apagar da sua memória - para exorcizar os seus fantasmas - teve que "matar" Pierre. Não literalmente, mas através de um texto auto-biográfico. Que, com Alfred, transformou nesta banda desenhada. Que também serve para isso. Esta é uma história pudica e sensível, sobre uma infância traída e feridas não cicatrizadas, narrada de forma íntima e pessoal, com Alfred a gerir de forma notável o estilo do traço, a planificação e as cores consoante as situações relatadas, numa sublime e rara simbiose entre texto e desenho. Uma obra que, começando nos 7 anos de Olivier, vai até à apresentação do projecto de livro a Pierre, num encontro inesperado e doloroso, desenhado de forma tocante, que permite a Olivier (re)encontrar a paz interior. Aos 35 anos.
(Versão revista do texto publicado no Jornal de Notícias de 29 de Outubro de 2006)