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25/02/2011

Delcourt, 25 anos

A editora francófona Delcourt completa 25 anos em Maio próximo. Algo difícil de imaginar para quem olha para o mercado nacional (de BD).
25 anos de um trajecto de sucesso, se não ímpar, pelo menos raro. Possivelmente porque, à sua frente, está Guy Delcourt, desde a infância apaixonado por quadradinhos, fantástico, aventura e cultura contra-corrente.
Jornalista de profissão, em 1986, quando a BD enfrentava uma violenta crise económica, decidiu fundar a sua própria editora, para explorar novas ideias - criação de pontes com a música, o cinema, a pintura, a literatura, novos conceitos de BD infantil - a par da aposta no manga e nos comics de autor.


Deste percurso, longo e apaixonante, ressaltam alguns números:
- 25 anos de vida
- 2004, ano em que foi editado o 1000º álbum com o selo Delcourt
- 3ª maior editora francófona de BD
- 118 %, o crescimento do valor de vendas entre 2003 e 2010
- 42 000 K€, o seu volume de negócios
- 44 nomeações para os prémios de Angoulême
- 400 000 exemplares vendidos de Happy Sex, o seu best-seller
- 2 000 000 exemplares vendidos da série Les Blagues de Toto
- 33 álbuns recenseados em As Leituras do Pedro (!)

Para assinalar a efeméride, a par da manutenção da actividade editorial regular (o mais importante), eis algumas das iniciativas mais mediáticas: um concerto de desenhos em Angoulême, uma exposição no Centre Belge de BD (até 29 de Maio), tiragens de luxo de alguns álbuns ao longo do ano - Jour j7, Sillage #14, De Cape et de Crocs #10, Golden City #9 e Le Chant des Stryges #14 - e edições especiais de 12 obras (algumas das quais hei-de trazer aqui) que, “pela sua qualidade e pela sua audácia” marcaram o percurso da editora – L’Origine, Happy Sex, Donjon Monsters #10, Pourquoi j’ai tué Pierre, New York Trilogie, From Hell, Les Mauvaises Gens, Trois Ombres, Chroniques Birmanes, Île Bourbon 1730 et Ayako.
Agora 25 anos depois, como leitor regular dos seus títulos, mais do que muita verborreia – que acho mais útil substituir para um convite para visitar o seu site – ocorrem-me três palavras: Parabéns, obrigado, continuem!

17/01/2011

Conventum

Pascal Girard (argumento e desenho)
Delcourt (França, 5 de Janeiro de 2011)
147 x 210 mm, 160 p., pb, brochado com badanas

13,50 €

Resumo

A vida tranquila de Pascal Girard, no Quebeque, sofre uma reviravolta ao receber um convite para participar num encontro com os antigos colegas de liceu, 10 anos depois.
Sentindo-se, gordo, envelhecido, desleixado, tem quatro meses para mudar a sua imagem e apresentar-se como um ganhador.

Desenvolvimento
“Instituição” em voga nos EUA (e no Canadá), os encontros com antigos colegas (o tal “conventum” do título, termo utilizado pelos canadianos para designar este tipo de reuniões), não têm muita expressão entre nós.
O que de certa forma se compreende porque, se por um lado permitem o reencontro entre pessoas que há muito não se vêem, apesar de terem passado juntas uma fase importante da vida, por outro (na maior parte dos casos?), servirão apenas para o reencontro com velhos ódios, relembrar momentos embaraçantes, confirmar como se envelheceu mal e verificar como ficaram por cumprir tantos sonhos e objectivos. Até porque, as relações que interessavam, foram com certeza mantidas.
É por (tudo) isso, aliás, que a primeira decisão de Pascal é recusar o convite e manter a sua vid(inh)a desinteressante mas (relativamente) sossegada, dividida entre a relação (complicada) com a companheira, as obsessões quotidianas, o medo do que é novo ou diferente. Só que, um (surpreendente) mail de Lucie, antiga paixão (platónica porque nunca declarada) do liceu, propondo irem juntos para o encontro, reacende antigos desejos e fá-lo decidir-se a ir.
Começa então para Pascal uma corrida contra o tempo, passada em stress constante, para perder peso, mudar o visual, comprar novo guarda-roupa… Esquecendo que o principal, o interior, é bem mais difícil de mudar. E mesmo o exterior…
Como acabará por descobrir durante o “conventum”, numa noite para esquecer, em que tudo lhe corre mal e na qual (surpreso?) verifica que os colegas – ao contrário da ideia que ele tinha de si próprio (!) – sempre o consideraram um perdedor. Por isso, talvez, as melhores recordações das horas lá passadas parecem ser do tempo que passou com… a cozinheira. A conversar, entenda-se, ou, melhor ainda, a ser enxotado por ela da cozinha, pese o facto de ser a única a demonstrar alguma compreensão por ele…
Isto, num relato longo e detalhado, em que os momentos negativos se sucedem: Lucie acaba por não aparecer, esqueceu de fazer (e pagar) a marcação, tem que ir no camião do pai, leva vestido o casaco (apertado) do irmão e calçadas meias rotas desfeitas no jogging que com afinco praticou dia-a-dia, os seus óculos partem-se, os antigos companheiros ignoram-no ou só recordam os momentos que Pascal fez por esquecer, a sua profissão (incompreendida) de desenhador destoa com as carreiras de “sucesso” feitas pelos colegas na construção civil ….
Profissão que lhe serve, pelo menos, para nos narrar cinco meses da sua vida, com um traço fino, suficientemente expressivo e pormenorizado q.b., que serve de base a uma narrativa maioritariamente depressiva e derrotista, contrastada por alguns momentos de humor bem conseguidos. Que, no entanto, são insuficientes para amenizar um relato demasiado longo e pormenorizado, que valoriza e explora aspectos que, podendo ser importantes para o autor/per-sonagem, o são menos para o leitor. Um dos problemas, aliás, que afecta, por vezes, a BD autobiográfica.

A reter
- O bom domínio do ritmo narrativo por parte de Girard, apesar do que atrás fica escrito. O problema da narrativa não é o seu ritmo, mas a sua extensão, a exploração demasiado minuciosa de alguns momentos ou situações.
- A dureza (realismo?) do (auto-)retrato de Girard, apresentando-se não só como um anti-social constantemente angustiado, mas também rude, antipático e mal-educado, que nunca desperta qualquer tipo de simpatia no leitor ao longo de todo o relato. Em resumo, alguém que não interessa, de todo, conhecer.

Menos conseguido
- A extensão do relato que, apesar de algum humor que desarma o seu tom quase catastrófico, o torna aborrecido a espaços. Porque a preparação e o reencontro com antigos colegas é uma linha condutora demasiado frágil para sustentar centena e meia de páginas.
- A total ausência de delimitação das vinhetas porque torna um pouco confusas algumas passagens, embora tenha o efeito de tornar menos pesadas a maioria das pranchas.

Curiosidade
- O site de Pascal Girard.

20/10/2010

Snuff #1 – La mélodie du bonheur

Philippe Nihoul (argumento)
Xavier Lemmens (desenho e cor)
Delcourt (França, septembre 2010)
240 x 320 mm, 48 p., cor, cartonado)

Resumo

Ethan Fargo vive desiludido desde o acidente em que perdeu a mulher e a filha. Arrasta-se pelas ruas de Brooklyn proclamando o seu ódio aos pombos e ao golfe e tendo como único centro de interesse as comédias musicais.
Mas tudo vai mudar no dia em que, (não) por acaso, se vê envolvido roubo num estranho e violento.

Desenvolvimento
Este não é um álbum para ser levado a sério – linearmente – porque falha no argumento, que tem alguns pontos obscuros. Desde logo e principal : o que leva Ethan a ser escolhido e a aceitar a missão que lhe é proposta? Pontos obscuros que poderão vir a ser (ou não) esclarecidos nos dois restantes tomos previstos.
De qualquer forma, merece ser lido porque a sua história, desbragada e muitas vezes divertida é, antes de mais, uma homenagem/piscar de olhos a realizadores como Tarantino, ao policial negro tradicional, a uma certa cultura – actual e muito presente a diversos níveis – de hiper-violência. Por isso, preparem-se leitores para muitos tiros e cenas violentas, com destruição a rodos e cérebros, braços e pernas a explodir. Num relato que - ironia maior… - tem como base um ‘snuff movie’ - filmes, geralmente artesanais, com cenas reais de tortura e assassinato, filmados de modo cru, sem quaisquer efeitos especiais.
A emoldurar tudo isto, está uma interessante – apesar de baseada em estereótipos reconhecíveis… - galeria de personagens. O protagonista, Ethan Fargo, é alguém que bateu no fundo e não tem vontade nem motivos para voltar à superfície, que desperdiça o seu tempo lançando bolas de golfe para o mar, insultando os pombos que pousam no beiral da sua janela ou vendo comédias musicais, a única coisa que ainda o anima (e faz viver ?).
A meio do álbum, primeiro envolto num manto de mistério, depois revelando-se (ou será que o argumento ainda nos vai surpreender por aqui ?), surge Alejandro Gutierrez, ex-membro proeminente de uma ditadura da América Latina cuja filha enveredou por veredas revolucionárias e acabou como protagonista involuntária do tal snuff movie; por isso, Guttierrez, magnata sem escrúpulos, pretende contratar Ethan para o vingar, tendo começado por apagar o seu passado e dar-lhe uma nova identidade.
Ao seu serviço (será… ?) está ‘Ismael’, o assassino impiedoso e violento que fala por citações bíblicas e se apresenta como anjo protector de Ethan, desenrascando-o por mais de uma vez. E que, a espaços, parece até mais (talhado para) protagonista do que Ethan.
Em segundo plano, mas com papéis relevantes em cenas específicas, surgem dois meliantes trapalhões e pouco dotados, o dono e o amigo da loja de DVDs que Etah frequenta e um tenente da polícia da tal ditadura latina, habituado a trabalhar ao ritmo do cassetete e dos subornos.
Com eles, de forma sarcástica e mordaz, onde se multiplicam referências e piscadelas, Nihoul desenvolve uma história desenvolvida em ritmo moderado – para dar tempo para a violência crescer e o sangue jorrar?! – suficientemente divertida e interessante para dar vontade de (pelo menos) ler o próximo tomo.
O traço de Lemmens, primeiro motivo para me interessar pelo álbum, é uma linha clara dinâmica mas angulosa, que tem por base uma planificação tradicional, mas com a qual o desenhador consegue transmitir o ritmo desejado. E onde se encontram alguns bons achados como o tratamento gráfico de Ismael ou o bom trabalho ao nível da cor, baseada em tons maioritariamente frios, mesmo quando predominam os vermelhos e os amarelos, bem utilizada para definir e destacar em cada pranchas apenas os pontos fulcrais.

A reter
- Confesso-me fã deste género de traço, uma espécie de linha clara dura que evoca o grande Serge Clerc, embora sem a sua elegância.
- O humor dos diálogos, bem conseguidos.
- Posso enganar-me, mas este tríptico ainda reserva algumas reviravoltas surpreendentes.

Menos conseguido
- Pode vir a ser explicado nos dois tomos previstos para a conclusão de Snuff ou até ser desnecessário tendo em conta o espírito do relato, mas neste primeiro volume as razões para a escolha de Ethan como braço vingador e a sua aceitação da tarefa são de todo obscuras e até pouco credíveis.

Curiosidade
- É bastante estranho nos dias que correm, mas para além das (poucas) cenas em que a filha de Gutierrez é torturada e morta e de figurantes completamente anónimas que apenas servem para preencher umas poucas vinhetas, nas páginas de Snuff – até agora - não há uma única personagem feminina.

06/10/2010

Local

Brian Wood (argumento)
Ryan Kelly (desenho)
Delcourt (França, Setembro de 2010)
173x264 mm, 328 p., pb, brochado com badanas


Resumo

Local é um “road-book” que conta as viagens de Megan McKeenan através dos Estados Unidos, de um extremo ao outro do continente. E que, narrando a sua história – excertos dela, pelo menos – narra também a história das personagens com quem a jovem se cruzou.

Desenvolvimento
A vida de Megan é estranha. Reflexo, com certeza, de muitas outras vidas, de muitas outras jovens norte-americanas (ou ocidentais) sozinhas em busca de um futuro e de descobrirem quem são.
Incapaz de criar raízes, de estabelecer relações – profissionais, de amizade ou com o sexo oposto – estáveis e duradouras, colecciona profissões menores e sem futuro, cursos inacabados e locais de vida, uns após outros, à medida que sente o vazio apoderar-se de si. Ou que as histórias que quis viver, começam a aproximar-se demasiado daquilo que geralmente se define como “vida normal”, com a devida dose de responsabilidade, compromisso e dedicação.
Por isso, erra pelos Estados Unidos, mostrando-nos tanto cidades grandes como pequenas, revelando num retrato breve delas os seus estereótipos (menos) e especificidades (mais), cruzando-se com gente normal e outra que nem tanto.
Entre os 20 e os 30, bonita sem deslumbrar, envelhecendo e amadurecendo ao longo do relato, Megan junta, sem dúvida, histórias suficientes. Algumas bem bizarras, para um dia contar aos seus netos. Ou não, porque não parece ser esse um dos seus objectivos de vida e algumas estão longe de ser apropriadas para crianças.
Ela - como nós – parece desconhecer o que procura. Ou aquilo de que foge… Descobri-lo-á, ao mesmo tempo que o leitor – após um longo périplo que a trará de novo ao ponto de partida. Menos jovem, mais madura, com mais certezas e muitas recordações. Boas e más, experiências de vida, umas procuradas outras surgidas do acaso. “Instantâneos de vidas, fragmentos”, define alguém quase no final do relato, que uma vez “organizados sequencialmente, fornecem uma história, maior do que a soma das diversas partes”. A história da vida de Megan, que fomos acompanhando mas que só faz sentido completo para ela.
Através de Megan, da(s) sua(s) história(s), publicadas originalmente ao longo de três anos, o argumentista Brian Wood traça um retrato aleatório de uma certa América e, em especial, da sua juventude. Uma juventude sem regras nem princípios, perdida em busca de orientação e modelos que a sociedade cada vez menos consegue fornecer. Um retrato contido e sensível, mesmo terno pode dizer-se, onde existe realismo e violência (mais psicológica que física, embora nas duas vertentes), amor e sexo, mas tudo de forma contida, sem gratuitidade nem o objectivo de chocar ou de vender, apenas elementos de vida(s) que ajudam a construir e consolidar a narrativa.
Nela, cada episódio, cada momento, se bem que alguns numa primeira leitura possam parecer “anormais” ou pouco credíveis, têm um propósito, um objectivo, fazem parte de um todo, falam de coisas importantes (do quotidiano, das relações e dos sentimentos dos seres humanos), sobre as quais importa reflectir. Sem afirmar que sabe tudo ou que detém verdades incontestáveis, antes de forma humilde e humana.
Falta falar do desenho de Ryan Kelly, contido, pormeno-rizado e agradável, feito não para deslumbrar mas posto ao serviço da extensa narrativa, pela qual nos leva – nos embala – sem quase darmos por isso.
Até aos episódios finais – que coincidem com o final da busca de si própria por Megan – magníficos, fortes e de grande impacto, notáveis na forma como aplicam no lugar todas as peças do puzzle que foram sendo fornecidas, congregando e moldando tudo o que ficou para trás, fornecendo o justo final para a tal “história de vida”.
Que aconselho vivamente a descobrir.

22/09/2010

Comment le cancer m'a fait aimer la télé et les mots croisés

Miriam Engelberg (argumento e desenho)
Delcourt (França, Fevereiro de 2007)
165x230 mm, 144 p., pb, brochado com badanas

Este é o diário da convivência da norte-americana Miriam Engelberg, com o seu cancro da mama, desde a sua descoberta, passando pelas diversas fases subsequentes: estados de depressão, desânimo, negação, raiva, operação, radioterapia, quimioterapia, etc.
O que surpreende nesta obra, servida por um desenho pouco menos do que incipiente, mas de leitura fácil e fluente, é a exposição total de Miriam, com os seus temores e as suas ansiedades, perdida perante a reviravolta que a doença provocou na sua vida, como numa primeira fase tentou ignorar a incontornável nova realidade, através de técnicas de "esvaziamento mental" (palavras cruzadas, consumo obsessivo de televisão) - e como viria a encontrar a via "salvadora" na realização de BD, quer enquanto terapia, quer enquanto realização de um sonho de sempre - a rejeição sistemática à religião (e principalmente aos "religiosos"), e expondo questões como o desconforto da operação, os vómitos, o (difícil) relacionamento com os outros, as relações sexuais, a escolha de uma peruca, etc.
Ao mesmo tempo, o tom da abordagem é cáustico e irónico, de um humor desconcertante, atenuando o peso do drama, sem, no entanto, lhe retirar o seu lado emocional e extremamente doloroso.
Miriam Engelberg faleceu em 2006 após a publicação do seu livro nos Estados Unidos.

(Texto publicado no Jornal de Notícias de 21 de Janeiro de 2010)

21/07/2010

Corps de pierre

Joe Casey (argumento)
Charlie Adlard (desenho)
Delcourt (França, Junho de 2010)
173 x 264 mm, 112 p., pb, brochado com badanas


Resumo

Tom Dare, músico, acabou de passar por um divórcio difícil que deixou marcas profundas. Bem como a descoberta de que a jovem com quem andava está grávida. Alguns dias mais tarde, ao acordar, sente um dedo inchado e adormecido. Na semana seguinte, aquela espécie de paralisia começa a estender-se ao resto do corpo: mãos, braços, pernas, troncos, ao mesmo tempo que o seu peso aumenta de forma brutal e inexplicável. Mesmo para os médicos que consulta, que apenas podem constatar que o seu corpo se está a transformar em pedra…

Desenvolvimento
Começa então uma corrida contra o tempo, em busca de uma solução para o estranho mal. E também em busca de soluções para os conflitos e relações interrompidas (para não escrever estragadas) que Tom foi espalhando: com a mãe, a ex-mulher, a jovem que recentemente engravidou…
Um tempo em que Tom vai acabar por se descobrir e também descobrir, finalmente, quem são os seus verdadeiros amigos, conforme este buscam auxiliá-lo – mesmo que por vezes contra a sua vontade – ou tirar partido – fama, dinheiro – da sua doença.
Um tempo que se revela curto, mas durante o qual Tom (re)encontra uma paz que, possivelmente, nunca conheceu antes.
Este é um relato dramático, em que o tom fantástico da ideia base rapidamente dá lugar a uma narrativa sobre relações humanas, que surpreende por ter como autores dois nomes ligados aos comics norte-americanos, Joe Casey (Uncanny X-Men, Adventures of Superman, G.I. Joe) e Charlie Adlard (Batman e Walking Dead).
O relato, com um curioso ponto de partida, está bem escrito, tem algumas surpresas e um ou outro bom achado – como a venda de “recordações do “homem-de-pedra” – prende e cativa e apesar do crescendo do seu tom trágico, consegue com um inesperado final pacífico e até relaxante, tocar o leitor.
O traço de Adlard, fino, quase só contornos, aqui e ali manchados com o cinzento da pedra em que se está a transformar o corpo de Tom, se não deslumbra, até porque tem alguns desequilíbrios e nalgumas vinhetas se revela falho de dinamismo e expressividade, globalmente cumpre o seu propósito.

28/06/2010

Le Poilu

Olivier de Rességuier (argumento e desenho)
Delcourt (França, Junho de 2010)
198 x 263 mm, 176 p., pb, cartonado


Esta é uma rocambolesca história, centrada na figura (cuja sombra ameaçadora está 8uase) sempre omnipresente, embora poucas vezes o vejamos na sua forma física) do Poilu (o barbudo), um misterioso assassino, saqueador, violador e ladrão cuja identidade e aspecto ninguém conhece pois aqueles que o viram não sobreviveram para o descrever. Este meliante, à frente de uma horda de guerreiros selvagens e violentos, engajados à força, impõe a lei do terror e do medo, assolando e incendiando todos os lugares habitados por onde passa.
Esta é também a história de dois vagabundos pouco recomendáveis, um gigante e um anão corcunda, que (por mera coincidência?) parecem seguir ou antecipar os passos do Poilu.
Esta é ainda a história de um estranho amor, entre o único sobrevivente – melhor, entre a cabeça (foi a única parte do corpo que escapou) do único sobrevivente - de um dos massacres do Poilu e uma jovem que, pensando o seu amado morto se tornou freira. Apesar das suas limitações –e de aparentemente o destino operar contra ela – a cabeça, que fala demasiado na opinião de muitos com quem se cruza, não desiste da busca pela sua amada.
Com estas personagens e algumas mais, igualmente estranhas e de difícil classificação, Rességuier constrói uma história a um tempo intrigante e divertida, que combina sonho, poesia e humor com cenas de perseguição, combate e acção, num tom que tem algo de teatral, de certa forma herdado da cena (realmente) passada no teatro, quase a abrir o livro, e assente em textos ricos e bem escritos, que muitas vezes obrigam a uma segunda leitura e cujo sentido absoluto só no final – que reserva (mais) algumas surpresas - se percebe.
Para o sustentar, Rességuier utiliza manchas de diferentes tons de cinzento que compõem as vinhetas preenchidas num traço fino, expressivo e envolvente – que por vezes (veja-se a capa) evoca um emaranhado (piloso…) que, se, é certo, nem sempre privilegia a legibilidade – por vezes é difícil distinguir os intervenientes -, contribui decisivamente para definir a atmosfera onírica e surrealista pretendida e para a originalidade deste relato.

28/05/2010

Ananke

Noirgaley (argumento)
Erwin Madrid (desenho e cor)
Delcourt (França, Maio de 2010)
226 x 298 mm, 48 p., cor, cartonado


Resumo
Lilou é uma menina de uns seis a oito anos que se sente sozinha, desde que a mãe está doente no hospital. Anita, é uma velha senhora, atacada pela artrite, que se sente cansada e também sozinha, apesar de continuar a gostar muito da vida.
O acaso vai fazer com que ambas vão à mesma praia, no mesmo dia, à mesma hora, acabando por se encontrar e partilhar uma estranha e longa viagem.

Desenvolvimento
Metáfora sobre a vida e aquilo que podemos fazer dela, mais do que aquilo que dela devemos esperar, Ananke – designação daquela que personificava o destino, a fatalidade, na mitologia grega - é um pequeno conto poético, possivelmente mais indicado para leitores (um pouco mais) maduros do que aqueles que contempla a colecção Jeunesse em que está integrada, apesar da sua simplicidade.
Nela, juntamente com Lilou e Anita, somos levados numa viagem iniciática (cuja razão para a partida no entanto não se percebe no relato), por uma dimensão desconhecida (aquela que poderá existir entre a vida e a morte?), por vezes maravilhosa, por vezes assustadora, que irá criar entre elas um forte laço e ajudá-las a tomar decisões e a escolher (novos) rumos para as suas vidas.
Narrativa linear, de tom leve, a que se pedia (alguma) emoção, Ananke tem como principal base de sustentação o desenho, claramente inspirado no cinema de animação, agradável e trabalhado digitalmente, ou não tenha o filipino Madrid trabalhado na Dreamworks em filmes como Shreck 2 e 3, Madagáscar ou Megamind.

28/04/2010

Incognito #1 - Projet Overkill

Ed Brubaker (argumento)
Sean Phillips (desenho)
Val Staples (cor)
Delcourt (França, Abril de 2010)
173 x 264 mm, 160 p., cor, cartonado


Resumo
Zack Overkill é um ex-super-criminoso, hiperviolento e amoral, que após a morte do seu irmão gémeo, Xander, decidiu denunciar os seus chefes à polícia, em troco de imunidade total e da participação num programa de protecção de testemunhas. Para isso, teve de se sujeitar a um tomar um medicamento que o priva das suas capacidades extraordinárias (força, impulso, desprezo pela morte…) devidas a um perigoso soro, e de assumir um emprego como arquivista num escritório banal.
No entanto, uma experiência com drogas, fá-lo recuperar os seus poderes, mas desta vez direccionando-os para fazer combater pequenos criminosos, como ladrões e violadores. Só que o seu regresso não passa despercebido às autoridades nem aos seus antigos empregadores, iniciando-se então uma caçada impiedosa na qual as vitimas colaterais não são importantes nem contadas.

Desenvolvimento
Escritor de (merecido) sucesso no meio dos comics de super-heróis, Brubaker tem aqui uma história que, podendo ser incluída no género, devido a alguns dos seus pressupostos – seres com super-poderes, embora sem nenhum protagonista conhecido, sociedades secretas, conspirações, sábios loucos - apresenta algumas diferenças fundamentais que a empurram mais para os terrenos do romance negro.
Desde logo pelo tom sombrio da narrativa e de (quase) todos os cenários em que ela se desenrola, para o que contribuem sobremaneira os tons escuros utilizados por Val Staples para pintar o traço agreste e duro de Phillips, não especialmente agradável mas eficaz e muito adequado ao contexto.
Depois, pela inclusão de cenas de sexo, moderadas quando avaliadas pelos padrões da BD europeia, mas nada habituais nos comics, e também pela violência extrema de algumas sequências, como a que surge logo na segunda vinheta, quando Overkill esmaga a cabeça de um homem contra uma parede.
Mas acima de tudo, o que marca a diferença e faz deste livro uma obra aconselhável, independentemente do género em que a queiramos classificar, é a forma como Brubaker coloca questões sobre a natureza humana, sobre o que leva um homem a tornar-se um criminoso, partindo da dualidade com que Overkill se debate, dividido entre a sua nova existência e a possibilidade de regressar ao passado, hesitante em manter a sua existência anónima e anódina ou regressar às primeiras páginas dos media, dividido entre continuar subjugado às forças que o controla(ra)m ou tentado a marcar o seu próprio percurso. E fá-lo especialmente através do uso da voz-off com que o protagonista narra grande parte da história, ao mesmo tempo que revela o seu interior torturado e tortuoso e o caos que a sua vida sempre foi.
Ao longo do relato, que avança a uma velocidade trepidante, sem tempos mortos nem momentos de reflexão, Zack Overkill vai-se cruzar com antigos aliados e inimigos e reviver acontecimentos (alguns dolorosos…) que julgava esquecidos para sempre, e vai ser obrigado a fazer escolhas, ao mesmo tempo que descobre segredos perturbadores sobre o seu passado e a sua origem, menos “normal” do que ele pensava.
Até ao final, incómodo, com algo de redentor mas também de passo em frente para o abismo, no qual a vitória do bem (?) fica ligada à sua incapacidade de controlar os seus impulsos violentos e destrutivos…

25/03/2010

Le dessin

Marc Antoine Mathieu (argumento e desenho)
Delcourt (França, Maio de 2001)
228 x 320 mm, 48 p., pb + cor, cartonado

Em "Le Dessin" tudo começa num cemitério, numa banal cena de um funeral. Banal, inevitável, mas custosa - são sempre difíceis os funerais. Neste, quem sofre é Émile, um pintor, pois o seu grande amigo, Édouard, deixou-o. Só. Sem os "passeios discursivos sobre o sentido da arte", sem "as controvérsias insensatas sobre as qualidades comparadas do mistério e do enigma"... Solidão que Marc-Antoine Mathieu retrata admiravelmente através das pinturas de Émile, no início de uma história, num preto e branco sóbrio mas marcante - às vezes opressivo - sobre presença e ausência.
Ausência mais presente quando a chegada de uma carta de Édouard surpreende Émile. Nela, o falecido convida-o a ir ao seu armazém de obras de arte escolher uma qualquer, para si, como última recordação da sua amizade. Após uma busca de muitas horas num "imenso armazém que parecia conter espécimes de todas as artes da humanidade", por entre obras "que lhe lembravam o olhar que Édouad tinha do mundo", a escolha recai - porquê? - "numa pequena gravura insignificante". Talvez porque o desenho "representasse o apartamento de Édouard" e tivesse um título "que o intrigava... ‘reflexão' ".
E a reflexão que Émile faz sobre o desenho, torna-se quase em obsessão. Por isso, recordado do gosto que o amigo tinha pelos enigmas, começa a analisá-lo ao pormenor, cada vez mais meticulosamente, reproduzindo - reflectindo - cada milímetro do desenho nos seus próprios quadros, numa busca incessante, iniciática, que se transforma na essência da sua existência, na sua única razão de ser, de viver, no seu destino, em que arte e vida se unem numa só realidade.
No final de uma narrativa poética e melancólica, no final, também, de uma vida de 'reflexão', de reflexões, também de reflexos - não é tudo o que fazemos e dizemos um reflexo, uma imagem da forma como vemos (reflectimos) o que nos rodeia? - Émile descobre – na cor, que nunca utilizou, para a qual o amigo o conduziu - o segredo daquele desenho - o desígnio da sua vida - que revela o seu lado infinitamente complexo e o seu lado infinitamente simples. Como também existe em tudo. Na vida.

Curiosidade
O álbum está divido em três capítulos - Le Dessin (O desenho), Le Destin (O destino), Le Dessein (O Desígnio) – cuja sonoridade é muito semelhante no original francês.

(Versão revista do texto publicado no Jornal de Notícias de 9 de Janeiro de 2002)

19/03/2010

Pourquoi j'ai tué Pierre

Oliver Ka (argumento)
Alfred (desenho)
Delcourt (França, Setembro de 2006)
204 x 264 mm, 112 p., cor, cartonado com sobrecapa com badanas


Olivier Ka viveu a infância e adolescência entre uns pais libertários e permissivos, defensores do sexo livre, e uns avós católicos praticantes conservadores, dividido, assim, entre dois mundos - e em temas como Deus, religião, igreja ou sexo. Aos 12 anos vai para um acampamento de férias dirigido por Pierre, um padre de esquerda, amigo dos pais - e seu amigo - que o levará (forçará…) a tocar o seu corpo. Apenas. Apenas ou tudo isso, o ponto de vista pode divergir. O nome apropriado é pedofilia e a actualidade, infelizmente, mostra que este esteve longe de ser um caso isolado.
Aquela experiência, embora breve, será profundamente traumatizante, embora só se aperceba quanto muitos anos depois. Para a apagar da sua memória - para exorcizar os seus fantasmas - teve que "matar" Pierre. Não literalmente, mas através de um texto auto-biográfico. Que, com Alfred, transformou nesta banda desenhada. Que também serve para isso.
Esta é uma história pudica e sensível, sobre uma infância traída e feridas não cicatrizadas, narrada de forma íntima e pessoal, com Alfred a gerir de forma notável o estilo do traço, a planificação e as cores consoante as situações relatadas, numa sublime e rara simbiose entre texto e desenho.
Uma obra que, começando nos 7 anos de Olivier, vai até à apresentação do projecto de livro a Pierre, num encontro inesperado e doloroso, desenhado de forma tocante, que permite a Olivier (re)encontrar a paz interior. Aos 35 anos.

(Versão revista do texto publicado no Jornal de Notícias de 29 de Outubro de 2006)

10/03/2010

Le tour du monde en bande dessinée #2

Igal Sarna (argumento)
Gipi, Erwann Terrier, Carlos Nine, Sonny Liew, Khamel Khelif, Vanessa Davis, Nick Abadzis, Mazen Kerbaj (argumento e desenho)
Rutu Modan (desenho)
Delcourt (França, Fevereiro de 2010)
226 x 298 mm, 112 p., cor, cartonado

Colectânea de histórias curtas, feitas por autores provenientes de Israel, França, Argentina, Singapura, Tailândia, Estados Unidos, Grécia e Líbano, comprova, mais uma vez, como a banda desenhada pode ser – é, sem dúvida! – uma arte plural e maior, que pode assumir todos os estilos, todos os géneros, todas as temáticas – documentário, reportagem, autobiografia, sátira política, poesia… - de acordo com a sensibilidade e a formação de cada um.
Por isso os israelitas Sarna e Modan abordam a (impossível) normalidade quotidiana em Israel e em Gaza, com (mais) um bombardeamento como pano de fundo e coelhos por toda a parte, na sequência da invasão dos territórios palestinianos no início do ano passado; Gipi põe dois mafiosos a comparar Berlusconi e Sarkozy, antes de (mais) uma execução; Terrier evoca os bons velhos tempos do bairro de Saint-Germain-des-Prés, quando era ponto de encontro de intelectuais, artistas e revolucionários; o argentino Carlos Nine elabora uma fábula política que tem a conspiração como tema; Vanessa Davis combina reportagem e autobiografia num relato sobre o Festival de Filmes Judeus de Palm Beach; Abazis aponta vantagens e inconvenientes de ser um cidadão do mundo sem/com várias nacinalidade(s); Khelif traça a (pungente) história de Mi Su, uma prostituta tailandesa, vendida duas vezes, pela mãe e a irmã; Liew, num relato em torno da própria criação, homenageia de forma curiosa alguns dos maiores autores de quadradinhos actuais; Kerbaj, desde o Líbano transforma em imagens um poema de Khaled Saghieh.
São formas, estilos, géneros, materiais, sensibilidades, educações diferentes, que marcam como se está na vida e como se faz banda desenhada,. Usando uma arte, a 9ª, uma mesma linguagem, a dos quadradinhos, para narrar quotidianos.
Como só em BD é possível fazer.

05/03/2010

Sutures

David Small (argumento e desenho)
Delcourt (França, Dezembro de 2009)
182 x 210 mm, 328 p., pb, brochado com badanas


Resumo

Autobiografia em banda desenhada, Sutures conta a infância e adolescência de David Small, a quem foi descoberto um quisto aos 11 anos, nos anos 1950, resultante de um tratamento intensivo com radiação, prescrito pelo pai, devido aos seus problemas de garganta, e que veio a resultar na perda das suas capacidades vocais.

Desenvolvimento
De uma (aparente) simplicidade desarmante, de leitura rápida, com longas sequências mudas e outras providas de muito pouco texto, Sutures conta diversos episódios da infância, adolescência e juventude de David Small, cartoonista em publicações como o New Yorker, o New York Times, o Washington Post, a Esquire ou a Playboy, mas mais conhecido como ilustrador de livros infantis.
Nesta estreia em banda desenhada, que não se adivinha pela mestria com que gere a planificação e o ritmo narrativo, grande parte dessa legibilidade extrema deve-se ao apuramento do seu traço, fino, por vezes esquemático, habituado que está a condensar o desenho o mais possível, apoiado em tons cinzentos dados a aguarela.
E é assim que nos conta a sua história, num claro exercício de exorcismo pessoal, em que vai saltando de episódio para episódio. Todos marcantes, todos com uma enorme carga emocional, a que o leitor não consegue ficar indiferente. Não que o tom seja de lamúria, lamentação ou de exposição gratuita, mas porque o simples desfiar dos acontecimentos impressiona.
A primeira memória – subtítulo original perdido nesta tradução francesa - começa aos seis anos. David mostra-se e à sua família, constituída por uma mãe, dona de casa de poucas palavras, sem paciência, autoritária e incapaz de expressar afectos – reflexo da sua própria experiência com a sua mãe e avó de David?-, um pai, médico especialista em raios X, quase sempre ausente, e um irmão mais velho, claramente preferido pelos progenitores. Uma família disfuncional, em que se sente deslocado, mergulhando por isso nos mundos imaginários que os livros e a sua imaginação lhe proporcionam, comunicando muitas vezes por desenhos. Motivos de sobra para que tenha crescido (quase sempre) solitário, cada vez mais introvertido, mergulhado em silêncio – num triste prenúncio do que o destino lhe reservava. Uma existência difícil em que os únicos oásis foram o (pouco) tempo que passou com o avô materno, durante férias sazonais em que acompanhava a mãe.
Nascido com problemas digestivos e respiratórios, de constituição débil, David desde pequeno foi muitas vezes sujeito pelo pai a injecções e tratamentos com raios X – algo vulgar nos anos 1950 – o que viria a ter consequências funestas, que começariam a revelar-se, por volta dos 11 anos, quando lhe surgiu um quisto, supostamente sebáceo, no pescoço, deixado pelos pais para tratar mais tarde, “quando houvesse dinheiro”. Dinheiro que começou a entrar e a sair num autêntico corropio, gasto em remodelações na casa, novos electrodomésticos, carros mais luxuosos e festas com os amigos.
Novo salto, até aos 14 anos, quando finalmente o quisto foi extraído e acabou por se revelar maligno, implicando uma segunda operação, da qual saiu sem as cordas vocais e com uma enorme (e inestética) cicatriz no pescoço, resultante da sutura que dá título ao livro. Tempo do qual guarda como memória – mais uma – a única vez (!) em que a mãe foi simpática com ele, embora de forma transitória. Mais exactamente durante o curto espaço de tempo em que acreditou que a segunda operação seria fatal…
De regresso a casa, agora ainda mais confinado a um silêncio - já não voluntário, provocado pela perda de voz e pela inestética cicatriz – David, encontra-se cada vez mais sozinho, cada vez mais mergulhado em si mesmo e no seu mundo, cada vez mais afastado dos pais que não tentaram – pelo contrário – qualquer gesto de aproximação, que não lhe revelaram, sequer que tinha tido um cancro. Mais um entre muitos segredos de que sempre rodearam David. Um cancro provocado ou, pelo menos, potenciado – tudo o indica – pelo excesso de radiação recebido ao longo dos anos, como o pai mais tarde lhe confessará. Como se aos olhos deles, para além de vítima fosse também culpado. Por isso, possivelmente, foi enviado para um colégio interno. Talvez para que os pais afastassem dos seus olhos o objecto que lhes podia inspirar um sentimento de culpa?
Seguem-se tempos tormentosos – com diversas fugas do colégio, sessões de psiquiatria – cujos custos, tal como os do colégio, lhe foram atirados à cara várias vezes -, a descoberta que a mãe enganava o pai com outra mulher… Até se tornar evidente aos seus olhos que a mãe nunca o amou, que nunca foi desejado. E é nesta descoberta – ilustrada de forma soberba por várias páginas em que apenas se vê chuva a cair, como se a água o pudesse limpar de todas aquelas memórias indesejadas - e também no abalo provocado pela morte do avô, que vai acabar por encontrar forças para sair de casa, se afastar da família, num distanciamento imperioso para uma busca e descoberta interiores, num percurso de queda e redenção, em que finalmente se vai encontrar a si próprio, descobrindo no desenho a melhor forma de se expressar. E encontrando, também, as forças necessárias para não seguir o mesmo caminho da avó e da mãe, como transmite na transcrição do sonho com que encerra o livro. Porque, apesar do tom hiper-realista do relato, há ao longo da narrativa diversos momentos com elementos fantásticos ou oníricos, que servem de contraponto ao tom do registo e ilustram aspirações, devaneios ou sonhos do protagonista.
É verdade que faltou a Small aprofundar algumas questões que poderiam ajudar a dar mais consistência ao livro, em especial a sua relação (inexistente?) com o irmão ou as razões porque os pais eram incapazes de manifestar sentimentos e afectos, mas acabam por ser aspectos menores numa obra magnífica embora dolorosa, de uma enorme carga humana.

A reter
- O ritmo com que o autor dotou a narrativa
- A expressividade de algumas sequências mudas.
- A utilização de diversos registos gráficos para distinguir estados de espírito ou a dualidade realidade/sonho.
- A conseguida sequência da chuva – o seu significado… - nas páginas 255 a 262.

Menos conseguido
- Este texto. Escrever sobre algumas obras, por vezes, é para mim um problema. Não porque a sua qualidade não o justifique, mas pela sensação de que por mais que explique, evoque ou desenvolva, nunca serei capaz de exprimir tudo o que a leitura me transmitiu. Sutures foi um desses livros. E já sei que uma vez postadas estas linhas, um sem número de vezes (re)escritas, vou sentir que faltou isto ou aquilo, que aqui ou além podia ter chegado mais fundo ou mais longe, que possivelmente ele está demasiado descritivo. Pelo que, como sempre, mas mais ainda desta vez, deixo o conselho: leiam estas linhas, se quiserem, mas não deixem de ler o livro.

Curiosidades
- A versão original deste livro, Stitches: A Memoir (da editor norte-americana W.W. Norton), foi finalista do National Book Award em 2009, um prémio habitualmente concedido apenas a obras literárias, e chegou a estar no primeiro lugar da lista dos livros mais vendidos do The New York Times.

03/03/2010

Des rivières sur les Ponts

Zoran Penevski (argumento)
Goran Josic (desenho)
Delcourt (França, Maio de 2004)
204 x 262 mm, 48 p., cor, cartonado com sobrecapa

Os exemplos da utilização da banda desenhada para reportagens ou documentários vão-se multiplicando. Muitos deles interessantes ou notáveis. Dois estão disponíveis em português: “Palestina” (Mundo Fantasma/MaisBD/Devir), de Joe Sacco, e “Persepólis” (Edições Polvo), de Marjane Satrapi. A que se podia juntar a tradução deste “Des rivières sur les Ponts” dos sérvios Zoran Penevski e Goran Josic, bem incluído na graficamente atractiva colecção Mirages, da Delcourt.
Este é um livro que começa nas manifestações de 1997, conta Milosevic, em Belgrado, e que vai até aos bombardeamentos da Nato, feitos com o objectivo de terminar a guerra civil em curso e depor o ditador. Um livro, autobiográfico, que fala dos “mortos que não contam, entre as vítimas da guerra”, aqueles que não aguentaram a pressão, cujas mentes “estouraram” - às vezes literalmente...
Um livro que fala da incompreensão entre gerações. Dos mais velhos – os pais - partidários do regime (nalguns casos, só – tão naturalmente – receosos da mudança). Que em muitos casos, sem recursos nem alternativas, apenas puderam ficar sentados – impotentes – à espera que a guerra acabasse... ou que acabasse com eles. E da revolta dos mais jovens – os filhos - que, no entanto, se voluntariaram para o exército, quando a NATO começou a bombardear. Indiscriminadamente.
Um livro bem trabalhado nas expressivas cores directas de Josic, feito de momentos soltos, que mostram como a vida (ou uma existência difícil, penosa, a que (dificilmente) se pode chamar vida...) continua apesar das circunstâncias.
Um relato de momentos precisos e concretos, reais, incomodamente reais (porque vividos), porque, como diz o cineasta Jan Kounen no texto que fecha o livro: “A vida era bem estranha para que fosse preciso inventar o que quer que fosse”.

(Versão revista e aumentada do texto publicado no Jornal de Notícias de 5 de Junho de 2004)
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