Três
acontecimentos separados por mais de meio século, balizam o percurso de um dos
mais emblemáticos (anti-)heróis que a banda desenhada já conheceu.
Novembro de
1913: em pleno oceano Pacífico, um catamaran encontra à deriva duas embarcações,
um bote com um jovem casal e, depois, uma jangada com um branco amarrado.
1943: um
italiano de 16 anos é repatriado para Itália, depois de dois anos num campo de
concentração nazi.
Julho de
1967: a revista italiana “Sgt. Kirk” estreia no seu primeiro número “Una Balata
del mare salato”, longo romance desenhado que viria a contar 163 pranchas a
preto e branco e rompia com (muitos d)os cânones estabelecidos para o género.
Mas, afinal,
o que une estes três acontecimentos? A resposta é simples: o italiano
chamava-se Hugo Pratt, e apesar de jovem tinha e já uma longa vivência, fruto
de um périplo por vários países. Essa experiência, depois de anos dedicados aos
quadradinhos, entre Itália, Argentina e Inglaterra, em que criou “Asso di
Piche”, “Sargento Kirk” “Ernie Pike” e muitos outros relatos que a traiçoeira
memória nem sempre evoca, serviu-lhe de inspiração, já homem maduro, para
escrever e ilustrar a BD citada, na qual o branco à deriva na jangada, que tinha
por nome Corto Maltese, surgiria pela primeira vez (na quinta prancha), mas apenas
como personagem secundária de um relato que tinha como verdadeiro protagonista
o oceano.
Oceano que Corto
cruzaria várias vezes, percorrendo meio mundo na esteira do seu alter-ego, da
Veneza (natal de Pratt) a terras sul-americanas, da ensolarada Etiópia às
místicas terras celtas, das imensidões geladas da Sibéria à mítica Atlântida.
Ao lado ou
em oposição ao pérfido Rasputine, em desafiador equilíbrio com o
guerreiro/filósofo Cush, nelas conheceu belas mulheres, com Pandora acima de
todas, – cujos corações muitas vezes destroçou mas a quem nunca se prendeu –
aliou-se ao IRA e a outros revolucionários, foi iniciado nos mistérios das
artes místicas brasileiras, do Talmude e da Tora judaicos, vivenciou o tango
argentino, descobriu descendentes de civilizações perdidas, presenciou
atentados, roubos e actos menos lícitos, filosofou sobre a vida e a morte,
viveu ou sonhou aventuras que fizeram e continuam a fazer sonhar gerações.
Relatos
abertos em que a base histórica, o tom ficcional, a grande aventura e o
onirismo só possível aos grandes criadores se equilibram, desenhados com
brancos luminosos e negros absolutos, em contrastes marcantes e poderosos, num traço
depurado e, muitas vezes, simbólico, repleto de silêncios, inspirado no
grafismo dos quadradinhos dos mestres Milton Cannif e Will Eisner e no espírito
dos romances clássicos de aventura de Kipling, Stevenson, Conrad ou Melville.
Marinheiro
errante, perseguidor de utopias, defensor das causas (que considera) justas, louco
ou corajoso, irresponsável ou aventureiro, anarquista, libertário, romântico, com
uma enorme sede de liberdade e seguro de ser o seu único senhor, Corto, cidadão
do mundo embora natural de Malta, onde terá nascido a 10 de Julho de 1887,
filho de mãe cigana e de pai marinheiro, protagonizou centenas de pranchas em
quase duas dezenas de livros, tendo ficado por narrar o seu desaparecimento,
nos anos 30, na guerra civil espanhola, a última utopia de um mundo cada vez
mais controlado e global.
Alter-ego
do seu criador, partiu com ele em 1995, ano em que Pratt fez a sua última
viagem, rumo ao paraíso dos grandes criadores. Talvez por isso, os anúncios de
um eventual regresso por outras mãos, até hoje nunca se concretizaram. Felizmente?
Para nossa
sorte e deleite, continua vivo, nas páginas aos quadradinhos que Pratt nos
legou, sempre pronto a partir em busca dos sonhos que a maioria de nós não nos
atrevemos a ter.
Estreado
entre nós nas páginas da revista Tintin, no nº 743, de 15 de Março de 1975,
talvez trazido pelos ventos de liberdade que sopravam então no nosso país, Corto
foi mal-amado por muitos dos seus leitores que, habituados ao classicismo da BD
franco-belga, consideraram a obra-prima de Pratt “mal desenhada”.
Em álbum a
Bertrand editou “A Balada do Mar Salgado”, tendo as Edições 70 lançado os
outros 16 títulos disponíveis, entre 1979 e 1988. A passagem para o catálogo da
Meribérica/Líber, apresentou a novidade da cor, em belas aguarelas de Pratt e
os seus assistentes, e de introduções profusamente ilustradas, assinadas pelo
seu criador. Depois de um volume na colecção Clássicos da BD, do Correio da
Manhã, de passagens pelas duas séries das Selecções BD e de uma colecção em
conjunto com o jornal Público, que contou 16 volumes mais um guia de leitura,
actualmente, a ASA tem em curso uma nova reedição, num formato ligeiramente
inferior ao original, na qual os locais de passagem de Corto são revisitados
pelo escritor Marco Steiner e o fotógrafo Marco D’Anna.
Em
português estão também disponíveis “As Mulheres de Corto Maltese” (assinado por
Pratt e Michel Pierre, da Meribérica) e “O desejo e ser inútil” (Relógio
D’Água), célebre entrevista de Dominique Petifaux ao autor veneziano, duas obras
fundamentais para melhor conhecer o seu universo único.
O
aniversário que agora passa, fica marcado por “Corto Maltese no Século XXI”, a
quarta edição do fanzine Efeméride, de Geraldes Lino, em cujas páginas algumas
dezenas de criadores gráficos portugueses, quase todos clonando o traço de
Pratt, evocam, homenageiam e parodiam o marinheiro errante.
(Versão
revista do texto publicado no Jornal de Notícias de 24 de Julho de 2012)
Pedro
ResponderEliminarUm bom post e um excelente artigo no JN.
A efeméride dos 45 anos de Corto é relevante; relavante também, será a efeméride do mesmo Corto em Novembro de 2013, segundo a cronologia oportunamente posta nesta peça.
Relativamente ao pormenor do herói/anti-herói, esta personagem parece-me que não se enquadra em algum destes dois parâmetros, porquanto o seu espítito de liberdade e de dignidade, a envolvência, despida de preconceitos, com todo o género de segundas figuras, algumas com evidente rótulo de anti-herói( como Rasputine)e a acção em que se desenrola a saga, me leva a classificar, com o meu arbítrio, Corto Maltese como um aventureiro.
Enfim, um aventureiro com a nostalgia e o sonho dos que, como eu, admiram a liberdade ao redor do mundo marítimo e terrestre, como uma das gaivotas que Pratt levou às suas vinhetas.
Olá Santos Costa,
ResponderEliminarTodas as datas, redondas ou não, são oportunas para evocar Corto. Apercebi-me dos 125 anos (!) do seu nascimento "oficial" (no passado dia 10 de Julho) ao escrever o texto, mas deixei passar o "centenário" (em Novembro de 2013) do seu salvamento da jangada...!
Quanto à questão herói/anti-herói, Corto assume ambos os papéis, consoante as circunstâncias, mas está longe do exemplo perfeito que a BD (no seu tempo) estereotipava. Aventureiro, romântico, livre pensador, anarquista, libertário, são outros dos adjectivos que poderiamos utilizar. Embora, possivelmente, todos eles isolados sejam incompletos para o definir. O nque também revela o génio de Pratt!
Boas leituras... de Corto!
Plenamente de acordo, Pedro.
EliminarO génio de Corto é o génio de Pratt. Ainda que possa haver quem continue a saga - pois o autor não o impediu - julgo que jamais alguém consiga esse binómio conseguido pelo italiano: o texto e a imagem. E, por falar em imagem, a ambivalência na qualidade da cor e p/b, pois nada como em Corto Maltese consegue o mesmo fascínio, que é ter a arte final, a preto, com tanta ou mais qualidade estética do que a cor. Disso é exemplo essa vinheta que, com muita felicidade, foi posta a finalizar o post: o marinheiro, junto a uma duna, com duas gaivotas a sobrevoar este idílico cenário (sem a cor, tanto pode ser pela manhã como pelo pôr-do-sol). Mesmo a preto, é um quadro de uma beleza extraordinária.
Sem dúvida alguma, caro Santos Costa!
EliminarBoas leituras de Corto... a preto e branco!