Primeiro salto em frente na carreira de Davodeau, este álbum
originalmente datado de 1996, aparentemente parece deslocado no contexto da sua
obra.
Nada mais falso, como explico já a seguir.
Depois da trilogia Les Amis de Saltiel, o talento (já) latente de Davodeau ‘explodia’ nesta
passagem para a (celebrada) colecção Aire
Libre, surgindo livre do espartilho das 48 páginas do modelo tradicional
franco-belga - embora ainda no formato álbum.
Na origem de Le
Constat está Vincent, um engenheiro trintão que passou os últimos anos
ligado a um grupo de traficantes. Determinado a dar um novo rumo à sua vida
(com Anne), decide largar tudo não sem antes trazer consigo algum do produto
traficado para (re)começar bem a vida. Essa atitude leva à inevitável
perseguição por parte dos antigos associados que, rapidamente mostram que não estão
para brincadeiras.
Vincent enceta então uma fuga desorganizada, na qual
encontrará dois ‘penduras’ que lhe serão de extrema utilidade: Abel, um septuagenário
que decidiu deixar o lar onde vive por uns dias, e Rose, que leva a vida ao
sabor dos dias.
Juntos, na fuga e na procura dos interesses de cada um, numa
atitude solidária em que Vincente tem inicialmente dificuldade em se rever, vão
vendo a sua distância para os perseguidores diminuir rapidamente, quase ao
mesmo ritmo que os problemas e as desilusões vão crescendo, com Vincent a
descobrir que muitas das suas relações eram menos fortes do que imaginava.
Com um ritmo narrativo elevado, proporcionado muitas vezes por sequências
quase mudas, diálogos sóbrios, credíveis, e de uma eficiência extrema, um inusitado
sentido de humor apesar da tensão latente ao longo de todo o álbum, Le Constat vai avançando de forma rocambolesca, com várias inflexões - e algumas (bem interessantes) histórias paralelas - até desembocar
num final em aberto – muito aberto, como tantas vezes sucede nas obras de Davodeau,
talvez porque a vida das suas personagens – tal como dos seres reais - não se
conclui ali.
Um final em aberto possivelmente inevitável, porque o único
final lógico e coerente seria demasiado penalizador.
Mas, se Vincent é o protagonista – embora muitas vezes
impotente e apenas joguete face ao desenrolar dos acontecimentos – quem brilha em
Le Constat são os (secundários) Abel
e Rose, justamente presentes na nova capa da actual reedição, retratos de gente que insiste em remar contra a corrente, em marcar a diferença, em ser interventivo...
Ele um (ex?-)militante comunista de convicções fortes que
depois de perder a mulher e os filhos nos campos de concentração nazis,
participou em (quase) todas as lutas que o comunismo e os seus ideais lhe
proporcionaram, um pouco por todo o mundo, em busca de um sentido para a sua
vida, cada vez mais distante conforme a realidade (se) reflectia (n)o seu desencanto
e desilusão crescentes.
Quanto a Rose, é uma mulher admirável – uma das várias que
Davodeau já nos apresentou – livre de amarras, vivendo o dia-a-dia
(responsavelmente) mas apenas movida pela amizade e pela solidariedade – ponto de
contacto forte com Abel – na qual não será difícil adivinhar as bases da futura
(revolta) de Lulu (femme nue).
É com eles – através deles – que Davodeau, com o talento que
(hoje) lhe (re)conhecemos, constrói uma narrativa que, bem mais do que um
relato de tom policial e de aventura, questiona e põe em causa o ser humano e a
vida – a importância e sentido que cada um de nós lhe confere.
Le Constat
Colecção Aire Libre
Étienne Davodeau
Dargaud
França, 23 de Maio de 2014 (reedição)
225 x 295 mm, 100 p., cor, cartonado, 15,99 €
Este é o segundo dos textos do 'mini-ciclo' que As Leituras do Pedro dedicam a Étienne Davodeau, a propósito da sua presença no X Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja.
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