Há exactamente 50 anos, a pequena Mafalda estreava-se nas
páginas da revista argentina Primeira Plana. Até podia ter aparecido mais cedo,
mas certamente não estaríamos hoje a evocar a data.
Saiba porquê já a seguir.
Criação de Quino (aliás Joaquin Lavado, natural de Buenos
Aires, onde nasceu em 1932) as primeiras tiras da futura Mafalda surgiram no
âmbito de uma campanha publicitária de uma marca de electrodomésticos, que
acabou por não se concretizar.
Ganhámos todos nós porque, meses depois, deu-se a tal estreia, mas a presença da
Mafalda na Primeira Plana durou apenas seis meses. Divergências sobre a
propriedade dos originais, levaram Quino a mudar-se para o jornal El Mundo,
onde a publicação diária lhe permitiu acompanhar a actualidade e transformar
uma tira de tom familiar, protagonizada maioritariamente por crianças (de
alguma forma inspirada nos Peanuts, de Charles Schulz) numa obra onde a crítica
social e política eram uma constante.
Numa época em que a Argentina vivia sob crises políticas,
sucessivos governos, golpes de estado e inflação galopante e o mundo andava no
fio da navalha devido à Guerra Fria que opunha americanos e soviéticos, com a
sombra da China a pairar, Mafalda revelou-se contestatária, insubmissa,
descontente com o país e o mundo, sempre pronta a criticar e a defender
intransigentemente os valores em que acreditava: igualdade, liberdade, paz...
Ao seu lado, impotentes para a acompanhar ou refrear,
estavam os pais - ele trabalhador dos seguros, ela doméstica - representantes
de uma classe média-baixa, com dificuldades em esticar o dinheiro até o fim do
mês. Os amigos, foram surgindo naturalmente: Filipe, tímido e sonhador;
Manelinho, filho de merceeiro com olho para o negócio e ambição de ter uma
cadeia de supermercados; Susaninha, que aspirava um marido rico e muitos
filhos; Miguelito, sonhador e egocêntrico; o inocente Gui, irmão mais novo da
Mafalda; a pequena (literalmente) Liberdade, numa alusão clara e não inocente
ao que se vivia no país.
Curiosamente, apesar do seu tom claramente politizado,
Mafalda passou incólume pelos anos conturbados da Argentina e os primeiros
países que a acolheram – Itália, em 1969, Portugal, em 1970, Espanha, Brasil –
também (sobre)viviam sob regimes ditatoriais.
A amenizar um pouco o tom, embora enganadoramente, Mafalda protestava
regularmente contra a sopa que era obrigada a comer e expressava a sua paixão
pelos Beatles, formas mais discretas de combater os valores tradicionais e de
aplaudir a mudança.
O fecho do El Mundo, em 1967, levá-la-ia para as páginas da
revista Siete Dias, onde permaneceu até 25 de Junho de 1973 quando Quino,
cansado de fazer sempre o mesmo, decidiu pôr-lhe um fim, continuando até à
actualidade com a sua carreira de humorista gráfico, iniciada no longínquo ano
de 1950.
Apesar desse fim, pela fama que granjeou e porque a maior
parte das suas tiras continuam surpreendentemente actuais e divertidas, Mafalda
tem sido alvo de sucessivas reedições e, 50 anos depois de se estrear, continua
a fazer rir e pensar leitores de quase 30 idiomas, nas dezenas de países onde
está editada.
Em Portugal, Mafalda surgiu pela primeira vez em 1970, tendo
desde então protagonizado quase meia centena de títulos. No próximo mês de
Outubro, a propósito desta efeméride, a Verbo vai lançar Mafalda:
Edição Comemorativa dos 50 anos, um volumoso tomo cartonado com capa inédita,
que inclui todas as tiras escritas e desenhadas por Quino, textos de apoio que
ajudam o leitor a contextualizar a personagem e os gags nos acontecimentos
históricos que a Argentina e o Mundo vivenciaram entre 1964 e 1973 e
depoimentos de diversas personalidades portuguesas escritas propositadamente
para esta obra.
(Versão revista do texto publicado no Jornal de Notícias de 29
de Setembro de 2014)
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