Monstros invisíveis ao nosso redor
Costuma dizer-se que quando algo/alguém é alcandorado à categoria de lenda, se deve esquecer a sua história. No caso de "Monstros", é a lenda que deve ser ignorada, para nos cingirmos à história.
Mas, apesar disso, comecemos pela lenda. Segundo parece, na sua génese, em 1984, esta era para ser uma narrativa sobre Bruce Banner e o Hulk. O tom demasiado adulto e o registo sombrio fizeram com que a Marvel não aceitasse o projecto - embora permitisse o aproveitamento das principais ideias por outros...
[A influência dos super-heróis - ou a predisposição do autor para tal - é também visível no preparado que transforma o protagonista no ser disforme que desfila perante os nossos olhos, que inevitavelmente evoca o soro do super-soldado que transformou o franzino Steve Rogers no musculado capitão América.]
O quanto de lenda e de verdade há naquelas premissas não importa, a verdade é que Barry Windsor-Smith achou por bem avançar sozinho. Esqueceu o tom super-heróico original do seu relato, e a verdade é que nós, leitores, só ganhamos com a mudança que tornou muito mais humana e incómoda a narrativa e facilmente perdoamos ao autor os quase 40 anos que levou a concretizá-la.
Ambientada entre o final da II Guerra Mundial e as duas décadas seguintes, esta não deixou de ser uma história monstruosa, mas os monstros passaram a ser outros, aquelas que todos os dias ouvimos que estão ao nosso redor - no meio de nós.
A história arranca em 1964, quando o jovem e franzino Bailey tenta ser aceite pelo exército. A sua condição de órfão torna-o ideal para ser submetido a experiências atrozes conduzidas por um ex-nazi - como houve tantos a trabalhar nos (e para) os Estados Unidos no pós-II Guerra Mundial... - com o objectivo de o transformar num super-soldado. Como resultado, vê-se transformado num ser disforme, numa aberração humana. É o monstro mais evidente a que o título alude, mas os verdadeiros monstros são invisíveis, são aqueles que então, como agora, estão ao nosso redor.
Através de diversas elipses temporais, a narrativa vai avançando em diferentes épocas, da II Guerra Mundial ao momento em que o autor arrancou com a história, sempre a caminho do desfecho trágico numa América profunda e perdida, não só no mapa mas nas suas próprias contradições, permitindo que a loucura consciente de um génio nazi e a desvario em que mergulha um soldado americano nos últimos dias da guerra, concorram para que o mal, a barbárie, a violência gratuita e a falta de humanidade afectem profundamente a vida de tantos dos seus concidadãos. Ou tão só dos familiares do tal 'monstro', que vêem a vida caseira transformada num constante sobressalto.
Famoso pela forma agreste como deu vida a Conan, o bárbaro, e a alguns dos super-heróis da Marvel, Windsor-Smith apesar da idade avançada, demonstra aqui todo o seu génio gráfico com um traço notavelmente hiper-realista com que, carregando uma vezes na escuridão dos negros, ou outras na alvura dos brancos, quando não utiliza ambos como elementos de um poderoso jogo de contrastes, dá vida aos piores pesadelos e aos monstros que os seres humanos criam ou são.
Obra de peso - literalmente - pela sua dimensão e pela forma profunda como expõe seres torturados - pela vida mas não só... - Monstros é seguramente um dos lançamentos do ano e, bem mais importante do que isso, uma daquelas obras que não se devem deixar passar.
Sendo uma reflexão sobre os monstros que a guerra origina e também sobre a guerra originada por monstros, Monstros vai além disto, com o tom humano, o sofrimento e aquela falta de sorte que transforma em pesadelos vidas sonhadas, e em infelizes quem apenas aspirava a paz e sossego.
Monstros
Barry Windsor-Smith
G. Floy
Portugal,
Abril de 2022
205
x 290 mm, 368
p., pb,
capa dura
40,00
€
(versão completamente revista, aumentada e remontada do texto publicado no Jornal de Notícias online de 6 de Maio de 2022 e na versão em papel do dia seguinte; imagens disponibilizadas pela G. Floy; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar no texto a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)
Vou deixar algumas pequenas achegas ao texto:
ResponderEliminar- o BWS não fez um trabalho significativo em Super-heróis, sendo que os seus últimos 20 e muitos anos foram quase todos na Fantagraphics.
O BWS tem um trabalho residual em super-heróis e desses trabalhos apenas o Weapon X é um trabalho importante e esse sim, tem muito a ver com esta obra, até bem mais que a tal história do Hulk que lhe foi "roubada" pelo Bill Mantlo e colocada na saga CrossRoads.
No entanto a obra mais importante e que interessa mais ao autor, está longe de ser super-heróis e é muito mais o Frankeinstein da Mary Shelley.
Abraço
Não esquecer a participação do BWS no Conan nos anos 1970, o trabalho dele foi fundamental para lançar o personagem nos Comics.
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