Sem (a) protagonista
Nas
histórias de Julia Kendall, é normal que ela partilhe o
protagonismo com os criminosos que acabará por investigar. Menos
normal, penso eu - confesso que não fui verificar - é que lhes
entregue completamente a boca de cena, deixando-se ficar no fundo,
quase na sombra.
Escrito
de outra forma, nas duas histórias deste volume, Julia apenas
aparece em 40 das 126 pranchas de A
gangue e
em 35 do segundo relato, O
quarto de pânico.
No primeiro caso, a história centra-se num assalto bem sucedido a uma carrinha de transporte de valores, que começa a descambar quando as diferentes ambições dos diferentes componentes do bando entram em choque. Análise sociológica por excelência, com tempo - também pela ausência da putativa protagonista - para aprofundar a forma de ser de cada um e os motivos que os fizeram quem são, A gangue leva-nos mais uma vez a questionar o que a sociedade faz de (tantos de) nós.
No segundo caso, a ausência de Julia é ainda mais notória, não por estar ausente em mais uma mão cheia de páginas, mas porque do outro lado - na maioria delas - está Myrna Harrod, a besta danada de Julia, a serial killer que nutre por ela uma estranha combinação de amor, ódio e pulsão sexual, difíceis de explicar.
Tenho escrito algumas vezes que dentro da moderada linha editorial de Julia há alguns relatos que incomodam pelo desvio a essa norma - aqueles em que ela assume um papel mais físico que me parece não combinar com a sua fragilidade e habitual posicionamento.
E depois, existem as narrativas com Myrna, vilã ocasional de serviço, que podendo chocar com o realismo dominante na série, lhe traz 'um não sei bem o quê' que torna essas histórias especiais. Mesmo que retirem um pouco da consistência - da pureza…? - à heroína de papel que tantos sentimos de carne e osso. Porque nos garantem uma maior exposição das suas fraquezas - vejam a auto-análise que Julia faz neste número - porque propiciam relatos mais violentos, de modo explícito e, principalmente (mesmo que possa soar estranho), implícito e porque neles sabemos que, mesmo ganhando, Julia ficará a perder - e perdendo perde em (quase) toda a linha. Recuperando, assim, alguma da sua aura humana e frágil, não invencível nem omnisciente.
Não consigo terminar este texto sem - mais uma vez - destacar a mestria narrativa de Giancarlo Berardi que, nestes dois relatos de forma sublime, faz com que os diferentes momentos narrativos - no primeiro: assalto/vidas dos assaltantes/investigação; no segundo o triângulo Charlotte/Myrna/Julia - se vão encadeando de forma tão perfeita, que por vezes quase parece que tudo está a decorrer num mesmo espaço, para além da natural simultaneidade dos acontecimentos.
J.
Kendall As aventuras de uma criminóloga #151
Inclui
Julia #192 e #193 (Itália, 1998)
+ A
gangue
G.
Berardi e M. Mantero
(argumento)
Antonio
Marinetti (desenho)
+ O
quarto do pânico
G.
Berardi e M. Mantero
(argumento)
Steve
Boraley
(desenho)
Mythos
Editora
Brasil,
Março
de
2021
135
x 180 mm, 256
p., pb, capa mole, bimestral
R$
24,90
(capa disponibilizada pela Mythos Editora; pranchas disponibilizadas pela Sergio Bonelli Editore; clicar nas imagens para as aproveitar em toda a sua extensão)
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