Uma auto-biografia de âmbito global
Tenho referido aqui, de forma intermitente, algumas das mudanças que tem sofrido a edição de banda desenhada no nosso país nos últimos anos e uma delas, fundamental, é o terminar das séries iniciadas. Se isto pode parecer algo óbvio a muitos, a verdade é que nem sempre foi assim, e restaurar a confiança nos editores é fundamental. O Árabe do Futuro 6 - Ser Jovem no Médio-Oriente 1904-2011, recém-lançado pela Teorema, é mais um contributo neste sentido.
É verdade que demorou demasiado - 9 anos - com alguns hiatos (in)compreensíveis, mas a oportunidade de ler agora, de uma só vez a obra não é de desperdiçar. E, felizmente, a intenção da editora é reeditar os volumes que entretanto esgotaram.
Obra auto-biográfica de Riad Sattouf, narra a sua vida desde o nascimento (1978) até ao sucesso como autor na idade adulta, no momento (2011) em que encontra o final para a saga com mais de um milhar de páginas que este volume encerra.
Filho de mãe bretã e pai sírio, Sattouf passou grande parte da vida a saltitar entre os dois países, entre realidades sociais, políticas e religiosas díspares, assistindo à degradação da relação entre mãe e pai, pelo crescendo de radicalismo religioso deste último, que culminou no rapto do filho mais novo, levado para a Síria.
Retrato de uma realidade multiplicada em França, da impossibilidade de convivência de conceitos de vida tão diferentes e em muitos aspectos até opostos, O Árabe do Futuro ultrapassa com uma dose acertada de ternura e humor, a simples verdade do autor, tímido, fechado sobre si próprio e carregando intimamente a culpa de todas as desavenças familiares a que foi assistindo.
Neste derradeiro tomo, assistimos à chegada de Sattouf à idade adulta, enquanto sinónimo de autonomia, descoberta do caminho de vida (ser autor de BD) e, antes do mais, auto-aceitação. Extremamente legível, a obra continua a exibir um notável, mas contido, sentido de humor, nomeadamente através da presença constante do pai, mordaz e crítico de todas as suas opções, nos pensamentos do autor. O contraponto entre a desagregação da família tradicional, com a decadência e morte dos avós e o desespero crescente da mãe em tentativas tão obsessivas quanto absurdas de reaver o filho mais novo, acrescentam um lado trágico ao relato.
Mas é este equilíbrio entre os diferentes registos narrativos, a enorme legibilidade do todo e a capacidade de transformar uma auto-biografia numa obra sedutora e de âmbito mais global que fazem de O Árabe do Futuro uma das obras mais notáveis da última década.
O
Árabe do Futuro #6
- Ser Jovem no Médio-Oriente 1904-2011
Riad
Sattouf
Teorema
Portugal,
Maio de 2024
240
x 172 mm, 176
p., cor,
capa cartão com badanas
22,90
€
(versão revista do texto publicado no Jornal de Notícias de 7 de Junho de 2024; imagens disponibilizadas pela Teorema; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)
Sem dúvida, uma das melhores séries de BD que li até hoje. Foi pena, de facto, o tempo que a série demorou até ser concluída. Mas a culpa da demora na conclusão da obra até nem é da editora portuguesa. Se não estou enganado, penso que o o último volume da edição francesa só foi publicado no fim de 2022. É facto que sempre foram quase dois anos de hiato, mas nem é muito trágico, comparando com alguns "timings" de outras edições.
ResponderEliminarPenso que o maior hiato foi entre os volumes #4 e #5, cerca de 3 anos. Se não fosse por isso, a verdade é que 6 volumes em 9 anos nem é mau...
EliminarBoas leituras!
Caro Autor se há série que tenha tido uma das piores curadorias nos últimos anos esta foi uma delas. Entregue a um selo que nunca teve tradição nem conhecimento na área a série andou aos “trambolhões’ durante quase 8 anos, entre edições mal legendadas, com problemas de produção, hiatos enormes entre volumes, promoção inexistente, etc. Gostaria de acreditar que, depois deste percurso por demais acidentado, outra editora pegasse na restante obra do autor, mas tenho dúvidas…
ResponderEliminarComentário que demonstra desconhecimento total da realidade editorial, que depende de inúmeros factores e que na maioria das vezes o editor ou a chancela são alheios. Mas, infelizmente nestes espaços é hábito criticar sem saber. Pior mesmo, é que pessoas que tanto criticam e em determinadas alturas são chamadas para ajudar, apresentam participações miseráveis, coisa que constato há meis de 30 anos. Cero é que a coleção está aí, pronta a ser lida e com disponibilidade para colocar no mercado os livros que estão esgotadas.
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