Sendo
a banda desenhada uma combinação indivisível (quando é bem feita)
de argumento e desenho,
apesar da contradição,
sempre considerei mais aquele do que este. Gosto de referir uma
máxima que em
tempos ouvi
a alguém: "Um bom desenho, vende um livro; um bom argumento,
vende uma série". Por isso, sou mais um seguidor de
argumentistas do que de desenhadores.
No
caso de Yves Sente, sinto-me dividido. Parece-me inconstante, tem
sido
capaz do melhor e do pior, quase me apetece classificá-lo como
'bipolar', no que à escrita diz respeito.
[Um dos exemplos mais emblemáticos disto é um dos Blake e Mortimer que assinou, O Vale dos Imortais. Depois de um primeiro álbum brilhante, em que mimetizou como nunca o estilo de Jacobs, invocando bem de perto a sua herança e fazendo os leitores (antigos) quase acreditar na descoberta de uma obra perdida do mestre, no segundo tomo destruiu completamente o que tão laboriosamente tinha construído, numa derrapagem incontrolável que culmina numa absurda traição ao espírito da série.]
Se no seu percurso - de tentativa e erro?... - na série protagonizada pelos dois fleumáticos britânicos, conseguiu ser feliz - 'fazer-nos felizes' soa melhor - algumas vezes, Assinado "Olrik" não é um desses casos. Sei que esta opinião não é unânime - nada provoca maior celeuma e discordância do que a retoma de séries clássicas - mas a verdade é que para mim, este álbum me soube a uma série de ideias mal desenvolvidas e pior alinhavadas. É uma história narrada aos repelões, feita de episódios mal ligados e com uma base que atraiçoa o que de mais basilar existe em Blake e Mortimer, apesar de ter alguns elementos interessantes.
Comecemos por estes, que trazem a Blake e Mortimer, cristalizados para sempre num passado atido à herança de Jacobs, uma certa actualidade: por um lado, surge uma organização com contornos terroristas, que ameaça com atentados para conseguir a independência da Cornualha; por outro, parte desta vontade de separação assenta nas sucessivas levas de estrangeiros levados para o teritório... para fazerem os trabalhos que os locais desdenham. Nada que não ouçamos recorrentemente nos nossos noticiários. Para além disso, Sente deixou aqui e ali referências a outras aventuras que ajudam a integrar e desafiam o leitor tradicional.
No entanto, de seguida, Sente começa a derrapar, desde logo quando introduz elementos mágicos e lendários como o rei Artur e a sua famosa espada Excalibur que, na minha interpretação não fazem sentido numa série que tem como pedras basilares, uma combinação, apesar de tudo realista, de policial, espionagem e antecipação científica [existente no tempo de Jacobs, mas que perdeu a razão de ser quando as novas histórias passaram a ser narradas no passado].
Olrik, detido numa prisão britânica, (inevitavelmente) surge no meio da trama e, entre pontas soltas, a evidência da identidade secreta do líder independentista, explicações débeis e incongruências (especificadas no final deste texto, pelas revelações que representam) a história vai-se arrastando sem nunca chegar a seduzir e conquistar o leitor [eu, no caso].
E é pena, pois Andre Juillard, que faleceu sem ver publicado este último trabalho que assinou e a que se dedicou afincadamente para o terminar, lutando contra o cancro que o viria a vitimar, merecia uma despedida melhor para encerrar uma carreira em que teve obras bem mais marcantes, como Le cahier bleu, Aprés la Pluie ou Lena, e da qual abdicou (legitimamente) para ganhar dinheiro com Blake e Mortimer. O seu virtuosismo é evidente em Assinado "Olrik", embora seja incontornável que aqui e ali já são notórias algumas falhas a nível gráfico em rostos, posturas e nalguns cenários mais vazios, o que seria inevitável devido à idade e à doença.
Não sei se por estes mesmos motivos, ou porque Juillard já não teve tempo para mais, as duas capas são bastante fracas e desinteressantes.
A edição especial FNAC
Como se tornou quase tradição há longos anos, a cada novo álbum de Blake e Mortimer, a ASA publica uma edição especial para venda exclusiva nas livrarias FNAC. Se até aqui, a única diferença era a capa variante, desta vez a editora foi mais longe e - fruto do bom momento editorial que a BD vive no nosso país? - decidiu acompanhar a versão em formato italiano que já é comum há anos nos países francófonos.
Dito isto e porque a diferença de preço entre ambas é sensível - a versão FNAC custa aproximadamente o dobro, certamente devido à maior quantidade de papel envolvida e à tiragem bastante menor que, com certeza, teve - há que questionar as vantagens e desvantagens deste formato.
Uma explicação prévia: na prática o que acontece é nesta edição deitada, é que cada página tem apenas uma das três tiras que compõem cada prancha do novo Blake e Mortimer. Por isso, o álbum tradicional tem 64 páginas e este o triplo delas: 192.
Outro aspecto fundamental é a dimensão: no álbum tradicional, a tira mede sensivelmente 200 x 90 mm; neste, ocupa 255 x 112 mm. Ou seja, há um ganho ao nível da área de quase 60%. Isto permite apreciar melhor o desenho de Juillard - embora, em sentido contrário, também leve a detectar pequenos (grandes?) defeitos que a edição tradicional, de menor reprodução, encobria.
No entanto, para mim, a principal questão é que esta versão divide em três a prancha original, destruindo qualquer efeito eventualmente pretendido ao nível da planificação, nomeadamente o suspense que muitas vezes passa de página para página, como herança da publicação que em tempos idos era feita em revista. Reconheço, apesar disso, que de certa forma a publicação tira a tira esteve na mente do desenhador e aquelas questões estão geralmente, pelo menos, acauteladas.
Em termos pessoais a leitura de uma e outra obra revelou-se diferente e na versão deitada senti falta da página inteira, que por vezes proporciona uma visão de conjunto necessária e funciona também ao nível do ritmar da leitura.
E se é de saudar a iniciativa da ASA, a opção por uma ou outra - ou pelas duas! - ficará a cargo de cada um.
Incongruências
Leiam primeiro o álbum, antes destes linhas, para poderem fruir melhor a leitura.
O que mais me chocou neste álbum, a para da falta de coesão do relato, foram as questões de pormenor que põem em causa a credibilidade do conjunto.
Sem ser exaustivo, até porque o que vou apontar me surgiu naturalmente ao longo da leitura, eis alguns dos elementos que parecem apontar para uma escrita menos atenta e cuidada por parte de Sente.
- A primeira, que faz questionar todo o álbum, é o facto de Olrik nunca ter pilotado um Espadão. Assim sendo, como estaria apto para dirigir a Toupeira, a escavadora que Mortimer inventa para este álbum com comandos semelhantes aos daquele engenho voador. E, já agora, porquê, dada a utilização tão díspar de um e outro?
- Pouco razoável é também a forma como o capitão Blake liberta Olrik após ele lhe fornecer a lista dos atentados futuros, mas não tem o cuidado de mandar um agente no ferry para garantir que o vilão vai mesmo abandonar o país. Olrik é certeiro ao afirmar "Pobre capitão Blake. esta crença na palavra dada é comovente, na idade dele."
- A mesma ingenuidade está patente quando Blake acredita deixar em segurança a rocha meteorítica num quarto de uma pensão de província, apenas porque leva consigo as duas chaves da porta...
- Ou ainda, pelo esquema básico e sem qualquer segurança utilizado para transportar a Toupeira.
- Passando a Mortimer, quando o professor segue um dos autores do atentado no clube de campo, entra numa gruta utilizando o isqueiro para ver o caminho, é agredido e desmaia; no entanto, quem lhe bateu não só deixa o isqueiro aceso caído no chão, como este ainda está a iluminar o espaço quando o professor desperta... Possivelmente funcionará a gás canalizado!
- Noutra ocasião, entra na igreja mergulhada na penumbra e não repara no homem que se esconde com uma vela acesa (!) atrás de um banco...
Fico por aqui, não sem apontar o que mais do que uma incongruência ou esquema mal pensado, constitui um erro grave (que não fui eu a detectar): a certa altura, ao contar a Mortimer a História da Cornualha, o padre Joseph refere que "(...) em 43 a.C., quando as legiões de Júlio César atravessaram o Canal da Mancha (...)", quando na verdade o imperador faleceu em 44 a.C.!
O
Vale dos Imortais II - O milésimo braço do Mekong
As
aventuras de Blake e Mortimer segundo as personagens de Edgar P.
Jacobs
Yves
Sente (argumento)
Andre
Juillard (desenho)
Edições
ASA
Portugal,
26 de Novembro de 2024
Versão
tradicional:
238
x 310 mm, 64 p., cor, capa dura
15,90
€
Versão
Fnac:
150
x 290 mm, 192 p., cor, capa dura
29,90
€
(imagens disponibilizadas pela ASA e pela Dargaud; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)
Tendo lido Blake e Mortimer pela primeira vez em 1967, é sempre com enorme expectativa que aguardo pelo acontecimento que é um novo livro.
ResponderEliminarE este veio, uma vez mais ao encontro da emoção sempre presente.
Muito bom!