16/12/2009

Zatoichi














Hiroshi Hirata (argumento e desenho)
Delcourt (França, Janeiro de 2006)
127 x 180, 256 p., pb, brochado com sobrecapa com badanas, sentido de leitura japonês
Sabe-se da actual (e continuada) apetência do cinema (norte-americano e não só) pela banda desenhada. Sabe-se também da influência crescente dos mangas (BD japonesa) nos leitores e na banda desenhada ocidental. E sabe-se igualmente que as histórias de samurais são um dos géneros fortes desses mesmos mangas.
"Zatoichi", uma edição da Akata, o selo da Delcourt para a edição de manga, de certa forma, faz a ponte entre tudo o que ficou dito, como vamos ver.
Em primeiro lugar liga BD e cinema, ou melhor, é uma adaptação aos quadradinhos de uma série de filmes japoneses dos anos 60, mais de duas dezenas deles, protagonizados pelo actor Shintarô Katsu, embora, curiosamente, o seu ponto de partida tenha sido um conto de Kan Shimozawa (1892-1968), um autor popular conhecido pelos seus romances históricos. Ainda no cinema, a mais conhecida versão de Zatoichi é da autoria de Takeshi Kitano.
Em segundo lugar, Zatoichi, na sua versão filmada, serviu de inspiração a Frank Miller, para a sua renovação e redenção do Demolidor/Daredevil, ou não seja comum aos dois um protagonista invisual, e a Quantin Tarantino, para o díptico "Kill Bill".
Finalmente, Zatoichi é uma história aos quadradinhos japonesa, de samurais, sendo boa parte das suas pranchas ocupadas por violentos - embora incrivelmente breves - combates.
O autor deste Zatoichi aos quadradinhos é o veterano Hiroshi Hirata, nascido em Tóquio a 9 de Fevereiro de 1937. Devido aos bombardeamentos, a sua família foi obrigada a deixar a capital, instalando-se em Nara, onde Hiroshi teve de sacrificar os estudos para ajudar o pai a conseguir o sustento para os seus seis irmãos e irmãs. Leitor de romances históricos, não consagrou na infância grande atenção aos manga, embora participasse regularmente, com algum sucesso, no jornal do seu colégio. Apenas aos 17 anos, após a morte do pai, na sequência de um acidente que o obrigou a estar algum tempo de cama, e graças a um amigo do colégio, começou a trabalhar regularmente no género, publicando a sua primeira história, "Aizô-hissatsuken" ("O sabre matador de amor e de ira"), em 1958, na revista "Mazô", das edições Éditions Hinomaru-Bunko. Tendo aprofundado os seus conhecimentos da história do Japão em livrarias e bibliotecas, especializou-se de certa forma nesta área, dando origem a títulos como o actual "Zatoichi", "Nisha-den" (A história de Nisha) e "Chishio-gawa" ("Rio do sangue"). No fim dos anos 60, estando o gekiga (manga realista) na moda no Japão, dois dos seus livros, "Bushidô muzan den" ("A miséria no caminho do samurai") e "Kanzashi kenpô" ("A Escola de Sabre kanzashi"), alcançaram um grande sucesso, impondo-se, já nos anos 70, o seu período mais produtivo, como um dos autores incontornáveis gegika, especialista na história do Japão e de samurais.
Convidado de honra do Comic Convention de Saint Diego, nos Estados Unidos, em 1978, tem continuado a criar mangas de sucesso, incluindo a sua autobiografia, "História de um pai", em 1990, sendo igualmente um reconhecido mestre de caligrafia.
Esta edição de Zatoichi, compila num volume de quase 250 páginas, enriquecido com textos sobre a série e uma entrevista com Hiroshi, duas histórias completas - "La ballade de Zaitochi" e "Zaitochi traverse la mer" - que adaptam os 13º e 14º filmes dos anos 60. Apesar dos quase 40 anos que já contam, estas páginas não sofreram com a passagem do tempo, graças à planificação dinâmica, ao desenho quase realista e à consistência do argumento. O protagonista, o cego (zato) Ichi é um massagista, uma espécie de pária da época, que luta constantemente entre o desejo de se manter alheado dos problemas que vai encontrando nos lugares por onde vai passando, na sua tentativa de ganhar a vida, e o seu sentido de justiça, que o obriga a colocar as suas invulgares capacidades de esgrimista ao serviço dos desfavorecidos e injustiçados, sendo a forma como ele lida com este dilema o principal sustentáculo das histórias. A solidão a que sua condição física obriga, que Zatoichi tenta reduzir através do seu carácter prestativo mas que é agravada pelos actos violentos que acaba sempre por cometer, é outro dos caminhos que Hiroshi Hirata explora bem, marcando também desta forma a diferença em relação a histórias do género mais lineares.

(Versão revista e actualizada do texto publicado originalmente no Jornal de Notícias de 22 de Janeiro de 2006)

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