João Paulo de Paiva Boléo (organização, introdução e glossário)
Tinta da China (Portugal, Dezembro de 2010)
245x305 mm,
232 p., cor, cartonado, 44,00€
Resumo
Na sequência da exposição que esteve patente no 21º Amadora BD 2010 e ainda integrada na comemoração dos 100 anos da República em Outubro último, foi editado este volume que reúne cerca de duas centenas de pranchas com as aventuras e traquinices de dois miúdos lisboetas, sem dúvida os primeiros verdadeiros heróis da BD nacional, que foram animados por Stuart Carvalhais entre 1915 e 1918, nas páginas d’O Século Cómico.
Da responsabilidade da Tinta-da-China, esta edição cartonada de grande formato, tem prefácio e coordenação de João Paulo Paiva Boléo, um dos maiores especialistas em BD portuguesa.
Desenvolvimento
Ler clássicos – para mais “tão” clássicos como Quim e Manecas – tem sempre um risco associado: sendo hoje a concepção da banda desenhada (bem) diferente da que existia à data da sua publicação – há quase um século…! – as marcas deixadas pelo tempo podem tornar (algo) penosa a leitura, desmotivando mesmo quem busque apenas uma fruição imediata e não a descoberta dos “antepassados” dos heróis que agora admira ou os primeiros passos da arte que combina texto e ilustração.
Serve este longo intróito, apenas, para dizer que esse não é o caso de Quim e Manecas que, tendo obviamente (algumas d)as marcas da época em que foram criados, mantêm uma frescura, uma legibilidade, um humor e um espírito que permitem uma leitura francamente agradável nos nossos dias.
Essa é, aliás, a razão para este texto só surgir agora aqui, em As Leituras do Pedro, pois este volume obrigou-me a uma leitura (e releituras) atenta(s) e compassada(s), com múltiplos avanços e recuos, para poder desfrutar dele o mais possível.
Por isso, também, o meu agradecimento ao João Paulo Paiva Boléo, pela selecção e organização do seu conteúdo, pelo glossário, que ajuda a situar na época e a compreender referências e alfinetadas, e pela magnífica e completa introdução, recheada de pequenas (e grandes) chamadas de atenção para pormenores (e “pormaiores).
Dito isto, entremos na banda desenhada propriamente dita, geralmente mais conhecida como a história de dois traquinas amantes de partidas ao próximo, mas que vai muito além disso. Porque se aquela faceta é a que predomina de início (sendo retomada a espaços), rapidamente Quim e Manecas – umas vezes irmãos, outras primos – se transformam em heróis, nacionais e internacionais, combatendo criminosos, participando na Primeira Guerra Mundial (com resultados espantosos!) contra os alemães. Para isso demonstram grande inventividade (criando engenhocas e máquinas espantosas), muita coragem, enorme sangue-frio mesmo nas situações mais delicadas e uma total falta de compaixão pelo inimigo, enxovalhado sempre que a oportunidade surge ou, quando necessário, reduzido a “trapos imundos, ossos, terra, cinza e nada”.
O que, na prática, (também) vem contrariar a ideia de que Quim e Manecas eram essencialmente uma banda desenhada infantil, pois este tipo de atitudes bem como uma amputação a sangue frio (!) feita por Manecas ao irmão a aprticipação na guerra em curso ou os trocadilhos em torno da gripe “hespanhola” e das “hespanholas” de carne e osso apropriavam-nas bem mais para adultos. O mesmo se passando, aliás, com os textos em que abundam referências a personalidades da época, críticas às políticas vigentes ou reparos ao estado do país em geral que, de certeza, passariam ao lado dos mais novos, numa colagem à actualidade que raramente a banda desenhada consegue, mesmo nos nossos dias.
O que, no entanto, não contradiz a ideia de que os mais novos poderiam desfrutar de igual modo das bandas desenhadas de Stuart cujo legibilidade e expressividade do traço, ritmo, dinâmica e modernidade continuam a espantar.
Isto é verdade em especial nas primeiras três dezenas de pranchas, cujo texto surgia integralmente em balões, numa altura em que estes eram quase uns ilustres desconhecidos. Depois, seriam substituídos por texto descritivo e alguns diálogos sob as vinhetas, o que retirou ritmo à leitura e dinâmica à composição das pranchas que mesmo assim, nalguns casos, funcionariam melhor sem qualquer texto escrito. É verdade que posso até concordar com J. P. P. Boléo quando escreve que, “literariamente” a obra ficou a ganhar e que estes textos são mais ricos e expressivos do que os iniciais, mas vendo Quim e Manecas sob o prisma deformador da minha actual cultura aos quadradinhos, assente em obras e autores que na altura nem sequer eram nascidos, não posso deixar de preferir a forma das primeiras peripécias dos dois miúdos lisboetas. O que só vem provar, mais uma vez, se tal fosse necessário, a modernidade da obra de Stuart.
A reter
- Se tenho elogiado diversas vezes neste blog algumas edições integrais, especialmente francófonas, é de toda a justiça fazer o mesmo em relação a esta edição da Tinta-da-China. Desde logo pela sua qualidade gráfica e editorial, com um único senão: a capa deveria ter mais consistência, pois tende a abaular ligeiramente com o tempo…
- Depois, claro, pela importância da obra recuperada, um clássico com quase 100 anos Legível, divertido, mordaz, moderno…
- …sobre o qual muito bem escreve (como é seu timbre…) João Paulo Paiva Boléo, no excelente ensaio que nos introduz às pranchas de Stuart.
- Falta algo para roçar a perfeição? À parte alguns pormenores de somenos importância, o anúncio de um segundo volume, com as restantes aventuras do Quim e do Manecas…!
Curiosidade
- Quim e Manecas foram escuteiros uma década antes de Totor, foram ao País dos Sovietes uma década antes de Tintin…
- Quim e Manecas protagonizaram um dos selos de correio da emissão filatélica "Heróis Portugueses de Banda Desenhada".
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