16/11/2020

1984

Angústia



Retomo aqui a introdução que escrevi há dias a propósito do volume Tom Sawyer, da colecção Clássicos da Literatura em BD: "Continuo a defender que uma boa adaptação em BD de uma obra literária - o que me interessa no caso presente - depende de três pontos fulcrais: a fidelidade ao original, a sua autonomia no novo género narrativo e o conhecimento prévio que o leitor tem - ou não - do original."

E confesso, agora, que a princípio custou-me aplicar este princípio, porque o terceiro ponto me pareceu errado. Até perceber porquê.

Comecemos pelo menos bom, o segundo ponto, a adaptação para banda desenhada que, neste 1984, revela um claro problema: o excesso de texto, transcrito textualmente do original - o que vai excluir automaticamente o terceiro ponto (e esclarecer a minha dúvida).

É incontornável que esta adaptação do brasileiro Fido Nesti abusa dos textos narrativos, das descrições, da forma como muitas vezes descreve o que vai na cabeça do protagonista. Poderá questionar-se se seria possível retomar esta obra de Orwell de outra forma, mas há cenas, sequências em que o texto é claramente redundante - logo poderia ter sido eliminado nestas e, possivelmente, noutras. Esta opção por uma adaptação a que chamarei 'literária' - tão em voga há umas décadas e sinónimo de excesso de texto escrito - parece-me penalizadora.


Obviamente, desta forma, o espírito original foi mantido. O tom opressivo, angustiante, do livro original é replicado de forma segura e muito conseguida.

Para isso, contribui também sobremaneira o traço de Nesti. Não é bonito, não é atraente - este tem sido o defeito apontado por potenciais leitores que os levou a rejeitar a obra - tem até alguns problemas de proporcionalidade (principalmente no início), mas a verdade é que funciona muito bem no registo que a obra exige. A fealdade aposta às personagens, a inexpressividade a que são forçadas, a falta de dinamismo que decorre da narrativa, tudo isso, se pode afastar eventuais leitores, é um trunfo que fortalece a obra. E que é reforçado pela curta paleta cromática usada, entre cinzas, castanhos, ocres e um pouco de laranja.


Agora, chegado aqui, devo dizer que li - será mais correcto escrever 'reli' - plenamente, na obra de Fido Nesti o romance original de George Orwell que descobri há (já) algumas décadas.

Escrito em 1948 - o título surge da troca dos dois algarismos da data - antevê - ainda sob os traumas da recém-terminada II Guerra Mundial - uma sociedade futura, em que o dia-a-dia é vigiado ao mais ínfimo pormenor pelo governo, através de ecrãs colocados por toda a parte, das ruas aos locais de trabalho, dos espaços de lazer às próprias habitações, e também de uma polícia política e de controle do pensamento, especialmente invasiva e eficaz.

Se em 1949 - data da primeira edição do livro - a ideia em si e a tecnologia envolvida poderia parecer exagerada e demasiado fantasista, agora, 36 anos depois da época imaginada por Orwell e mais de 70 anos após a sua criação, vemos ao nosso redor, se não linearmente aquilo que o romancista inglês imaginou, pelo menos a tecnologia e os meios necessários para o poder fazer. E, até, sob certos pontos de vista, um tipo de controle e de domínio até mais perigosos...


1984

Fido Nesti

Alfaguara

Portugal, 27 de Outubro 2020

175 x 245 mm, 224 p., cor, capa dura

21,90 €


(imagens disponibilizadas pela editora; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

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