Trapaceiros...
Estou
em dívida. Para com os autores deste notável O
Burlão nas Índias,
para com a editora Ala dos Livros e para com os meus leitores.
Porque, devia ter escrito sobre esta obra, assim que a li mas, por
vezes, surgem casos
assim: acabo a leitura deslumbrado, esmagado, arrebatado, com imenso
prazer, mas sinto que nunca serei capaz de escrever um texto à sua
altura...
Felizmente
não são muitas, mas esta
é
uma delas.
Proponho
assim duas versões da minha leitura: uma curta e uma longa.
A
curta é esta: esqueçam o que vem a seguir - sei que vai ser um
texto forçado, sem a emoção devida - encomendem a obra e lancem-se
à leitura. Não vão arrepender-se.
Se
quiserem experimentar a versão longa, prossigam, já a seguir.
Vamos então por partes.
Soberba. Formato extra grande (tanta gente que se vai queixar que não cabe nas prateleiras...), capa dura, boa impressão, papel de gramagem generosa, fita de marcação de leitura... Faz jus à obra.
E a edição especial? Para além do excelente livro - em edição numerada e marcada com o selo branco da editora - traz uma tela - que de alguma forma serve de embalagem ao livro - que reproduz, sem texto a capa do livro. Atenção: só foram feitos - só existem… - 100 exemplares...
O desenho
O desenhador é Juanjo Guarnido. Já o conhecemos de Blacksad, sabemos por isso a imensa qualidade do seu traço. Aqui, utiliza o mesmo estilo semi-realista, mas com personagens humanas, rico em pormenores, expressivo nas faces e na postura corporal, à vontade na representação do corpo, dos deslumbrantes palácios, das cidades miseráveis e sujas, das celas sombrias e húmidas, do vestuário e artefactos que dão credibilidade ao relato e das florestas verdejantes, dos cenários montanhosos... e dos animais!
E as cores? Magníficas, como em Blacksad. Variadas de acordo com a altura do dia e os locais da acção, explorando ao limite as sombras, a luz, os contrastes, mas sem excessos cromáticos num exemplar exercício de contenção, mas com todos os tons e variações para dar naturalidade ao conjunto.
Em termos de dinamismo gráfico, continua evidente a aprendizagem que Guarnido fez na animação. Os movimentos têm enorme naturalidade, a acção flui através dos corpos e das deslocações dos protagonistas, a câmara, embora comedida nos sucessivos enquadramentos, não pára estática, roda, desloca-se, procura, realça aqui um conjunto, ali um rosto em primeiro plano, mais à frente assenta num pormenor de uma mão, um pé, um olhar, um qualquer objecto que pode ser determinante.
Mas tudo - desenho, cores, planificação - sempre ao serviço do relato, não para o desenhador brilhar por si só - mas como brilha aqui Guarnido, um dos melhores desenhadores da actualidade!
A história
Finalmente o relato. O argumentista, Alain Ayroles - até agora uma lacuna grave nas edições de BD em português - apresenta-o como uma sequela de um romance picaresco espanhol do século XVII - El Buscón: La vida del Buscón chamado Don Pablos - um dos grandes livros da literatura castelhana, escrito por Francisco de Quevedo. A história actual, acompanha o tal Pablos de Segóvia, numa viagem às Índias - na realidade às Américas, embora os que lá chegavam o desconhecessem.
Pablos é o tal burlão do título. Um trapaceiro, um aldrabão, um fino mentiroso; na plena acepção do termo, um desenrascado. Obrigado desde cedo a fazer pela vida, fez de tudo e mais alguma coisa para sobreviver, quase sempre na fronteira da legalidade - ou bem para lá dela. Jogos de rua, pequenos roubos, sucessivos enganos, lenocínio, burlas fantasiosas, tudo lhe serviu para ir enganando, trapaceando, aldrabando todos e todas que se foram cruzando com ele.
Por isso, também, surge esta sua viagem para as Índias (Américas), em jeito de fuga às consequências das suas acções.
Mas também em busca dos sonhos dourados, de riqueza - de poder... - do Eldorado que hipnotizava governantes, oficiais, soldados, a simples ralé...
É a olhar para um horizonte brilhante - das hipotéticas riquezas - mas inalcançável (?) que Pablos vai urdindo a sua teia, fazendo as suas negociatas, enganando à esquerda e à direita, sonegando aqui, desviando acolá, tentando estar sempre de bem com os espanhóis e os indígenas, com as autoridades e os bandidos, com Deus e o Diabo… Sempre mais próximo dos escravos e dos indígenas, do que dos conquistadores espanhóis (que assumem papel de vilões), mas sem se importar de enganar a todos.
Inteligente, ardiloso, espertalhão vai dando passos lentos e seguros, embora por vezes tenho de correr - fugir! - a sete pés!
E é desta forma que o relato vai avançando, com uma carga histórica, evidente mas sem peso, assente no despotismo político, na crueldade dos conquistadores, no evidente racismo, no obscurantismo religioso, combinando o relato de aventuras (mas longe do relato de capa e espada à desfilada que alguns poderiam prever) com a crítica social e de costumes e a intriga palaciana a diversos níveis. Um avanço feito de forma pausada, sem grandes eventos ou emoções, numa progressão segura e sustentada, de ritmo imposto pelos autores, que dispõe bem, que força a continuar a leitura. Que nos vai deliciando, surpreendendo, transportando com evidente prazer, numa calmaria agradável.
E eis que chegamos ao terceiro dos três capítulos da obra. No qual - aparentemente já encerrado o relato, os autores - esses maiores trapaceiros - nos dão uma versão diferente (ou pelo menos ajustada) dos factos, agora não pelos nossos olhos, que andaram sempre atrás do burlão-mor, mas segundo a visão do próprio Pablos, dando explicações que não sabíamos que precisávamos, desvendando o que para nós parecia evidente e, indo um pouco mais além, permitindo que acompanhemos Pablos de Segóvia até onde nunca imagináramos ser possível.
Terminada a leitura, se não é uma obra arrebatadora, se não é uma obra de grandes emoções, que nos faça sonhar ou desvende os grandes momentos da humanidade ou o mais profundo do ser humano, se a a aventura é contida, se o humor negro é limitado, se não se trata de um relato histórico de per si, se nos custa a ganhar empatia e simpatia por Pablos de Segóvia, embora seja impossível não o admirar aqui e ali, sorrir ou mesmo gargalhar com alguns dos seus feitos, a verdade é que no final tudo isto estava lá, em doses bem quantificadas, e ficamos com uma agradável sensação de ganho, de realização, de ter vivido um daqueles poucos momentos únicos - contraditório, eu sei - que a leitura de uma obra-prima (pode) proporciona(r).
Agora, se chegaram até aqui, não hesitem. Comprem. Leiam. O Burlão nas Índias é bem mais - tanto mais - do que o muito (pouco) que aqui escrevi.
O
Burlão nas Índias
Alain
Ayroles (argumento)
Juanjo
Guarnido (desenho e cor)
Ala
dos Livros
Portugal,
Março de 2021
235
x 310, 160 p., cor, capa dura
ISBN:
978-989-54726-8-0
33,00
€
Pack
Coleccionador
Edição
limitada a 100 exemplares, numerada, com selo branco, embalada em
moldura com tela
45,00
€
(imagens disponibilizadas pela Ala dos Livros; clicar neste link para ver mais e nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)
Já o disse anteriormente: ainda não li/vi, mas o tamanho e a qualidade da edição são exemplares!
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