Animal selvagem...
Já declarei aqui, muitas vezes, a minha paixão pelo western. Por expressar directamente - embora feito em muitos outros textos - está outra das minhas paixões aos quadradinhos - e para lá deles - herdadas da adolescência: Tarzan, em particular, e um grande número de 'homens-macacos', em geral.
Descobri Tarzan, uma criança branca criada por gorilas na selva africana, muito cedo - não consigo precisar se na BD, se nos filmes a preto e branco com Johnny Weissmuller, se na série televisiva Bomba - mas, das várias versões aos quadradinhos que li - Foster, Hogarth, Marsh e, claro, Manning - uma houve que, na altura da sua leitura no Mundo de Aventuras - mais uma memória inolvidável da revista que me formou como leitor de BD - mudou completamente a minha visão do herói criado por Edgar Rice Burroughs. Refiro-me - obviamente - à reinterpretação da sua origem por Joe Kubert - e às histórias subsequentes que ele criou.
Este Tarzan - sem dúvida o 'Tarzan de Kubert' - era diferente de todos os outros: mais duro, mais selvagem, mais violento... Era uma (re)visão que destacava o lado animal da criatura, que o tornava um verdadeiro ser da selva - antes ainda de ser o seu senhor. Um ser que se impunha pela sua força, pela forma como intuía e dava largas ao seu instinto animal, pelo selvajaria que brotava naturalmente dele.
Agora, tantos anos depois, pela primeira vez reencontrei esse Tarzan animal, puro e duro, espontâneo e instintivo, nesta nova versão da sua origem, assinada por Christophe Bec e Stevan Subic.
Baseada no primeiro romance de Burroghs, Tarzan of the Apes (1911), agora caído no domínio público - outras versões possivelmente surgirão em breve - reconstrói em BD a origem do 'macaco branco'.
Como principal senão, apresenta algum excesso de texto descritivo que, em muitos casos era perfeitamente desnecessário - e o arranque da obra, uma sequência (praticamente) muda de quase uma vintena de páginas - que nos leva do nascimento do filho de John e Alice Greystoke até ao fim da sua adolescência - bem como outras ao longo do livro, mostram à saciedade como Bec e Subic são capazes de se aterem ao mais puro da linguagem da BD, com uma eficácia narrativa assinalável, mais poderosa do que longas descrições ou diálogos riquíssimos.
E é nelas, nessas sequências quase desprovidas de texto escrito, que vêm ao de cima as características incontornáveis de um ser criado entre animais: um instinto apurado; uma capacidade invulgar de leitura dos sinais da selva; o aproveitamento dos seus recursos e dos seus elementos, a vários níveis; a libertação do lado mais selvagem e animal quando as situações limite o exigem.
É dessa forma - animal, sublinho mais uma vez - que o jovem Tarzan vence a pantera que dizimava a sua tribo de manganis, se torna o seu líder, desbarata os canibais... Uma exposição crua e realista - no âmbito de uma situação de ficção previamente aceite... - que atinge formas até incómodas para o leitor, pela consequências físicas da violência empregue. Tarzan, várias vezes, depois D'Arnot, estão à beira da morte - quando carne (humana) é arrancada dos ossos, quando um puxão nos longos cabelos do protagonistas quase leva ao seu escalpelamento brutal, quando é necessários recorrer aos instintos mais básicos para suprir a fome ou possibilitar a recuperação física.
E é dessa forma, também, soltando o instinto, cedendo à natureza impetuosa em desfavor das regras de etiqueta e de sociedade e dos pudores naturais, que Jane se oferece a Tarzan, numa sequência onde todas as palavras usadas estão em excesso e são inúteis, que Bec e Subic marcam pontos em relação a Kubert, beneficiando dos tempos diferentes que se vivem - ao exporem a sensualidade - e mesmo (consequentemente) a nudez de Jane - na provocante cena de sedução na cascata.
Graficamente, Stevan Subic, que fora da sua Sérvia natal até agora só tinha trabalhado para a Sergio Bonelli Editore, no Adam Wild de Gianfranco Manfredi, revela algumas limitações no tratamento da face humana, compensadas pela representação realista e detalhada quer da selva luxuriante, quer dos diversos animais nela presentes, e, especialmente, pelo dinamismo e capacidade de representação do movimento, em especial nas cenas em que há confrontos.
Curiosa - por invulgar no mercado francófono, é a escolha de um autor diferente - Eric Bourgier - para a capa, na qual Tarzan surge num estilo mais realista do que no interior, enquadrado num ambiente luminoso e brilhante, que contrasta com o traço mais rude de Subic, acentuado pelos tons sombrios das cores de Facio que vincam o tom duro e violento do relato.
Para quem conhece a história original - quem não conhece?! - este primeiro volume leva-nos até à ida de Tarzan aos Estados Unidos e à sua (aparente) renúncia a Jane que estás prestes a casar... A forma como Bec e Subic conseguirem manter a fasquia que alcançaram, em relatos em que outros ambientes, para lá da selva, se irão impor, definirá definitivamente a importância (futura) do 'seu' Tarzan.
Para já, ficam com o (enorme) mérito de terem conseguido narrar - outra vez - uma história com imensas versões, de uma forma original, sombria e violenta, que em muitos momentos nos leva a descobri-la como que pela primeira vez.
Tarzan Tome #1: Le seigneur de la jungle
Segundo
o romance de Edgar Rice Burroughs
Christophe
Bec
(argumento)
Stevan
Subic (desenho)
Facio (cor)
Soleil
França,
24 de Março
de 2021
233
x 323
mm, 84
p., cor,
capa dura
EAN
: 9782302091795
17,95
€
(imagens disponibilizadas pela Soleil; clicar nelas para as apreciar em toda a sua extensão)
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