12/04/2023

Le Serpent et le Coyote

Arrastados para o lado negro





Nova parceria entre Matz e Xavier, depois de Tango - cujos seis volumes foram disponibilizados a bom ritmo em português pela Gradiva - Le Serpent et le Coyote permite outras inferências para lá da grande aventura.

Porque, é evidente, que numa primeira leitura é a grande aventura em estado puro que salta aos olhos, com a narrativa transformada numa grande fuga - e a inerente perseguição… - pelos grandes espaços (ainda selvagens) norte-americanos. Uma perseguição de carro, cuja razão sou forçado a revelar já, apesar de no álbum termos de avançar umas poucas dezenas de pranchas antes de a conhecer.

Por isso, se não quiseram arriscar revelações - que na verdade não duram mais do que aquelas pranchas referidas - parem a leitura por aqui.

Joe (chamemos-lhe assim), o protagonista, é um antigo mafioso, recauchutado em boa pessoa através de um programa de protecção de testemunhas experimental na época - o final da década de 1960.

E interrompo por aqui o raciocínio (escrito), porque esta questão, é uma das leituras acessórias que Le Serpent et le Coyote proporciona: a perspectiva histórica da aposta numa forma diferente de conseguir fazer cumprir a lei - embora com beneficiados colaterais… - consolidada num texto que encerra o volume e contextualiza o relato.

Retomando o fia à meada, convém dizer que apesar da sua nova identidade, Joe prefere não parar quieto, percorrendo os grandes espaços ao volante da sua viatura para evitar eventuais maus encontros. Está limitado a contactos recorrentes espaçados com o U.S. Marshall que o protege e controla, para que este se assegure que continua vivo e poderá vir a testemunhar em tribunal contra os antigos associados.

Se o traço de Xavier continua algo agreste, senti-o mais à vontade do que em Tango. É verdade que a predominância dos espaços abertos lhe permite explorar os cenários em que se sente mais confortável - nas cenas interiores há por vezes fundos vazios que o demonstram, mas o recurso a grandes planos ajuda-o a contorná-los e a revelar os ganhos em expressividade que o seu desenho ganhou. Os tons sombrios que dominam o colorido de Jérôme Maffre, contribuem para acentuar o lado cinzento do relato, curiosamente em claro contraste com a luminosidade da bela capa.

Quanto a Matz, continua mestre na gestão dos silêncios e na concisão dos diálogos, assertivos mesmo num relato feito em grande parte em off ou em monólogos de Joe, que cumprem a função de informar o leitor do estado de espírito dos intervenientes, para o situar na acção ou informá-lo dos pressupostos que deve conhecer.

A segunda leitura acessória, para lá do óbvio que Le Serpent et le Coyote me proporcionou, evoca uma outra série do argumentista, O Assassino - cujo primeiro ciclo teve edição portuguesa da Booktree e da ASA - e releva a sua capacidade para nos levar a ganhar simpatia e empatia com alguém que está claramente para lá da fronteira entre o certo e o errado - do lado deste. Na verdade, na voracidade de uma leitura rápida mas intensa, com a calma dos grandes espaços e das sequências mudas a contrastarem com a violência e a vertigem de alguns momentos, facilmente daremos por nós a torcer por Joe que, apesar da nova identidade, não deixou de ser um criminosos e um assassino.

Não sei bem o que isto diz de cada um de nós ou se todos temos um lado negro ansioso por aparecer e tornar-se predominante mas, na falta de oportunidades, deixamo-nos facilmente seduzir por quem já deu esse passo...


Le Serpent et le Coyote
Matz (argumento)
Philippe Xavier (desenho)
Jérôme Maffre (cor)
Le Lombard
Bélgica, Setembro de 2022
241 x 318 mm, 144 p., cor, capa dura
ISBN: 9782808205375
23,50 €

(imagens disponibilizadas pela Le Lombard; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão)

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