Vidas como elas são
Inês e JP trabalham num bar de praia. A diferença de carácter, a proximidade diária e o aparente conhecimento mútuo, transformam o seu dia a dia numa soma de choquezinhos constantes. Entre a rotina da preparação, o atendimento aos clientes e as incertezas quanto ao futuro a curto/médio prazo - o fecho do bar no final do Verão, a continuação dos estudos, o aproximar da vida adulta - os dias vão decorrendo preguiçosamente. Até que um acontecimento trágico e inesperado vai introduzir nas suas vidas uma alteração profunda e levá-los a repensar se não tudo, pelo menos muita coisa.
Depois de Desvio (Planeta Tangerina, 2020), sobre um confinamento voluntário para descoberta pessoal e redefinição de objectivos que ganhou novos significados em tempo pós-pandemia, Ana Pessoa e Bernardo P. Carvalho estão de volta à banda desenhada com este Mar Negro, o centésimo livro daquela editora.
Mais uma vez, os autores agarram em vidas indefinidas num momento que acabará por ser de viragem e levam-nos, leitores, nessa observação quotidiana de gestos, práticas, hábitos e pequenas fugas ao normal, fazem-nos criar intimidade com as personagens, para depois as abandonarem à sua vida, deixando-nos, de alguma forma, órfãos, suspensos do que aconteceria a seguir, das decisões que Inês e JP, no caso, irão tomar.
Os dois, tal como os outros participantes com cujas vidas se cruzam ou apenas se tocam tangencialmente, são jovens, naquela fase em que alternam a irresponsabilidade e a impulsividade da adolescência, com a ponderação e a reflexão da idade adulta a chegar. Curiosamente, Ana Pessoa dá-nos a conhecer Inês e JP em Mar Negro, não só pela forma como se apresentam, agem e reagem, mas também quando exibe o modo como os outros os vêem, e que nem sempre coincide com aquilo que eles e nós achamos que são. Inês, a protagonista, por exemplo, é uma amiga para Vera, a Pompom para JP ou a Justiceira para Andreia. A razão de ser de cada opinião advém da actuação da protagonista ao longo da história, segundo a forma como as suas acções são vistas e avaliadas por quem está do outro lado.
Graficamente, Mar Negro distingue-se pela ausência de cor (em relação a Desvio) e pela opção por uma narrativa a branco e azul (muito) escuro, com o (limitado) espaço entre as vinhetas preenchido a laranja, tal como a capa do livro e os bordos das páginas.
A planificação é invulgar - entenda-se 'com vinhetas de formato incomum', que aqui e ali fazem lembrar azulejos. Podendo ser curiosa a princípio, acaba por se tornar cansativa e em muitas ocasiões dá mesmo a sensação de que foi escolhida pela sua originalidade e não por questões narrativas, como deveria ser. Talvez por isso, nalgumas páginas é difícil ‘adivinhar’ a sequência das vinhetas, o que acaba por retirar ritmo e alguma legibilidade à obra.
E já que me referi à legibilidade e à capacidade narrativa dos autores, gostei da (longa) sequência inicial, em que acompanhamos Inês pelas ruas até chegar ao café onde trabalha e começar a preparar tudo o que é necessário para a sua abertura. Aquela noção de deambulação surge devido ao facto de, nessas páginas, ela tanto surgir a caminhar da esquerda para a direita, quanto no sentido inverso, contrariando nestes casos o sentido de leitura. No entanto, com o prosseguir da história, apercebi-me que a sensação inicial de que andava sem rumo definido era errada… embora transmitisse de forma notável a sensação de fundo - de indefinição e procura de rumo - que o livro me acabou proporcionar.
No final, a par desta procura de ‘sentido para a vida’, o que exala de Mar Negro é uma enorme naturalidade, a sensação de que o que lemos não é ficção, mas sim o registo de acontecimentos reais transpostos para o papel.
De forma resumida, um retrato de vidas como elas realmente são.
Nota final
A capa é a porta de entrada para um livro, o que primeiro chama a atenção para ele. A de Mar Negro serve mal este propósito, com a dificuldade de leitura do título, a reduzida dimensão dos nomes dos autores e da editora e uma imagem pouco apelativa...
Mar
Negro
Ana
Pessoa (argumento)
Bernardo
P. Carvalho (desenho)
Planeta
Tangerina
Portugal,
Março de 2023
174
x 230 mm, 320
p., branco,
azul e laranja, capa cartão com badanas
22,90
€
(versão revista do texto publicado no Jornal de Notícias online a 14 de Abril de 2023 e na edição em papel do dia seguinte; imagens disponibilizadas pela Planeta Tangerina; clicar nesta ligação para ver mais pranchas ou nas aqui reproduzidas para as apreciar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre o tema destacado)
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