Com a publicação de Sermão de Santo António aos Peixes, terceiro volume da colecção Levoir/RTP, Clássicos da Literatura Portugueses em BD, no passado dia 2 de Abril, oportunidade para mais uma vez ouvir os autores sobre como correu o processo e a colecção, em entrevistas feitas por correio electrónico, separadamente.
As Leituras do Pedro - A escolha da obra foi tua ou da editora?
Pedro V. Moura - Como havia respondido mais alargadamente a propósito de Mensagem, remeto a essas ideias mais genéricas. Mas indico apenas que “saltei” à oportunidade de trabalhar este texto, de que gosto muito.
Bernardo Majer - Foi da Editora.
As Leituras do Pedro - E a escolha do desenhador para a ilustrar?
Pedro V. Moura - De certa forma, houve também um trabalho de responder a ideias da editora, minhas, disponibilidade, etc. Mas em suma, sim, havia um desejo meu de fazer algo com o Bernardo. Já tínhamos feito algo de muito, muito curto para o Instagram, trocamos ideias e conselhos, e eu sempre o tive (tenho) em conta. Esta oportunidade veio mesmo em boa hora.
As Leituras do Pedro - Já conheciam a obra? O que trouxe adaptá-la?
Pedro V. Moura - Eu sim, claro, pelas razões expostas na minha última entrevista contigo. O Padre António Vieira é ainda um excelente embaixador de uma escrita belíssima, intricada, inteligente e que nos ensina a manter a coesão de um argumento a longo trecho. Obrigatório conhecer a qualquer pessoa que se preze querer dominar o nosso idioma, para mais literário.
Os desejos da sua adaptação encaixam-se no programa de toda a colecção: respeitar o espírito, senão mesmo a letra da obra, com preocupações de um público alargado, mas com alguma liberdade interpretativa. No caso, o Bernardo e eu resolvemos apresentar o sermão de uma forma literal e histórica, mas que rapidamente ganha roupagens de fantasia, mas permitindo, a um só tempo, redescobrir a esfera do maravilhoso (ou “sagrado”) do Santo António e, através de metáforas directamente mostrando as misturas dos peixes e dos homens, literalizar os propósitos morais do Sermão. Neste caso, a “ilustração” é total: iluminar, elucidar, explicar e, espero, divertir.
Bernardo Majer - Estudei na escola, mas as minhas memórias eram difusas. Achei particularmente interessante perceber aquilo que era o moralismo católico da época, que tem o seu contexto claro. Partes do texto parecem hoje muito atuais, outras nem tanto.
As Leituras do Pedro - Se a escolha fosse livre, sem limitações, que obra gostavam de adaptar?
Pedro V. Moura - Remeto à resposta na última entrevista.
Bernardo Majer - Sem restrições? Não é uma pergunta fácil. Dentro da literatura portuguesa, O amor é fodido do Miguel Esteves Cardoso foi dos livros que mais me marcou na adolescência, não sei que BD sairia dali. Recentemente li um livro pequeno da Edna O’Brien chamado Paradise que seria genuinamente muito interessante de adaptar.
As Leituras do Pedro - Como se adapta uma obras destas a BD? Quais as principais dificuldades?
Pedro V. Moura - Ao contrário de Mensagem, mas apenas num pequeno grau, não era possível utilizar todo o texto na íntegra. Houve, portanto, cortes feitos, mas espero que o essencial não se tenha perdido – nenhum dos visados do texto desapareceu, nem a sua ordem geral. Uma das grandes liberdades, porém, foi concentrar todas as referências à vida e missão de Santo António numa sequência coesa e coerente, simplificando essa apresentação. Mas depois estamos sistematicamente a “mergulhar” e “emergir” entre uma abordagem fantasiosa/literal das palavras e a realidade histórica de Vieira.
Bernardo Majer - Isto será uma questão mais para o Pedro Moura. A única dificuldade que eu posso referir é, por vezes desejarmos reduzir a quantidade de texto em algumas vinhetas, mas isso ser sempre muito complicado. Se fosse um texto original não seria uma questão, mas aqui tem de se respeitar a obra.
As Leituras do Pedro - Como foi o vosso processo de trabalho?
Pedro V. Moura - Pelas razões idênticas do meu trabalho com a Susa Monteiro, as circunstâncias forçaram um pouco a um método que fosse célere para ambos, sem grandes margens de estarmos a andar para trás e para diante. Conhecendo bem o trabalho do Bernardo Majer, as suas capacidades, preferências, etc., após uma breve conversa optámos por ter uma abordagem relativamente simples, com uma paleta de cores relativamente limitada (em que tivemos apoio da Ana Dias), e uma composição de página proposta por mim. Ou seja, mais uma vez um argumento “completo” (aberto a transformações e mudanças pelo artista). Isso tornou tudo mais expedito. Depois seguiram-se pequenas revisão e um trabalho muito clássico e quase linear, do esboço aos lápis, artes-finais, cor e legendagem. E uma última revisão, para apanhar gralhas ou anacolutos, o que, com a escrita barroca do Vieira, não foi pèra doce!
Bernardo Majer - Entre nós foi bastante simples, o Pedro Moura fez uma parte inicial da adaptação, conversámos para perceber se estava a fazer sentido para mim, que estava, e depois entregou-me o argumento completo. Rapidamente nos entendemos no processo. A certa altura percebi que o tempo era curto para mim e tive de fazer um sprint final complicado, mas ficou tudo entregue na data.
As Leituras do Pedro - Que expectativas têm?
Pedro V. Moura - Que este livro faça com que a mangá perca os seus leitores e venham correr todos para o seio de Cristo. Mais a sério, tendo em conta que a prosa do Vieira nem sempre é visitada com a frequência que merece, e apesar de não apreciar que se reduza a banda desenhada a um “veículo” didáctico ou instrumentalizado, quero acreditar que poderá aqui haver uma oportunidade de criar uma via de aproximação, mesmo que o quadro moral mais dogmático de Vieira possa não fazer sentido. Todavia, as razões mais profundas – sermos honestos connosco mesmo e os outros, respeitar-nos mutuamente, e pugnar ao máximo pela dignidade humana – são as mesmas que partilharemos, acredito.
Por outro lado, espero que o nosso trabalho permita igualmente ver que é possível fazer “interpretações” de textos clássicos que não têm de estar presos às roupagens mais expectiváveis, prosaicas, e aborrecidamende pedagógicas e que devemos aumentar o “espectáculo visual” (redundância, mas enfim) da banda desenhada.
Bernardo Majer - Eu não sou muito de expectativas, espero que não exista apenas o interesse de ler o livro em BD porque é mais fácil, que é um clássico. Acho que o objeto final ficou genuinamente interessante e espero que seja avaliado pelo que é, um livro de BD.
As Leituras do Pedro - Qual a importância de uma colecção como esta?
Pedro V. Moura - Remeto, igualmente, às minhas respostas no questionário anterior. No último volume, voltaremos a falar!
Bernardo Majer - Acho que é bom ter BD portuguesa a sair com esta regularidade para o nosso mercado, e com um publico relativamente alargado. É sempre bom ter gente a ler BD.
(imagens disponibilizadas pela Levoir; clicar nelas para as aproveitar em toda a sua extensão; clicar nos textos a cor diferente para saber mais sobre os temas destacados)
Sem comentários:
Enviar um comentário